Uma campanha
travestida a respeito do SNS
É impossível
não criticar o Governo por aquilo que esperávamos que tivesse feito e não fez,
mas também é necessário tomar medidas de higiene em relação à direita.
31 de Julho
de 2018 Isabel do Carmo
No conjunto de títulos e de notícias que têm ocupado a comunicação social a
respeito da Saúde, podemo-nos perguntar se se trata de um debate, de uma defesa
do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ou de uma campanha de promoção dos serviços
privados e de uma perspectiva política de facto anti-SNS.
Recentemente, um velho amigo meu francês, de passagem por Lisboa,
telefonou-me num fim-de-semana a dizer que estava com uma dor no peito havia
duas horas e não sabia se havia de esperar por segunda-feira e procurar um
cardiologista. Disse-lhe para tomar um táxi o mais depressa possível e ir à
urgência do Hospital de Santa Maria ou do Hospital de S. José. Assim fez e
telefonou--me uns dias depois a explicar que tinha tido um infarto cardíaco e
tinha posto um stent na coronária. E comentou-me na sua
língua: “Cinco estrelas! Afinal, o que se passa com os hospitais não é nada do
que vem nos jornais.” (Sabe ler português.)
Mais uma vez se me colocou a questão de a quem é que serve o actual debate
sobre os serviços públicos de saúde e se aqueles que se situam à esquerda, tal
como eu, não poderão, se não tiverem cuidado, estar a lançar achas para a
fogueira dos outros. Percebo o dilema da esquerda parlamentar, que, tendo de
defender no lugar certo o SNS, na sua identidade, na sua sustentabilidade e no
seu futuro, não pode nem deve fazer coro com o ataque produzido pelo PSD e o CDS.
Estes partidos, a comunicação social que os acompanha e alguns organismos
profissionais que se integram na mesma narrativa não são defensores do SNS e
nunca o foram.
O discurso cheio de menções em defesa do SNS é verdadeiramente hipócrita e
repousa sobre a falta de memória da população em geral e da imprensa em
particular. Quando, em 1979, a Lei 56, a do SNS, chamada “Lei Arnaut”, foi ao
Parlamento, foi aprovada com os votos a favor do PS, do PCP, da UDP e do
deputado independente Brás Pinto. Votaram contra o PSD, o CDS e os deputados
independentes sociais-democratas. A posição contra este modelo de
redistribuição de um SNS universal e gratuito a partir do Orçamento Geral do
Estado, o qual é baseado em impostos progressivos, foi sempre a da direita. Em
1987, o PSD ganhou maioria absoluta e a sua orientação, liderada por Cavaco
Silva e inspirada pela onda neoliberal e os triunfos de Reagan e Tatcher em
1979/80, foi a de combate ao padrão identitário do SNS, tal como o Partido
Conservador fez em relação ao National Health Service inglês. Em 1990, já com
uma maioria parlamentar, o PSD e o CDS fizeram aprovar uma nova lei de bases
para a Saúde, com a porta aberta para os privados expressa em muito do
articulado, pois punha os serviços públicos “em articulação com os serviços
privados”. A lei do mercado para tudo e também para a Saúde. É este o filão que
constitui de facto o nó central da direita parlamentar e daqueles que a seguem
na comunicação social e em alguns grupos profissionais. Falarem na defesa do SNS
é uma mentira e um teatro. Alguns terão mesmo conflitos de interesses, dada a
sua ligação a empresas com fins lucrativos na área.
Quando a direita voltou a ter maioria parlamentar e governo, coincidindo
com a entrada da troika, passou a dizer que o Estado não tinha
dinheiro para pagar a saúde, falando como se o SNS fosse uma benesse oferecida
à população. A palavra solidariedade passou a paredes meias com a caridade e a
expressão “tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos”
atenuou o “tendencialmente gratuito”, como se os impostos donde provém o
Orçamento já não tivessem esse critério e não fosse esse o espírito da
redistribuição. E foi assim que prosperaram as “entidades privadas, sem ou com
fins lucrativos”, para “prestar cuidados de saúde”, expresso na lei de 1990. E
o Estado encarregou-se e encarrega-se de lhes comprar serviços. Passou a
acontecer o boom das grandes empresas privadas de Saúde. Não
se trata já de consultórios unipessoais, mas de entidades de negócio que
movimentam milhões.
