Os perigos da desordem jurídica
Boaventura Sousa Santos
26/03/2016
Nem o juiz Carlos Alexandre é o juiz
Sérgio Moro, nem o Correio da Manhã ou a TVI são a Rede Globo, mas as
estruturas profundas do caso José Sócrates e da Operação Lava-Jato revelam
algumas semelhanças inquietantes
Quando, há quase
trinta anos, iniciei os estudos sobre o sistema judicial em vários países, a
administração da justiça era a dimensão institucional do Estado com menos
visibilidade pública. A grande exceção eram os EUA, devido ao papel fulcral do
Tribunal Supremo nas definições das mais decisivas políticas públicas. Sendo o
único órgão de soberania não eleito, tendo um carácter reativo (não podendo, em
geral, mobilizar-se por iniciativa própria) e dependendo de outras instituições
do Estado para fazer aplicar as suas decisões (serviços prisionais,
administração pública), os tribunais tinham uma função relativamente modesta na
vida orgânica da separação de poderes instaurada pelo liberalismo político
moderno, e tanto assim que a função judicial era considerada apolítica.
Contribuía também para isso o facto de os tribunais só se ocuparem de conflitos
individuais e não coletivos. Pouco se sabia como funcionava o sistema judicial,
as características dos cidadãos que a ele recorriam e para que objetivos o
faziam. Tudo mudou desde então até aos nossos dias. Contribuíram para isso,
entre outros fatores, a crise da representação política que atingiu os órgãos
de soberania eleitos, a maior consciência dos direitos por parte dos cidadãos e
o facto de as elites políticas, confrontadas com alguns impasses políticos em
temas controversos, terem começado a ver o recurso seletivo aos tribunais como
uma forma de descarregarem o peso político de certas decisões. Por todas estas
razões, surgiu um novo tipo de ativismo judiciário que ficou conhecido por
judicialização da política e que inevitavelmente conduziu à politização da
justiça.
A grande visibilidade pública dos
tribunais nas últimas décadas resultou, em boa medida, dos casos judiciais que
envolveram membros das elites políticas e económicas. O grande divisor de águas
foi o conjunto de processos criminais que atingiu quase toda a classe política
e boa parte da elite económica da Itália conhecido por Operação Mãos Limpas.
Iniciado em Milão em abril de 1992, consistiu em investigações e prisões de
ministros, dirigentes partidários, membros do parlamento (em certo momento
estavam a ser investigados cerca de um terço dos deputados), empresários,
funcionários públicos, jornalistas, membros dos serviços secretos acusados de
crimes de suborno, corrupção, abuso de poder, fraude, falência fraudulenta,
contabilidade falsa, financiamento político ilícito. Dois anos mais tarde
tinham sido presas 633 pessoas em Nápoles, 623 em Milão e 444 em Roma. Por ter
atingido toda a classe política com responsabilidades de governação no passado
recente, o processo Mãos Limpas abalou os fundamentos do regime político
italiano e esteve na origem da emergência, anos mais tarde, do
"fenómeno" Berlusconi. O caso mais recente e talvez o mais dramático
de todos os que conheço é a Operação Lava-Jato no Brasil.
Iniciada em março de 2014, esta operação
judicial e policial de combate à corrupção, em que estão envolvidos mais de uma
centena de políticos, empresários e gestores, tem-se vindo a transformar a
pouco e pouco no centro da vida política brasileira. Ao entrar na sua 24ª fase,
com a implicação do ex-presidente Lula da Silva e com o modo como foi
executada, está a provocar uma crise política de proporções semelhantes à que
antecedeu o golpe de Estado que em 1964 instaurou a uma odiosa ditadura militar
que duraria até 1985. O sistema judicial, que tem a seu cargo a defesa e
garantia da ordem jurídica, está transformado num perigoso fator de desordem
jurídica. Medidas judiciais flagrantemente ilegais e inconstitucionais, a
seletividade grosseira do zelo persecutório, a promiscuidade aberrante com os
média ao serviços das elites políticas conservadoras, o hiper-ativismo judicial
aparentemente anárquico, traduzido, por exemplo, em 27 providência cautelares
visando o mesmo ato político (a nomeação ministerial do Lula), tudo isto
conforma uma situação de caos judicial que acentua a insegurança jurídica,
aprofunda a polarização social e política e põe a própria democracia brasileira
à beira do caos. Com a ordem jurídica transformada em desordem jurídica, com a
democracia sequestrada pelo órgão de soberania que não é eleito, a vida
política e social brasileira transforma-se num potencial campo de despojos à
mercê de aventureiros e abutres políticos.
