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terça-feira, 31 de julho de 2018

SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE









Uma campanha travestida a respeito do SNS
É impossível não criticar o Governo por aquilo que esperávamos que tivesse feito e não fez, mas também é necessário tomar medidas de higiene em relação à direita.
31 de Julho de 2018 Isabel do Carmo
No conjunto de títulos e de notícias que têm ocupado a comunicação social a respeito da Saúde, podemo-nos perguntar se se trata de um debate, de uma defesa do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ou de uma campanha de promoção dos serviços privados e de uma perspectiva política de facto anti-SNS.
Recentemente, um velho amigo meu francês, de passagem por Lisboa, telefonou-me num fim-de-semana a dizer que estava com uma dor no peito havia duas horas e não sabia se havia de esperar por segunda-feira e procurar um cardiologista. Disse-lhe para tomar um táxi o mais depressa possível e ir à urgência do Hospital de Santa Maria ou do Hospital de S. José. Assim fez e telefonou--me uns dias depois a explicar que tinha tido um infarto cardíaco e tinha posto um stent na coronária. E comentou-me na sua língua: “Cinco estrelas! Afinal, o que se passa com os hospitais não é nada do que vem nos jornais.” (Sabe ler português.)
Mais uma vez se me colocou a questão de a quem é que serve o actual debate sobre os serviços públicos de saúde e se aqueles que se situam à esquerda, tal como eu, não poderão, se não tiverem cuidado, estar a lançar achas para a fogueira dos outros. Percebo o dilema da esquerda parlamentar, que, tendo de defender no lugar certo o SNS, na sua identidade, na sua sustentabilidade e no seu futuro, não pode nem deve fazer coro com o ataque produzido pelo PSD e o CDS. Estes partidos, a comunicação social que os acompanha e alguns organismos profissionais que se integram na mesma narrativa não são defensores do SNS e nunca o foram.
O discurso cheio de menções em defesa do SNS é verdadeiramente hipócrita e repousa sobre a falta de memória da população em geral e da imprensa em particular. Quando, em 1979, a Lei 56, a do SNS, chamada “Lei Arnaut”, foi ao Parlamento, foi aprovada com os votos a favor do PS, do PCP, da UDP e do deputado independente Brás Pinto. Votaram contra o PSD, o CDS e os deputados independentes sociais-democratas. A posição contra este modelo de redistribuição de um SNS universal e gratuito a partir do Orçamento Geral do Estado, o qual é baseado em impostos progressivos, foi sempre a da direita. Em 1987, o PSD ganhou maioria absoluta e a sua orientação, liderada por Cavaco Silva e inspirada pela onda neoliberal e os triunfos de Reagan e Tatcher em 1979/80, foi a de combate ao padrão identitário do SNS, tal como o Partido Conservador fez em relação ao National Health Service inglês. Em 1990, já com uma maioria parlamentar, o PSD e o CDS fizeram aprovar uma nova lei de bases para a Saúde, com a porta aberta para os privados expressa em muito do articulado, pois punha os serviços públicos “em articulação com os serviços privados”. A lei do mercado para tudo e também para a Saúde. É este o filão que constitui de facto o nó central da direita parlamentar e daqueles que a seguem na comunicação social e em alguns grupos profissionais. Falarem na defesa do SNS é uma mentira e um teatro. Alguns terão mesmo conflitos de interesses, dada a sua ligação a empresas com fins lucrativos na área. 
Quando a direita voltou a ter maioria parlamentar e governo, coincidindo com a entrada da troika, passou a dizer que o Estado não tinha dinheiro para pagar a saúde, falando como se o SNS fosse uma benesse oferecida à população. A palavra solidariedade passou a paredes meias com a caridade e a expressão “tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos” atenuou o “tendencialmente gratuito”, como se os impostos donde provém o Orçamento já não tivessem esse critério e não fosse esse o espírito da redistribuição. E foi assim que prosperaram as “entidades privadas, sem ou com fins lucrativos”, para “prestar cuidados de saúde”, expresso na lei de 1990. E o Estado encarregou-se e encarrega-se de lhes comprar serviços. Passou a acontecer o boom das grandes empresas privadas de Saúde. Não se trata já de consultórios unipessoais, mas de entidades de negócio que movimentam milhões.
