José António Cerejo
Vogal do líder
do PSD-Algarve contrata-o para empresa municipal que gere
David Santos
fatura à Sociedade de Gestão Urbana do município de Vila Real de Santo António,
gerida por um companheiro do PSD, através de empresa comprada a offshores quando
não tinha actividade nem bens.
JOSÉ ANTÓNIO CEREJO
23 de Julho
de 2018
David
Santos VASCO
CÉLIO/LUSA
Cinco meses antes de ser contratado como consultor de uma empresa municipal
de Vila Real de Santo António, dirigida por um dos seus vogais na distrital do
PSD-Algarve, David Santos comprou a imobiliária Tesaba, uma empresa
praticamente inactiva, a duas offshores cujos proprietários
diz desconhecer. O contrato que regula a prestação de serviços do líder
social-democrata e ex-presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento
da Região do Algarve à empresa municipal VRSA - Sociedade de Gestão Urbana (SGU)
foi adjudicado à Tesaba por ajuste directo, dois dias antes da entrada em vigor
de uma lei que proíbe este tipo de contratação.
Foi tudo muito rápido. A 22 de Dezembro do ano passado, pelas 15h56, a VRSA
– SGU envia um email a David Santos em que o convida a apresentar uma proposta
para prestação de serviços por ajuste directo na área do Urbanismo e
Ordenamento do Território. Dia 22 é uma sexta-feira. Segue-se o fim-de-semana e
na segunda é dia de Natal. O prazo fixado pela empresa municipal para entrega
da proposta é dia 27 até às 16h. É curto. Não chegam a ser dois dias úteis. Mas
David Santos não precisa de tanto tempo. A proposta por ele subscrita em nome
da Tesaba entrou às 10h07 do dia 27.
Nesse mesmo dia, um técnico da
VRSA-SGU analisou-a e redigiu o “projecto de decisão” de adjudicação, bem como
a minuta do respectivo contrato. Ainda nesse dia, o “gestor do
procedimento” elabora a proposta de adjudicação, dirigindo-a a Pedro Finote
Pires, administrador-delegado da empresa municipal. Finalmente, ainda no dia
27, Pedro Pires proferiu o seu despacho de concordância, autorizando a
celebração do contrato.
Embora o gestor tenha entendido não explicar ao PÚBLICO as razões
desta corrida contra o tempo, o calendário regista um facto: dois dias úteis
depois, no dia 1 de Janeiro, entrou em vigor uma alteração ao Código dos
Contratos Públicos que proíbe a realização de ajustes directos, em casos como
este, para contratos de valor superior a 20 mil euros. Nessas situações, o
único procedimento autorizado passou a ser a consulta prévia a pelo menos três
fornecedores.
A lei, publicada em Agosto do ano passado, previa no entanto, uma ressalva.
Aos contratos cujos procedimentos tivessem sido iniciados antes de 31 de Dezembro
de 2017 não se aplicava a nova regra, mesmo que eles só fossem assinados depois
dessa data. No caso da contratação da Tesaba/David Santos, o procedimento foi
formalmente iniciado a 11 de Dezembro, dia em que a Administração da VRSA - SGU
aprovou a sua abertura e o contrato foi assinado a 3 de Janeiro, por Pedro
Pires e David Santos. O que significa que, se a intenção era escapar à
obrigatoriedade de consultar três entidades, não havia motivo para tanta
pressa.
Mais fácil de entender parece o facto de o valor da prestação de serviços
contratada ser de 74.950 euros. É que a lei então em vigor estabelecia um tecto
máximo para os ajustes directos de 75.000 euros. Acima desse valor já era
obrigatório o lançamento de um concurso.
Confrontado com a diferença de 50 euros entre o valor do contrato e o
máximo então permitido para os ajustes directos, Pedro Pires também não
explicou o que levou a empresa municipal, detida a 100% pela Câmara de Vila
Real de Santo António, a definir aquele valor como preço-base do procedimento.
O administrador-delegado da empresa, além de vice-presidente concelhio do PSD
em Vila Real de Santo António, é um dos oito vogais da Comissão Política do PSD
Algarve, presidida por David Santos.