O sistema judicial português está imune
aos perigos da desordem jurídica? A grande visibilidade pública da justiça
resulta, em grande medida, dos casos que envolvem a elite política e financeira
do país, e que nas últimas semanas atingiram também o poder judicial.
Sucederam-se na ribalta mediática os casos Melancia, UGT, Partex, Faturas
falsas, JAE, Caixa Económica Açoreana, Universidade Moderna, Freeport,
Portucale, Operação Furacão, Submarinos, Face Oculta, Monte Branco, BPN, BPP,
BCP, Vistos Gold, BES/Ricardo Salgado e, por último, José Sócrates, todos casos
de criminalidade económica (corrupção, lavagem de dinheiro, fuga ao fisco,
tráfico de influências). Refiro-me exclusivamente à notoriedade do sistema
judicial na área da criminalidade económica mas há que ter em conta que a notoriedade
da última década também ocorreu em outras áreas (Casa Pia, Carlos Cruz). Há um
inequívoco sinal de perda de impunidade de quem tem poder e dinheiro. E isso é
um grande salto democrático. Mas, a ideia de que a justiça chegou aos poderosos
significa um combate verdadeiramente sistemático, sem tréguas, à corrupção?
Significa que a justiça compreendeu a danosidade para a democracia e para o
Estado social dos atos de banditismo sobre os dinheiros públicos e, em geral,
da cooptação do Estado por determinados interesses privados? Perante as elites
políticas e económicas a justiça é cega ou, pelo modo como opera, faz com que
certos processos sejam desenvolvidos mais proactivamente que outros, criando
assim a perceção da seletividade?
O caso Sócrates, mais do que a
confirmação de um novo padrão do ativismo judiciário, parece indicar uma
mudança significativa e por isso merece uma referência especial. Nele, a
justiça está a arriscar, mais do que em qualquer outro, a sua legitimação
social e política. Não deixa de ser perturbador que a justiça portuguesa, tendo
mantido preso preventivamente, por largos meses, um ex-primeiro ministro, não
só não tenha cumprido os prazos legais de final do inquérito, como não mostre
fortes sinais de se preocupar com isso. A mensagem parece clara: o sistema de
justiça português endogeneizou a ineficiência, convive bem com ela e, talvez
esteja a desvalorizar o impacto negativo que nela pode ter a combinação
explosiva entre ineficiência e seletividade. A mobilização judicial-mediática do
caso José Sócrates tem sido de tal ordem que, se o réu não for definitivamente
condenado pelos crimes por que está indiciado, os portugueses não poderão
deixar de pensar que o circo montado à volta deste caso teve mais a ver com
política do que com justiça. Em meu entender, tal percepção, a concretizar-se,
pode ser fatal para a legitimidade democrática da justiça. E nesse caso os mais
avisados terão presente que, independentemente da culpabilidade que se venha a
provar, alguma relação deve haver entre o modo como o processo está a ser
tratado e o facto de o réu, quando primeiro-ministro, ter declarado logo no
início do seu governo, em 2005, que estava decidido a acabar com dois tipos de
situações de privilégio na sociedade portuguesa, a dos magistrados judiciais e
a das farmácias. Os mais avisados lembrar-se-ão ainda da guerra que se instalou
nos anos seguintes entre o Ministério da Justiça e os órgãos do poder judicial
sobre o aparentemente eterno problema do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
Nem o juiz Carlos Alexandre é o juiz
Sérgio Moro, nem o Correio da Manhã ou a TVI são a Rede Globo, mas as
estruturas profundas do caso José Sócrates e da Operação Lava-Jato revelam
algumas semelhanças inquietantes. Para nos sossegarmos precisamos de saber mais
sobre a qualidade das acusações e das decisões judiciais; sobre as razões de
arquivamento de muitos casos, por exemplo, do caso dos submarinos em que os
corruptores alemães foram condenados sem que aparentemente houvesse corrompidos
portugueses; e ainda sobre a ação do Ministério Público em face dos muitos
relatórios do Tribunal de Contas e as suspeições que eles geram sobre altos
negócios envolvendo o Estado, designadamente, com as parcerias público-privadas
e com as privatizações. Sem tal conhecimento, o fantasma da seletividade
política do zelo investigativo e acusatório paira sobre a justiça portuguesa.
