2022 um ano decisivo para a
democracia nos EUA
Nas colunas
dos mais importantes jornais norte-americanos fala-se abertamente sobre os
riscos de uma guerra civil nos Estados Unidos. Em 2022, esses avisos vão ser
postos à prova por uma série de decisões do Supremo Tribunal e pelas eleições
intercalares de Novembro.
27 de
Dezembro de 2021
Um ano
depois da invasão da sede do Congresso norte-americano por apoiantes de um
Presidente dos Estados Unidos em exercício de funções, a corrosão acelerada da
democracia americana é hoje uma realidade sobre a qual trabalham vários observadores
e estudiosos independentes.
Em Janeiro
de 2021, nos dias que se seguiram à invasão do Capitólio por
cidadãos norte-americanos — um episódio sem precedentes na História dos EUA —, os discursos de
condenação do ataque, por parte dos líderes do Partido Republicano, criaram a
esperança de que o processo de deterioração da democracia podia ser revertido.
“Cidadãos
americanos atacaram o seu próprio Governo”, disse
o líder dos republicanos no Senado, Mitch McConnell, na votação final do segundo
processo de destituição de Donald Trump, a 13 de Fevereiro de 2021. “Agiram
dessa forma, porque foram alimentados com falsidades delirantes pelo homem mais
poderoso na Terra — que estava zangado por ter perdido uma eleição.”
No mesmo
dia, McConnell votaria contra
a condenação de Trump, permitindo
que o responsável moral pelo ataque ao Capitólio (segundo as suas próprias
palavras) pudesse voltar a candidatar-se à Casa Branca em 2024. Mas havia a
esperança de que o discurso do líder republicano fosse suficiente para trazer
de volta à realidade os eleitores que acreditaram nas “falsidades delirantes”
de Trump (também segundo as suas palavras de McConnell).
De acordo
com as leituras mais optimistas da altura, as queixas de fraude eleitoral (nunca provadas em dezenas
de processos nos tribunais e desmentidas por todas as
recontagens e auditorias, incluindo por apoiantes de Trump) iam acabar por desaparecer com o
passar do tempo, como tantas outras crises políticas e constitucionais no
passado — à excepção dos anos que antecederam a guerra civil norte-americana,
de 1861-1865.
“Sobrevivência do país”
Se o ano de
2021 marcou o fim da ilusão de
que Joe Biden — ou, para
esse efeito, Barack Obama, Oprah Winfrey ou Lincoln ressuscitado — seria capaz
de salvar os EUA de uma corrida acelerada em direcção a um futuro
potencialmente explosivo, o ano de 2022 será decisivo para se perceber até que
ponto ainda é possível salvar a democracia americana de uma divisão tão
profunda como a que originou a guerra civil de 1861-1865.
Numa
sondagem da Universidade de Harvard, publicada no início de Dezembro, só 7% dos jovens
norte-americanos dos 18 aos 29 anos consideram que o estado da democracia no
país é “saudável”. A maioria, 52%, diz que a democracia está “em apuros”, ou é
mesmo já uma “democracia falhada”.
E a
percentagem é muito mais elevada entre os jovens republicanos do que entre
democratas e independentes — o que reforça a ideia de que as queixas infundadas
de fraude eleitoral lançadas por Trump passaram a fazer parte das crenças mais
profundas no Partido Republicano. Segundo a sondagem, 70% dos jovens
republicanos dizem que a democracia norte-americana está em risco, e 50% pensam
que há pelo menos 50% de hipóteses de virem a assistir a uma guerra civil no
seu tempo de vida.
Numa
outra sondagem, da Universidade da Virgínia, publicada em Outubro, mais de 80% dos inquiridos em
cada um dos partidos dizem que os representantes eleitos do partido adversário
representam “um perigo iminente para a democracia americana”.
“Não é
nenhum exagero dizer que é a sobrevivência do país que está em jogo”, diz Dana
Milbank, um colunista do The Washington Post que foi correspondente na
Casa Branca durante a Administração de George W. Bush.