Logo que tomou posse, o Governo ligado à direita parlamentar reduziu o orçamento para a Saúde, que era em 2010 de 8699 milhões e em 2012 estava em 7525 milhões. E a participação das famílias passou ao seu máximo, 28%. Foi o corte na Saúde, em nome das boas contas do défice. No entanto, se olharmos para o caminho do dinheiro, ele desceu no público e subiu para o privado, como se de vasos comunicantes se tratasse. A despesa corrente com os hospitais públicos desceu de cerca de 5508 milhões de euros em 2010 para 4843 em 2015. No mesmo período, a despesa do SNS com os hospitais privados subiu de cerca de 391 milhões de euros para 554. Os custos com meios auxiliares de diagnóstico e terapêuticos (análises, radiologia, endoscopias) pagos através do SNS foram subindo até 2015.
Foi este o legado do Governo da direita: não se trata da redução dos custos em Saúde “porque não havia dinheiro” e “estávamos à beira da bancarrota”, mas sim de uma inversão daqueles a quem se pagava, com o dinheiro do Estado e com o dinheiro do bolso das famílias. Durante esse período de cinco anos de governo, com o agravamento da situação social, houve comprovadamente mais anemias, mais pneumonias de que foi dado o alerta. Em 2011 houve 27% mais chamadas para o INEM relacionadas com comportamentos suicidários. Entre 2011 e 2012 a prescrição de ansiolíticos e de antidepressivos aumentou em todas as idades e foi o dobro neste período de tempo para as pessoas com mais de 65 anos. O registo de sintomas de ansiedade e depressão em todas as idades a partir dos 15 anos passou para o dobro ou para cinco ou quatro vezes mais, conforme as regiões.
O número de funcionários dos vários sectores na Saúde desceu 12%. As horas de trabalho passaram a 40 semanais e, portanto, uma parte das horas extraordinárias deixaram de ser pagas. Houve uma fuga de médicos e enfermeiros para o estrangeiro.
Estes profissionais queixaram-se de burnout em publicações próprias e em sessões públicas. Durante este período, as almas inquietas do PSD e do CDS, que agora clamam pelos riscos de destruição de um SNS que eles afinal não aprovaram, mantiveram-se tranquilas. Podiam não trazer o assunto para o Parlamento, porque isso é a regra do jogo da competição política, mas ao nível individual podiam expressar-se, indignar-se ou pelo menos inquietar-se. Mas não. E foi este o legado que o Governo da “geringonça” recebeu.
E aqui insere-se o dilema que se coloca a todos aqueles que querem defender o SNS. É impossível não criticar o Governo por aquilo que esperávamos que tivesse feito e não fez, mas também é necessário tomar medidas de higiene em relação à direita. O Ministério da Saúde ficou demasiado dependente das Finanças; atrasou-se na abertura das unidades de saúde familiar; não teve uma linha coerente para lidar com os profissionais. Sobretudo, não levou a cabo uma resolução aprovada em Maio de 2017 na Assembleia da República que “recomenda ao Governo que poupe no financiamento a privados para investir no Serviço Nacional de Saúde”, “maximizado os recursos existentes”. Passou um ano e nada se viu neste aspecto, pelo contrário. A posição do Governo na discussão da lei de bases que está em curso inquieta.
Entretanto, a campanha em relação ao SNS prossegue. Protestam contra a passagem às 35 horas de trabalho, não porque “o SNS não estava preparado”, há sete anos era assim, mas porque o que querem mesmo é que as pessoas trabalhem mais, está no ADN do poder de direita. E a quem serve a campanha? Seguramente aos privados, pois quem lê tais títulos e notícias fica amedrontado e corre a fazer seguro de saúde e a ser cliente de privados. Mais sinistro ainda: quem é doente da área de oncologia, seja em crianças (felizmente poucas centenas a nível nacional, dispondo de seis instituições de alto nível), seja em adultos, apavorado como é natural em relação a estas patologias, procura em redor uma salvação e vai comprar serviços a privados de custos elevados, não hesitando em endividar a família para o fazer. É a lei do mercado. Ora, quem nessas circunstâncias de doença foi tratado ou curado nos hospitais públicos sabe a gratidão com que ficou aos serviços prestados.
Esta campanha serve pois interesses privados e é mais do que hipócrita, enganadora. Mas os defensores verdadeiros e coerentes do SNS também não podem demitir-se de estar alerta em relação às derivas e às promessas por cumprir.
Médica; professora da Faculdade de Medicina de Lisboa; activista política