Questionado sobre o facto de a Tesaba ter sido a única entidade convidada a
apresentar uma proposta de prestação de serviços, ainda que a lei não obrigasse
a convidar mais do que uma, respondeu que “foram cumpridos todos os
requisitos formais" para o fazer. Por outro lado, acrescentou, “a VRSA -
SGU sentiu que não tinha nos seus quadros ninguém que conjugasse conhecimentos
científicos sólidos e uma experiência profissional vasta” na gestão de
processos urbanísticos e estivesse disponível para responder às necessidades.
“Foi assim que nasceu o interesse na contratação da Tesaba, uma vez que tal
entidade, através do seu gerente, eng. David Santos, que, assumindo
directamente a prestação de serviços da Tesaba com a VRSA- SGU empresta a este
contrato as valias acima identificadas uma vez que, ao nível dos conhecimentos
científicos, o eng. David Santos apresenta uma licenciatura em Engenharia Civil
pelo Instituto Superior Técnico e uma pós-graduação em Direito do Urbanismo e
Construção pela Faculdade de Direito de Lisboa. Quanto à experiência
profissional o referido engenheiro prima por ter sido vereador de Obras da CM
de Faro, Presidente da FAGAR (empresa municipal de Faro) e (…) ter sido, ainda,
presidente da presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional
do Algarve [CCDRA]”,
Na proposta apresentada pela Tesaba, David Santos salienta a experiência da
empresa, designadamente na “execução de projectos, consultadoria a diversas
operações urbanísticas quer em entidades públicas quer privadas”, a que acresce
o seu currículo pessoal.
Sucede que no currículo da empresa, anexo à proposta, o ex-presidente da
CCDRA, que foi demitido em 2016 pelo actual Governo, refere apenas cinco
pequenos trabalhos, dois dos quais “em execução”. Ao todo são nove linhas de
“currículo resumido", sendo que nenhum deles tem a ver com o sector
público. No portal dos contratos públicos, criado em 2008, só consta aliás um
contrato em nome da Tesaba: precisamente aquele que foi celebrado com a VRSA -
SGU.
Confirmativas da quase nula actividade da sociedade são as contas que ela,
como todas as empresas, deposita anualmente no registo comercial. Nos últimos
três anos a rubrica de “vendas e serviços prestados” regista sempre 6300 euros
e os gastos com pessoal são inexistentes.
“Decisões pessoais”
A Tesaba foi constituída em 2004 e nasceu pela mão de Miguel Caetano de
Freitas, um avogado de Oeiras com experiência na criação de offshores,
cujo nome apareceu recentemente nos chamados Panama papers. Dos
seus proprietários sabe-se apenas, pelo registo comercial, que eram duas
sociedades com sede em Gibraltar: a Frognel Holdings e a Hersant Investments. O
seu primeiro gerente foi o próprio Caetano de Freitas, que no ano seguinte foi
substituído por Élia Apolo, a advogada de Almancil que se manteve em funções até
Agosto do ano passado. Nessa altura, a imobiliária, cuja sede era o escritório
da advogada-gerente, foi comprada por David Santos e pela mulher, que ficaram
com 60% do capital, e por duas cunhadas, que ficaram com 20% cada.
David Santos assumiu a gerência, a sede passou para o seu domicílio, e
quatro meses depois foi em nome dessa empresa que a VRSA-SGU o contratou. A
decisão de o contratar, segundo o próprio disse a PÚBLICO, foi tomada pela
administração da empresa municipal, presidida por inerência pela social-democrata
Conceição Cabrita, presidente da câmara local, no dia 11 de Dezembro. Dois dias
antes, David Santos havia sido reeleito presidente do PSD Algarve e Pedro
Finote Pires, o administrador-delegado que formalizou a sua contratação, havia
sido eleito vogal da sua comissão política.
Solicitado a esclarecer o que é que o levou a comprar uma empresa
desconhecida, sem actividade e sem activos conhecidos, através da qual foi
contratado pela VRSA - SGU, David Santos respondeu: “trataram-se de decisões pessoais.”