“Se conhecem
pessoas que ainda estão em negação sobre a crise da democracia americana”, continua
Milbank no seu artigo, publicado a 17 de Dezembro, “tenham a gentileza de lhes tirar
a cabeça da areia durante o tempo suficiente para que ouçam esta mensagem: uma
nova descoberta surpreendente, feita por uma das principais autoridades do país
em guerras civis no estrangeiro, diz que nós estamos à beira da nossa própria
guerra civil.”
A descoberta
a que o colunista do Post se refere faz parte de um livro com publicação
agendada para Janeiro de 2022, escrito por Barbara
F. Walter, uma
professora de Ciência Política na Universidade da Califórnia que integra um
painel de aconselhamento da CIA sobre a instabilidade nos vários países do
mundo — a Political Instability Task Force.
“Ninguém
quer acreditar que a sua amada democracia está em declínio, nem que esteja a
caminhar para uma guerra”, diz Walter. “Mas se você fosse um analista de um
país estrangeiro atento aos acontecimentos na América — como se estivesse a
olhar para a Ucrânia, a Costa do Marfim ou a Venezuela —, iria usar uma lista
predefinida para avaliar as condições que tornam provável o início de uma
guerra civil. E iria descobrir que os Estados Unidos, uma democracia fundada há
mais de dois séculos, entrou num terreno muito perigoso.”
Segundo a
análise de Walter, os EUA já passaram pelas fases de “pré-insurgência” e de
“conflito incipiente” — duas das três categorias que o seu painel usa para
avaliar os riscos de uma guerra civil em qualquer outro país no mundo. “Só o
tempo dirá”, acrescenta Milbank, “se a fase final, a da ‘insurgência aberta’,
começou com a invasão do Capitólio.”
Supremo e eleições
Em 2022, há
pelo menos dois acontecimentos que devem ser acompanhados com atenção para se
perceber se os avisos catastrofistas sobre o futuro da democracia americana vão
ficar mais perto de se tornarem realidade: a decisão final do Supremo Tribunal
dos EUA sobre o direito ao aborto no país, que vai ser conhecida em Junho ou
Julho; e as eleições intercalares de Novembro.
Numa audiência
preliminar, no início de Dezembro, a maioria conservadora no Supremo adiantou que pode
vir a devolver às assembleias legislativas dos 50 estados norte-americanos a
autoridade para decidirem, cada uma por si, em que circunstâncias podem as
mulheres ter direito a um aborto em condições de segurança.
Na prática,
essa decisão iria pôr fim à consagração da interrupção da gravidez, em
determinadas circunstâncias, como um direito constitucional — que existe nos
EUA desde 1973. Ao mesmo tempo, aprofundaria ainda mais as divisões no país, no
auge das campanhas eleitorais.
E as
eleições de Novembro de 2022 são vistas, a esta distância, como muito
importantes para o futuro da democracia dos EUA, apenas dois anos antes da
eleição presidencial de 2024.
É provável
que o Partido Republicano recupere a maioria nas duas câmaras do Congresso, o
que lhe dará ainda mais margem de manobra para continuar a aprovar, nos estados
mais conservadores, leis eleitorais que
tornam legais muitas das pressões feitas por Trump, em 2020, no sentido de impedir a
vitória de Biden.
“Na eleição
presidencial de 2024, não haverá uma repetição dos acontecimentos de 6 de
Janeiro de 2021”, diz Lawrence Douglas, professor de Direito na Universidade de
Amherst, num
artigo publicado no jornal Guardian, a 17 de Dezembro. “Quando o Congresso abrir os votos
do Colégio Eleitoral, a 6 de Janeiro de 2025, o golpe estará consumado. Se isso
acontecer, é porque o golpe foi preparado antecipadamente nos gabinetes dos
responsáveis eleitorais nos estados mais disputados. E isso está a ser escrito
neste preciso momento.”
Em Junho de
2020, o mesmo Lawrence Douglas dizia, em entrevista ao PÚBLICO, que era “impossível imaginar Trump
a aceitar uma derrota nas eleições” — o que poucos se atreviam a dar como certo
na altura, e que viria a acontecer cinco meses mais tarde.
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