quinta-feira, 19 de julho de 2018

A GUERRA COLONIAL




NOTA: Para quem viveu a repressão violenta e criminosa do fascismo e a Guerra Colonial na pele, ao assistir agora em VRSA ao branqueamento quer de fascistas quer da guerra em actos e palavras não pode deixar de ficar indignado e preocupado com o conteúdo moral e político de certas figuras públicas.
Públicas só pelas circunstâncias e cargos que ocupam. Este artigo publicado hoje pelo Capitão de Abril Vasco Lourenço não podia vir mais a propósito.
MC





A Guerra Colonial ainda não acabou?
A promoção de Marcelino da Mata, a existir, constituirá uma enorme vergonha para o Portugal de Abril.
19 de Julho de 2018   Vasco Lourenço
A História das Nações e o posicionamento dos respectivos povos, perante os diversos acontecimentos do seu percurso colectivo, tem relações que nem sempre são consensuais, acontecendo muitas vezes que o entendimento dos factos é mais fruto das circunstâncias de quando é formulado do que propriamente resultado de um “sentir a Pátria”.
Não são poucas as situações em que o entendimento de acções praticadas varia consoante as épocas e as modas prevalecentes. Nem sempre o “politicamente correcto” é entendido da mesma maneira, havendo mesmo situações onde o que ontem foi incensado hoje é proscrito. E vice-versa, como é natural. Aliás, sabe-se bem que o herói de hoje pode ser o traidor de amanhã, como o inverso também acontece.
Nestes dias assistimos à enorme polémica sobre a questão dos Descobrimentos e da Escravatura (com o respectivo tráfico de escravos).
As conjunturas levam-nos a denegrir o que outrora foi incensado, só porque pode parecer mais “in”, pode dar-nos mais votos, especialmente dos que votam mais influenciados pelo populismo, pelas modas de ocasião, do que pelo discernimento e compreensão.
Não vou aqui tratar deste tema – não é que o mesmo me não interesse e sobre ele não tenha posição –, mas irei tratar especificamente a questão da Guerra Colonial, de que Portugal foi um dos principais protagonistas, durante 13 anos (entre 1961 e 1974).
Durante esses anos, longos anos, os portugueses lutaram, mataram e morreram em três “teatros de operações”, em Angola, na Guiné e em Moçambique.
Aí se envolveram um milhão de portugueses, oriundos de todo o então território nacional, aí morreram mais de dez mil “soldados e marinheiros”, daí regressaram várias dezenas de milhares de deficientes (mentais e físicos), aí se viveram enormes dramas, mas também algumas alegrias, fruto das derrotas e das vitórias parciais que se obtiveram. Aí se constituíram autênticos heróis, habilmente explorados pelo regime fascista-colonialista, mas aí se cometeram igualmente autênticos crimes de guerra.
É da natureza da guerra, não gosto de condenar os que cometeram exageros, pois costumo afirmar que o exagero está na própria existência da guerra, não dos que, fruto das circunstâncias, os cometem.
Estou à vontade, pois fiz a guerra na Guiné, vivi momentos bem difíceis e até dramáticos, mas tive a sorte de não me envolver em nenhuma acção de que mais tarde me viesse a envergonhar.
Há que clarificar, contudo, que distingo bem os exageros que a própria dinâmica da guerra provoca e os exageros que nenhuma guerra deveria provocar.
Partindo do princípio de que os objectivos não podem justificar todos os meios – nem mesmo nas guerras –, esses exageros só acontecem devido ao mau carácter dos seus autores. A sua má formação ética e moral não resiste ao ambiente da guerra e faz surgir os seus instintos assassinos...
Foi pelo facto de nessa altura os crimes de guerra não serem tão condenados como posteriormente o vieram a ser, que muitos dos actos praticados na Guerra Colonial aqui tratada viriam a ser escondidos através de condecorações por bravura e heroicidade.
Tivemos, é certo, os massacres de Wiriamu em Moçambique, que criaram fortes engulhos ao regime de Salazar/Caetano, mas a censura, por um lado, e os tempos de então, por outro, mantiveram os crimes cometidos num quase anonimato total.