Logo que tomou posse, o Governo ligado à direita parlamentar reduziu o
orçamento para a Saúde, que era em 2010 de 8699 milhões e em 2012 estava em
7525 milhões. E a participação das famílias passou ao seu máximo, 28%. Foi o
corte na Saúde, em nome das boas contas do défice. No entanto, se olharmos para
o caminho do dinheiro, ele desceu no público e subiu para o privado, como se de
vasos comunicantes se tratasse. A despesa corrente com os hospitais públicos
desceu de cerca de 5508 milhões de euros em 2010 para 4843 em 2015. No mesmo
período, a despesa do SNS com os hospitais privados subiu de cerca de 391
milhões de euros para 554. Os custos com meios auxiliares de diagnóstico e
terapêuticos (análises, radiologia, endoscopias) pagos através do SNS foram subindo
até 2015.
Foi este o legado do Governo da direita: não se trata da redução dos custos
em Saúde “porque não havia dinheiro” e “estávamos à beira da bancarrota”, mas
sim de uma inversão daqueles a quem se pagava, com o dinheiro do Estado e com o
dinheiro do bolso das famílias. Durante esse período de cinco anos de governo,
com o agravamento da situação social, houve comprovadamente mais anemias, mais
pneumonias de que foi dado o alerta. Em 2011 houve 27% mais chamadas para o
INEM relacionadas com comportamentos suicidários. Entre 2011 e 2012 a
prescrição de ansiolíticos e de antidepressivos aumentou em todas as idades e
foi o dobro neste período de tempo para as pessoas com mais de 65 anos. O
registo de sintomas de ansiedade e depressão em todas as idades a partir dos 15
anos passou para o dobro ou para cinco ou quatro vezes mais, conforme as
regiões.
O número de funcionários dos vários sectores na Saúde desceu 12%. As horas
de trabalho passaram a 40 semanais e, portanto, uma parte das horas
extraordinárias deixaram de ser pagas. Houve uma fuga de médicos e enfermeiros
para o estrangeiro.
Estes profissionais queixaram-se de burnout em publicações
próprias e em sessões públicas. Durante este período, as almas inquietas do PSD
e do CDS, que agora clamam pelos riscos de destruição de um SNS que eles afinal
não aprovaram, mantiveram-se tranquilas. Podiam não trazer o assunto para o Parlamento,
porque isso é a regra do jogo da competição política, mas ao nível individual
podiam expressar-se, indignar-se ou pelo menos inquietar-se. Mas não. E foi
este o legado que o Governo da “geringonça” recebeu.
E aqui insere-se o dilema que se coloca a todos aqueles que querem defender
o SNS. É impossível não criticar o Governo por aquilo que esperávamos que
tivesse feito e não fez, mas também é necessário tomar medidas de higiene em
relação à direita. O Ministério da Saúde ficou demasiado dependente das
Finanças; atrasou-se na abertura das unidades de saúde familiar; não teve uma
linha coerente para lidar com os profissionais. Sobretudo, não levou a cabo uma
resolução aprovada em Maio de 2017 na Assembleia da República que “recomenda ao
Governo que poupe no financiamento a privados para investir no Serviço Nacional
de Saúde”, “maximizado os recursos existentes”. Passou um ano e nada se viu
neste aspecto, pelo contrário. A posição do Governo na discussão da lei de
bases que está em curso inquieta.
Entretanto, a campanha em relação ao SNS prossegue. Protestam contra a
passagem às 35 horas de trabalho, não porque “o SNS não estava preparado”, há
sete anos era assim, mas porque o que querem mesmo é que as pessoas trabalhem
mais, está no ADN do poder de direita. E a quem serve a campanha? Seguramente
aos privados, pois quem lê tais títulos e notícias fica amedrontado e corre a
fazer seguro de saúde e a ser cliente de privados. Mais sinistro ainda: quem é
doente da área de oncologia, seja em crianças (felizmente poucas centenas a
nível nacional, dispondo de seis instituições de alto nível), seja em adultos,
apavorado como é natural em relação a estas patologias, procura em redor uma
salvação e vai comprar serviços a privados de custos elevados, não hesitando em
endividar a família para o fazer. É a lei do mercado. Ora, quem nessas
circunstâncias de doença foi tratado ou curado nos hospitais públicos sabe a
gratidão com que ficou aos serviços prestados.
Esta campanha serve pois interesses privados e é mais do que hipócrita,
enganadora. Mas os defensores verdadeiros e coerentes do SNS também não podem
demitir-se de estar alerta em relação às derivas e às promessas por cumprir.
Médica; professora da Faculdade de Medicina de Lisboa; activista política
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