Sobre a identidade dos vendedores, afirmou: “Não sei quem são. Tratei de tudo
com a advogada.”
Sobre a hipótese de se lhe ter colocado algum problema “meramente ético”
por ser contratado, nas circunstâncias em que o foi, por uma empresa de
capitais públicos dirigida por um dos seus vogais na direcção do PSD-Algarve,
respondeu indirectamente: “Recebi um convite da VRSA – SGU, após deliberação do
seu conselho de administração (composto por três membros) de 11/12/2017.”
Pedro Pires, por seu turno, disse ao PÚBLICO que “o convite à Tesaba e a
sua contratação afigurou-se como totalmente legal, necessário e uma mais-valia
técnica cuja adequação às necessidades identificadas a VRSA – SGU não
vislumbrou em nenhuma outra entidade”.
Um contrato em
que vale tudo
Nenhuma das
partes esclareceu qual é o valor mensal a pagar.
JOSÉ ANTÓNIO CEREJO
23 de Julho
de 2018
PEDRO CUNHA
Com um valor de 74.950 euros, o contrato celebrado entre David Santos e a
VRSA - SGU é daqueles que podem ser interpretados à vontade do
freguês. Lendo o articulado contratual, bem como o caderno de encargos, a
proposta de David Santos, o anúncio da celebração do contrato no portal
Base e as explicações dadas ao PÚBLICO pela empresa municipal, fica-se
quase na mesma. A única coisa que parece clara é que David Santos poderá
receber no máximo de 74.950 euros (mais IVA), divididos em prestações mensais.
Mas não se sabe ao certo qual é o valor e o número dessas prestações.
No entanto, daquele emaranhado de versões resulta que esse valor e número
dependerão exclusivamente da vontade das partes. De acordo com o
aministrador-delegado da VRSA–SGU, Pedro Pires, o pagamento terá de ser feito
“em prestações mensais”, pelo que não poderá ser feito “de uma só vez”, e o
total a pagar poderá ser inferior ao valor do contrato. O resto são
contradições entre os diferentes documentos e explicações.
No anúncio do portal Base lê-se que o “prazo de execução” do serviço
será de “365 dias”, o que faz supor que cada prestação mensal atingirá os 6245
euros. Já no texto contratual, também publicado, consta que o “montante
total" a pagar será de “74.950, dividido em prestações mensais" e que
“o contrato mantém-se em vigor pelo período de um ano, prorrogável por igual
período até um máximo de duas prorrogações anuais (…) ou até que seja esgotado
o valor contratual (…)”
Mas as dúvidas adensam-se, se atentarmos na proposta apresentada por David
Santos e aceite pela VRSA-SGU. "(...) A nossa proposta será de 3000 euros
mensais, acrescido de IVA à taxa legal em vigor (pelo período de 24 meses) a
que acrescerão as despesas e alojamento (...) até ao valor total de 74.950
euros", lê-se no documento.
E se formos ao caderno de encargos que serviu de base à contratação,
e faz parte do contrato, lemos que 74.950 euros é o "valor correspondente
ao prazo máximo do contrato, já incluindo as renovações previstas”, valor esse
que "é dividido em prestações mensais até ao prazo máximo do
contrato". Sendo esse prazo de três anos poderá concluir-se que a
prestação mensal (independentemente das despesas apresentadas) será de 2082
euros.
Sobre todas estas incongruências, Pedro Pires alegou que o prazo de 365
dias inscrito no portal Base é um “mero lapso dos serviços que será
corrigido assim que possível” e que “nos primeiros meses da prestação de
serviços” foi pago a David Santos “um valor coincidente com a proposta
apresentada e adjudicada", ou seja, 3000 euros mais IVA e despesas.
Contudo, acrescenta Pedro Pires, “nos últimos meses o volume de trabalho do
prestador de serviços diminuiu, tendo as partes acordado baixar o valor da
prestação mensal, em função do volume de trabalho”.
A estas explicações da empresa municipal, David Santos acrescentou um
outro dado: “O valor da prestação mensal não pode ser superior ao valor mensal
constante do contrato.” O que nenhuma das partes esclareceu foi qual é, afinal,
esse valor.
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