Como teria sido, por exemplo, se o ataque a Conacri se verificasse hoje, com a prática de crimes que os portugueses invasores perpetraram na capital da Guiné-Conacri? A que condenações públicas internacionais assistiríamos, suportadas em enormes campanhas “publicitárias”!
O 25 de Abril de 1974 veio permitir a resolução do problema colonial, adaptando-se a posição portuguesa ao comum entendimento internacional, levando Portugal a reconhecer o direito de todos os povos à autodeterminação e independência.
Isso permitiu o acordo de cessar-fogo, o fim das hostilidades, o reconhecimento do nascimento de novos países e a transmissão do poder, de forma pacífica, para os responsáveis desses novos países de língua portuguesa. Portugal dignificou-se no seio da comunidade internacional, a guerra foi esconjurada, considerada ilegítima e maldita. E os heróis de ontem passaram a estar na sombra, procurando todos esquecer...
O sentimento de que os combatentes haviam cumprido o dever que o seu país, através do que os que detinham o poder (mesmo que ilegítimo e contestado) lhe impunham – naturalmente, “apoiado”, pelo facto dos autores da libertação (os Capitães de Abril) também terem feito a guerra, também serem combatentes –, permitiu uma transição pacífica da ditadura para a democracia e colocou entre parêntesis o próprio fenómeno da guerra.
E assim temos vivido, com a inserção dos combatentes, nomeadamente dos deficientes, na sociedade. Apesar de, de vez em quando, os saudosos da “outra senhora” deitarem as garras de fora, tentando instrumentalizar os combatentes para atitudes menos pacíficas.
O facto é que a sociedade portuguesa democratizou-se, adaptou-se às novas regras e a convivência entre todos tem sido um facto.
Por isso, não posso aceitar, e contesto veementemente, as sucessivas tentativas saudosistas do passado, dos ressabiados pela construção da democracia, dos que não aceitam a liberdade de todos e a igualdade de direitos dos antigos colonizadores e antigos colonizados, em trazerem à luz do dia fenómenos de todo em todo desactualizados, inoportunos e inaceitáveis.
Temos assistido a condecorações, passados mais de 40 anos, por actos que, em termos de guerra absoluta, até merecerão ser reconhecidos, mas que – hoje, passados todos estes anos – deveriam enterrar-se de vez. Continua, de facto, a haver quem não queira esquecer, nem permitir que os outros esqueçam, a Guerra Colonial.
Não vou desenterrar outros lamentáveis episódios de promoções e condecorações a que já assistimos. Venho é manifestar-me totalmente contrário, aqui acentuando o meu profundo protesto, contra a hipotética promoção, por distinção, do militar Marcelino da Mata – oriundo da Guiné-Bissau, com nacionalidade portuguesa, já promovido por distinção a capitão, graduado em tenente-coronel – a major.
Porquê?, pergunto. Para o graduarem em coronel ou, quem sabe, general? Para quê?
Porque acredito nos princípios de quem fez a proposta, creio que o senhor general Chefe de Estado-Maior do Exército não sabe dos crimes de guerra que o então sargento Marcelino da Mata praticou na Guiné, com especial relevo no referido ataque a Conacri (e não só, como afirmo na página 44 do meu livro Do Interior da Revolução).
Não quero acreditar, como não acredito, que os diversos responsáveis – ministro da Defesa Nacional, primeiro-ministro, Presidente da República – aprovem a decisão de o promover, se souberem bem o que aconteceu.
Como então, quando foram cometidos esses crimes de guerra (resultado da acção de autênticos assassinos) envergonharam muitos dos militares que deles tomaram conhecimento, esta promoção, a existir, constituirá uma enorme vergonha para o Portugal de Abril!
Por mim, para além de estar disponível para quaisquer esclarecimentos, faço sinceros votos para que se não façam mais quaisquer tentativas para justificar e legitimar uma guerra que, por mais anos que passem, se mostra cada vez mais inútil, ilegítima e injustificável.
Como, aliás, acontece com todas as guerras...!

sábado, 24 de fevereiro de 2018

DEMOCRACIA E POPULISMOS



Face à subida eleitoral na UE dos partidos chamados "populistas", direita pura e fascizante, tocam campainhas de alarme e, ainda timidamente, começa-se a colocar o dedo nas causas, quer partidárias quer sociais.

