As europeias de
2014: subsídios para a compreensão dos resultados
05/06/2014 - 05:57
É difícil não ver nestes resultados uma
contestação aberta ao rumo que a Europa tem seguido nos tempos recentes.
As europeias de 2014 tiveram resultados
extraordinários na Europa, nomeadamente devido à fulgurante ascensão da direita radical no PE.
Mas ficaram também marcadas pelo refluxo dos partidos do centro, os quais têm governado a UE em
situação de “grande coligação” (ou seja, com a esquerda socialista e a direita
conservadora juntas) e que são corresponsáveis pelo cunho neoliberal que a
Europa tem tido desde Maastricht, mas também por uma construção europeia cada
vez mais feita nas costas dos cidadãos.
Em Portugal, à derrota histórica da
direita correspondeu uma vitória pálida do PS, um refluxo dos bloquistas e, em
contraponto, à afirmação mais ou menos bem-sucedida de micropartidos como o
MPT, o Livre e o PAN. Mais, a “vitória de Pirro” do PS está a gerar ondas de
choque no partido e a possibilidade de uma mudança na liderança está em aberto.
O objetivo deste artigo é refletir sobre os resultados das europeias e algumas
das suas eventuais implicações na Europa e em Portugal.
Na Europa, as eleições para o PE ficaram
marcadas pelo refluxo das duas maiores famílias políticas. De 2009 a 2014, os conservadores
do PPE, onde pontuam PSD e CDS-PP, passaram de 35,77% para 29,43% dos lugares, regredindo de 274 para 221 assentos
(note-se que o PE passou de 766 para 751 membros). Apesar de a direita estar no
poder numa maioria de países, os
Socialistas & Democratas (S&D), grupo no qual se insere o PS, foram também fustigados:
passaram de 25,59%, em 2009, para 25,17% dos lugares, i.e., de 196 para 189 eurodeputados.
A crescer só mesmo a direita radical, a qual, segundo a imprensa, poderá chegar
aos 130 eurodeputados e formar um grupo parlamentar forte, e a esquerda radical
do GUE/NGL, onde estão o PCP e o BE, a qual passou de 4,57% para 5,99% (de
35 a 45 membros).
É difícil não ver nestes resultados uma
contestação aberta ao rumo que a Europa tem seguido nos tempos recentes, seja
do ponto de vista da sua democraticidade, seja das suas políticas
socioeconómicas. No primeiro caso, basta lembrar o Tratado Constitucional Europeu, que, após ter sido
chumbado em referendo na Holanda e em França, foi transformado em Tratado de
Lisboa e passou a ser aprovado apenas e só pelos Parlamentos nacionais (ou
seja, nas costas dos cidadãos), exceto quando imperativos constitucionais
obrigavam a procedimento diverso. Mas foi, além do mais, um embuste perpetrado
pelas elites sobre os cidadãos comuns porque, como disse Valery Giscard
d’Estaing, “são exatamente os mesmos instrumentos. Só se mudou a forma como
estão arrumados (Le Monde, 27/10/2007)”. Por cá, PS e PSD, que se tinham
comprometido com um referendo, cumpriram obedientemente os novos ditames
europeus, preferindo rasgar o compromisso que tinham com os eleitores. Ou basta
ainda lembrar a miríade de instituições não eleitas e com enormes
poderes, nas quais avulta naturalmente o BCE, o qual pode, através
das suas intervenções (ou da falta delas) nos mercados de capitais, fazer
descer ou subir, respetivamente, significativamente as taxas de juro da dívida
pública dos países sem sequer prestar contas aos eleito(re)s europeus,
nomeadamente ao PE. Ou ainda
o esmagamento do peso dos
pequenos países desde os tratados de Amsterdão e de Lisboa.