Director do Centro de Estudos Sociais,
Laboratório Associado, da Universidade de Coimbra
Politização da justiça, judicialização da política
Mário Vieira de Carvalho
26/03/2016
Uma coisa é investigar e punir casos de
corrupção. Outra, é alegar o combate à corrupção para satisfazer um desígnio
político-partidário.
No Brasil em 1964, os
militares fizeram o frete (sangrento) de entregar o poder, pelas armas, a
grupos de interesses que tinham deixado de conseguir mantê-lo pelo voto. Usaram
as armas para impor um curso político que eles próprios, enquanto cidadãos no pleno
uso dos seus direitos, não tinham conseguido fazer valer nas urnas. Com o seu
poder de fogo impuseram a vontade de uma fação à vontade de milhões expressa em
eleições livres.
O ovo da serpente continua no choco, e
há democracias, umas mais do que outras, que não estão livres da tentação da
ditadura. Os sinais que vêm do Brasil são preocupantes. Gente nas ruas a
reclamar abertamente um golpe militar, a glorificar a ditadura e até a lamentar
que esta tenha poupado a vida a tantos dos seus opositores! Tais sintomas de
desespero não podem ser subestimados. É o desespero de quem se sente excluído
do poder democraticamente eleito, mas que, ao mesmo tempo, deixou de acreditar
na possibilidade de derrotar os adversários políticos em eleições livres. Para
esses, a democracia transformou-se num pesadelo.
Tanto maior é o desespero quanto é certo
que os mídia, na sua larga maioria sintonizados com a oposição ao atual
governo, também não têm conseguido traduzir a sua hegemonia ideológica em voto
útil expresso nas urnas.
É neste contexto que tem vindo a emergir
no Brasil, mas com um encarniçamento e um descaramento porventura extremados,
um fenómeno que é cada vez mais comum a outros regimes democráticos e merece
certamente ser estudado como um sinal dos tempos. Refiro-me à politização da
justiça e ao seu reverso: a judicialização da política.
Magistrados e juízes emergem como
supremos garantes da integridade cívica num contexto de corrupção generalizada.
Não admira. Se o próprio sistema financeiro mundial é hoje, afinal, um sistema
corrupto – todo ele assente na fraude fiscal (offshores) e noutras
formas de assalto caótico a recursos públicos e privados, humanos e materiais,
a que se dá eufemisticamente o nome de “competitividade” – não admira que a sua
natureza patológica se manifeste no vómito permanente de “indícios” ou
“suspeitas” de corrupção.
O cardápio tem sugestões para todos os
gostos e todas as oportunidades. É fácil levantar a suspeita, escolher o alvo e
ajustar o momento, pois que, com a desregulação e a opacidade das operações,
começa logo por ser difícil distinguir entre o real e o virtual. Estamos
perante uma teia complexa – um monstruoso criptograma – onde nada do que parece
é.
Um sistema, de sua natureza tão
corrupto, devia ser colocado, ele próprio, no banco dos réus. Mas, isso escapa
à alçada dos tribunais. É um problema político – de política internacional –,
porventura o mais candente a nível mundial, pois é da sua resolução que depende
a resolução de muitos outros. Aos tribunais resta entreterem-se com alguns
bodes expiatórios, mascarando a causa-raiz, que continua incólume.
Uma coisa é, porém, investigar e punir
casos de corrupção. Outra, é alegar o combate à corrupção para satisfazer um
desígnio político-partidário. Também aqui, nem sempre o que parece é, sobretudo
quando os agentes judiciais fazem alarde público de “indícios” ou “suspeitas” e
os processos se desenrolam nos mídia quais telenovelas intermináveis.
Exibem como troféu a pessoa que dizem
investigar. Mas, o efeito pretendido é “queimá-la”, antes e independentemente
de qualquer prova. O poder de fogo do “indício” ou da “suspeita” anula o poder
do voto. Assemelha-se, nas suas consequências, ao de um golpe militar. Suprime
a separação de poderes. Politiza a justiça, degradando-a a mero instrumento
político-partidário. Judicializa a política, reduzindo o confronto
político-partidário à querela judicial, em vez de o centrar em ideias e
programas de governo.
Professor Catedrático Jubilado
(FCSH-UNL)