Esta reflexão sobre a nossa realidade é oportuna e um contributo mais para "nos esclarecermos". Adapte-se o conteúdo deste artigo a VRSA e encontraremos "coincidências" inquietantes.

MC


“Há em Portugal uma cultura de compadrio”
Conceição Pequito conclui que a qualidade da democracia portuguesa é má porque os partidos monopolizam as listas eleitorais e vivem da cartelização do Estado. Alerta também para o outsourcing legislativo do Parlamento associado aos deputados-advogados.
24 de Fevereiro de 2018

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Num país onde não há populismo, os impulsos populistas são canalizados pelo Presidente com a sua proximidade, defende Conceição Pequito Teixeira, autora do livro Qualidade da Democracia Portuguesa, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, no qual identifica as razões da má qualidade da democracia portuguesa. Em entrevista ao PÚBLICO, a professora alerta para a importância do pacote sobre transparência e defende que o “outsourcing legislativo” é a “devolução de um poder a privados”.
No seu livro diz que a qualidade da democracia é má. Porquê?
Há uma esmagadora maioria dos cidadãos que apoia em abstracto o regime político, o que não acontece na generalidade das novas democracias surgidas após a queda do Muro de Berlim. Esta adesão quase total aos princípios e aos valores basilares da democracia num país que teve 48 anos de Estado Novo, este apoio normativo ao regime é importante.
Mas depois a qualidade é má...
Nos indicadores sobre a percepção dos cidadãos em relação a como funciona a democracia na prática, as suas principais instituições ou a classe política, a avaliação não podia ser pior do que é e, contrariamente às democracias mais recentes, mostramo-nos bastante mais envelhecidos. Os níveis de desconfiança em relação aos partidos são muito superiores.
Conclui que a responsabilidade primordial da má qualidade da democracia é da partidocracia. De que forma os partidos estão a prejudicar a democracia?
Através do monopólio da representação política que continuam a ter para a Assembleia da República. Falo disto, mas não é no sentido de acabar com ele, no que se refere a só os partidos poderem apresentar candidatos à Assembleia e não poder haver listas de grupos de cidadãos como há nas autárquicas. Tenho muitas dúvidas que a solução pudesse passar por aí, acho-a muito difícil e caótica. O monopólio dos partidos, se fosse assumido com um conjunto de mecanismos que não o tornassem por si só um bloqueio, seria interessante.
É nesse sentido que fala da alteração da lei eleitoral?
É. Se os partidos, ao terem de escolher os candidatos, tivessem normas claras, precisas, objectivas de como escolher, de como os ordenar nas suas listas. Repare a situação que temos, que é muito rara nas democracias europeias: quando votamos nas legislativas, estamos a votar nas decisões que o partido tomou dentro de muros sobre quem é candidato e o seu lugar na lista. E, quando votamos, limitamo-nos a ratificar as escolhas feitas por outrem. Por isso é que digo que o interessante é partilhar entre os partidos e os cidadãos este poder de escolher quem nos representa no Parlamento.
Fala de as pessoas poderem ordenar os nomes?
Exactamente. Ter-se-ia de fazer uma divisão do território eleitoral diferente. O interessante era o território ser redesenhado com círculos eleitorais com uma magnitude entre seis a dez candidatos e que o eleitor no boletim tivesse o nome do partido, os nomes dos candidatos e pudesse reordenar as escolhas feitas pelo partido. Assim, as escolhas dos cidadão efectivamente influenciavam quem entrava no Parlamento.
A discussão é recorrente, já houve estudos e propostas do PS e do PSD nunca aprovados. Os partidos não querem mudar as regras do jogo?
Os partidos não querem mudar as regras do jogo. A discussão já foi muito viva, agora é menos, porque as pessoas já perceberam que não passa de retórica. Os principais partidos têm ganhos com este sistema eleitoral. Sendo proporcional, beneficia os maiores partidos devido ao método de Hondt. E os mais pequenos também não têm muita simpatia por fórmulas que vão no sentido maioritário. Mas o problema sério que nós temos é de proximidade do eleito face ao eleitor.