Do ponto de vista das políticas
socioeconómicas, basta pensar que a Europa que temos (não uma qualquer Europa
ideal que muitos prezamos e julgamos desejável), e cujas orientações têm sido
cristalizadas nos tratados (nomeadamente no Tratado Orçamental) com o beneplácito do PPE e dos
S&D (e, por cá, do PSD e do PS: Portugal foi o primeiro país a assinar o Tratado Orçamental, pasme-se),
sobrevaloriza o princípio da
concorrência em detrimento da proteção dos serviços públicos. É também a
UE “realmente existente” que endeusa a concorrência e as liberdades dos
movimentos de capitais, mesmo
que tal implique a competição pelos mínimos sociais e fiscais e uma Europa de
mãos atadas perante os
mercados de capitais. É
ainda esta Europa “realmente existente” que sobrevaloriza o combate à inflação
e os equilíbrios orçamentais, em detrimento do crescimento económico e do
emprego, e que não hesita em dar prioridade ao salvamento da banca, mesmo que
tal implique atirar para o desemprego e para o empobrecimento milhões de
cidadãos. O PS pode até ter uma visão mais crítica desta Europa
“realmente existente” do que o PSD (pelo menos o atual, ferozmente neoliberal),
mas a verdade é que, por um lado, parece de mãos atadas perante os tratados que
bloqueiam a Europa e, por outro lado, não parece disposto a “dar murros na
mesa” e a correr riscos para tentar infletir o rumo das políticas europeias (na
verdade, quando a França do PSF vacila, que podemos efetivamente esperar do
Portugal do PS?). Ou seja, as suas divergências face ao PSD em matéria do rumo
de política europeia, na prática, resumem-se a muito pouco, dada a “impotência
democrática” que grassa por essa Europa fora. Por isso, os temas europeus não foram politizados (pelos partidos do centro) nas
últimas europeias, em Portugal pelo menos, e não puderam, por isso,
servir de muito na hora de votar. Resta ver como reagirão os S&D e o PPE
perante o ascenso dos eurocéticos. Com mais uma “grande coligação” e
continuidade nas políticas, “mudando alguma coisa para que tudo fique na
mesma”? Ou procurando infletir na política de alianças e no rumo do policy
making da UE, e assim respondendo aos desejos de mudança dos cidadãos
europeus?
A direita portuguesa teve uma derrota
histórica nestas eleições para o PE: comparando a percentagem de votos dos
partidos da coligação em 2011 com a mesma percentagem em 2014, verificamos a
maior penalização de sempre do governo incumbente nestas eleições de segunda
ordem: -22,9%. As segundas e terceiras maiores penalizações anteriores, com
Socrátes, em 2009 (-18,4%), e Cavaco, em 1989 (-17,5%), ficam ainda assim a
notável distância. O PS venceu, é certo, mas apenas tangencialmente: os 31,45%
de 2014 são pior resultado do partido desde 1994, inclusive, se excetuarmos o annus
horribilis de 2009. Mais, se compararmos a situação com as europeias, cujo
contexto era equivalente ao de Maio passado, as de 2004, então a magreza
da vitória socialista é ainda mais evidente.
Claro que estes magros resultados
socialistas pouco ou nada têm a ver com a organização interna do partido ou com
o sistema eleitoral (como sugerem as florentinas propostas do líder para ganhar
tempo perante o assalto à liderança de António Costa), têm antes que ver com a incapacidade do PS em se apresentar
como uma alternativa credível e robusta face à direita, com a
incapacidade demonstrada em tentar construir uma nova política de alianças (que
não legitime a direita neoliberal radical, reciclando-a para o próximo governo…
como se perspetiva difusamente…), e com a falta de vontade de correr riscos e
de “dar murros na mesa” para procurar infletir a política neoliberal europeia.
De facto, perante o Governo mais impopular de sempre, que governa sem mandato
político, violando a Constituição e fazendo cerrados ataques ao TC (revelando
até falta de patriotismo ao mobilizar instituições internacionais nas
investidas contra o tribunal), com políticas de austeridade iníquas e de
resultados desastrosos, a vitória do PS é ainda mais frustrante. De facto, o PS
mal se diferenciou da direita, sobretudo até ao final de 2012, apesar de o
executivo governar muito (!) para além da troika: segundo dados
coligidos por investigadores da FCSH-UNL, entre Junho de 2011 e Setembro de
2012, o PS só votou contra 16,7% das propostas da direita na AR; aprovou 58,3%
e absteve-se em 25%. Mais, a direção socialista que consagrou a liberdade de
voto dos seus deputados foi a mesma que, em 2012, tentou por todos os meios
demover deputados seus de pedirem a fiscalização constitucional do Orçamento
para 2012. E, apesar do monumental embuste eleitoral, em 2011, da governação
além troika e reiteradamente contra a Constituição, o PS tem estado
sempre disponível para se entender com a direita, basta lembrar a célebre
“reforma” do IRC. Se continuar por este andar, ainda se arrisca a perder em
2015, ou a ter mais uma “vitória de Pirro”.