No livro levanta também o problema da cartelização.
Um dos desvios partidocráticos que me parece mais sensível é o da cartelização dos maiores partidos. Já não se quer chegar só ao Parlamento, quer-se sobretudo chegar ao governo, porque temos cada vez mais a colonização do Estado pelos maiores partidos. A colocação de pessoal na administração pública intermédia, de topo, no sector empresarial do Estado, aquilo que são as ditas “profissões parapolíticas”. O que os americanos chamam o spoil system: quer-se ganhar as eleições para se distribuírem os despojos entre os vencedores. Os partidos vivem da patrimonialização do Estado.
Uma das suas conclusões é que não há fenómenos populistas. A popularidade do Presidente é uma canalização dos impulsos populistas de seguir um líder?
Tem tudo que ver. A partir de 2014, por toda a Europa, os partidos de recorte populista ganharam lugares. O populismo não é uma ideologia, tanto pode ser utilizado pela esquerda como pela direita. A divisão que o populismo faz é entre os que se apropriam da soberania do povo e a vontade geral do povo, como se fossem dois mundos incomunicáveis e intocáveis. A concepção da casta dos políticos e o “eles” e “nós”, é esta a fronteira.
E que é mitificada.
Exactamente. Esse discurso é também muito facilitado pelos meios de comunicação social, pela fulanização e pela simplificação. O populismo é um discurso simplificado, apresenta soluções fáceis para problemas complexos. E é caracterizado também pela proximidade entre os governantes e os governados, como se isso fosse um sinal de desapego ao poder, de o político continuar próximo das preocupações das pessoas. Acho que Marcelo Rebelo de Sousa encarnou esse papel da proximidade, a que ele acrescenta os afectos, mas podemos chamar-lhe uma proximidade popular e populista. Os afectos são talvez um populismo lusitano.
Mas essa canalização não é por razões puramente populistas?
O Presidente achou a fórmula certa, que é a de uma magistratura de proximidade, a que ele vai buscar o poder de que necessita em cada momento, como quando foi de Pedrógão Grande, em que o usou sem dó nem piedade. Ele legitima a sua interferência em áreas do Governo com base nessa popularidade de proximidade. Não lhe chamaria populismo, porque além da proximidade ele não usa só temas fáceis. O discurso dele não é tão simples.
Ou seja, não é populista mas canalizou os impulsos populistas?
Canaliza completamente. Nós, até ver, não temos populismo.
Como vê o pacote da transparência?
Juntaram muitos projectos de lei sobre questões que são contíguas, mas que deviam ser tratadas aprofundadamente e separadamente. Todas elas são importante. Talvez a mais importante não seja tanto a da regulamentação do lobbying; se for bem legislado, não acho mal. Mas o que descaracteriza a actividade dos órgãos de soberania é o outsourcing legislativo. E aqui entra a questão inevitável do deputado-advogado. De facto, temos um Parlamento cujas leis, as mais importantes, são feitas fora do próprio Parlamento, encomendadas por ajuste directo a grandes escritórios de advogados, nos quais trabalham advogados que são deputados. Então, quem faz as leis fora do Parlamento, o que já é uma aberração, vem aprová-las dentro do Parlamento.
Esse conflito de interesses deve ser travado?
Devia. Até admitia o outsourcing a título excepcional, quando as matérias são demasiadamente complexas. Agora, em termos recorrentes, acho um desvirtuar do poder legislativo e regulatório do Parlamento. É a devolução de um poder a privados, com tudo o que isto propícia a nível de conflito de interesses, de tráfico de influências. Parece-me o problema mais delicado. Havia uma possibilidade que era dotar de facto o Parlamento de um núcleo de assessoria jurídica especializada comum a todos.
Mas há assessorias.
Existem, por grupos parlamentares, e há assessores que podem ser assim chamados, mas no fundo são pessoas do partido, a quem se ofereceu um determinado tacho: “Tu fazes-me a campanha e eu levo-te para o Parlamento como assessor.” Mas com que qualidade? Com que especificidade? Consulte o perfil dos assessores e não encontra a matéria-prima de que precisa para legislar bem. E legislar mal significa a necessidade de rever leis para que se possam interpretar sem ser de forma dúbia.
E a exclusividade?
Sou contra a exclusividade da função parlamentar. Se eles já se dissociam tanto da sociedade, criar demasiadas incapacidades e incompatibilidades é afastar do Parlamento muitas profissões que são lá precisas. É bom que as pessoas tenham uma profissão, que a exerçam, que retornem a ela. Encararem a política como uma missão meritória, mas transitória. Quem quiser fazer dela a sua própria carreira optará pela exclusividade. Agora, uma exclusividade imposta pelo legislador parece-me um apelo a convidar os piores que estão nos partidos e a arranjar-lhes lugar no Parlamento. E se já não são nada bons os que lá estão...
Como vê os casos dos membros do Governo que se demitiram por investigações do Ministério Público ou por razões de ética?
Vamos ver muitos mais casos, se o pacote da transparência for aprovado. Quanto mais regras se fazem, mais regras se infringem. O que falta? Falta bom senso dos próprios. Há uma cultura na classe política portuguesa, independentemente até da qualificação académica, do estilo de vida que possa ter, que é o sentimento de impunidade. Os políticos em Portugal têm um desfasamento que é ainda não terem interiorizado que o tempo dos media é muito mais rápido, muito mais célere e escrutinador do que era. Eles pensam sempre que não é possível saber-se o que fazem, não há quem saiba. E, hoje, os media fazem um controlo e uma fiscalização política não só sérios, como a um tempo vertiginoso. Não há tempo para o próprio conceber a sua autodefesa. Por isso, é muito bom que, antes de aceitar presentes e convites, o político ponha o bom senso a funcionar e pense: “Posso fazê-lo, mas isto vai ser sabido.” A opacidade do exercício da política é muito própria do português, a ideia de que há coisas que não se sabem. Tudo se sabe hoje, os media sabem em tempo mais do que útil e escrutinam-no.
Em Inglaterra essa questão não se põe. Porque é que os políticos portugueses não têm esse bom senso?
Exactamente. Porque a cultura política inglesa não tem nada que ver com a nossa. Ainda agora um governante inglês se demitiu por chegar atrasado ao Parlamento para responder a uma pergunta. Acho que é excesso de zelo. Não queria tanto. Há em Portugal uma cultura de compadrio e de “aquele fez, eu faço, tu farás, nós fazemos”. Há sempre muita conjugação do verbo fazer nos diversos tempos verbais. É uma questão cultural que não é só da classe política.
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Qualquer pessoa que tenha experiência política ou que conviva com a vida pública, mesmo para lá da política, nas instituições e no Estado, sabe que há muitas práticas que, não sendo ilegais, são inaceitáveis em si mesmas e por maioria de razão para a imagem das instituições e dos homens. Refiro-me a esta coisa tão simples: o acesso a determinados tipos de poder, quase sempre pequenos poderes, permite utilizar lugares e funções em proveito próprio ou dos próximos. Insisto: não estou a falar de crimes, nem mesmo na maioria dos casos de evidentes ilegalidades — estou a falar de abusos e aproveitamentos, infelizmente tão comuns na vida pública portuguesa. Conheci muita gente, e não é retórica o “muita”, que quando acede a um lugar ou um cargo deixa de ter a economia que a maioria das pessoas sem poder tem. Arranja maneira de quase todas as despesas pessoais e nalguns casos dos seus familiares e próximos serem cobertas por dinheiros públicos, aumenta-se a si própria, de forma directa ou indirecta, através de alcavalas ou de prebendas, usa o poder que tem para beneficiar amigos, familiares ou pessoas a quem se devem favores ou se quer que fiquem a dever favores.
José Pacheco Pereira (conhece, sabe do quefala)