As eleições nos USA coincidiram com três dias de grande
balbúrdia na minha vida pessoal e familiar. Fui acompanhando pelo canto do olho
o acontecimento e na noite de terça para quarta, pelas 2H da noite quando me
fui deitar ia já convencido da vitória do Trump.
Mais uma vez as sondagens falharam, ou porque perguntaram às
pessoas erradas para obter as respostas que queriam para manipular a opinião
pública, ou porque jornais e jornalistas
vivem também em mundos viciados e contaminados pelo poder político e económico.
Hoje é que tive tempo para ler os jornais acumulados, e
fiquei espantado como tanta gente sabia as causas e os efeitos da vitória Trump
mas depois de encerradas as urnas. Diagnósticos depois do jogo é fácil, mas não
me recordo de antes ter lido estas profundas análises políticas, sociológicas e
até psicológicas do candidato e do povo americano.
É a terceira vez que nos USA "ganha" o candidato
que menos votos obteve, neste caso a Clinton teve mais 395 votos.
Mas, nuns com mais clareza, em outros de forma mais
camuflada, o denominador comum começa a responsabilizar a política económica e
financeira do liberalismo (uso este termo para simplificar) como a causa
fundamental da crise de 2008 e do fenómeno Trump, o empreiteiro vigarista da
especulação imobiliária que durante 18 anos não pagou impostos e depois de
eleito presidente fala só em reconstruir estradas, pontes, cidades etc.
Foi uma campanha Trump baseada nos medos das vítimas do
liberalismo, cada vez mais desorientadas com o declínio e degradação da
democracia, que olham em volta e não encontram alternativas partidárias que os
representem e nas quais acreditem quer nos USA quer em muitos países da UE e
não só. Num país de emigrantes, no começo só existiam os índios, assistimos a
um ataque xenófobo contra o outro, o "invasor criminoso!". Nada
aprenderam com o Brexit, com a Le Pen, com Orban, os polacos, o Duterte, o
Farage, o Geert Wilders, o Temer, a extrema direita que se fortalece na
Finlândia, Áustria, Itália, Alemanha e mesmo os Erdogans e Putins deste mundo,
ou como um Junker que preside à Comissão da UE depois de andar anos e anos a
transformar o Luxemburgo num paraíso fiscal, sonegando dinheiro para ele de
impostos que deveriam ser pagos em Portugal, ou dessa Holanda do holandês de
nome esquisito que preside ao Eurogrupo e que se converteu também em paraíso
fiscal para os "belmiros e santos" portugueses, ou dos
"durões" que transitam alegremente de cargos políticos importantes
para as cadeiras estofadas de bancos odiados pelo seu papel na destruição da
vida de milhões de pessoas.
O envergonhado diagnóstico da causa propõe, para tratar o
doente, mais do mesmo veneno, mais CETA, mais TTIP, mais punições a países
forçados a endividarem-se para conseguirem atenuar a irresponsabilidade de
"ceos" pagos a preço de ouro que arruinaram a economia mundial,
continuação dos paraísos fiscais, degradação ou eliminação dos serviços
públicos (saúde, educação), privatização da justiça e mesmo da polícia e forças
armadas, fim dos direitos sociais e laborais, imprensa "domesticada",
manutenção das guerras de "baixa intensidade" etc.
Caricato e que deve regozijar muita gente é vir de Trump a
classificação da NATO como coisa obsoleta a pôr fim. Quem diria!
O medo tem cheiro, acho que já se sente o enxofre.
MC
Junto dois textos que na minha opinião são oportunos e esclarecedores.
Agora é mesmo a sério
12/11/2016
Substituindo “migrações” por “judeus”, parece que estamos em 1933: o que os
nazis pretendiam fazer com os judeus era, também então, “vital” para a Europa e
para a Hungria, que em 1938 adotou legislação própria para os discriminar; em
1942-44, 600 mil judeus húngaros foram mortos.
1. A
vitória de Trump normaliza a extrema-direita. Trump passará a
ser tratado com toda a normalidade pelos media e pelos governos. Como
se um novo tempo tivesse começado – ou regressado... O primeiro-ministro
húngaro, Viktor Orbán, acha que, com a vitória de Trump, a “civilização quebrou
uma barreira ideológica para regressar à verdadeira democracia”. Somando o que
tem sido o governo de Orbán e as propostas de Trump, a “verdadeira democracia”
que aí vem é feita de policiamento e militarização generalizados, controlo
dos media, racismo e intimidação das minorias, manipulação das maiorias.
Que a extrema-direita tenha conseguido convencer grande parte da opinião
pública de que estas são opções necessárias para resolver os nossos problemas,
que se trata de bom senso depurado de politicamente correto, é porque
uma grande parte do espaço mediático e de quem domina politicamente o Ocidente
assumiu as mesmas bandeiras e práticas. É por isso que, para Marine Le Pen, a
vitória de Trump “não é o fim do mundo [mas] apenas o fim de um certo mundo” -
por outras palavras, o fim de um regime. E a promessa de um novo.
2. Uma sociedade que sacraliza a riqueza escolhe ricos para a
representar. Trump, como já Berlusconi o foi, é um símbolo da suprema
aspiração do capitalismo: transformar o dinheiro em exercício de poder e
domínio sobre os outros. Para esta gente, quem é rico é-o por mérito próprio -
o mérito de manipular o mercado, da lei do mais forte e da conquista de espaço
mediático. Trump e Berlusconi fizeram fortuna à custa de ligações com o mundo
político e judicial, esfregando nos olhos do boquiaberto espetador de TV a sua
riqueza e os produtos dela.
Um dia, ou porque os seus emissários no poder político caem em desgraça
(caso de Berlusconi nos anos 90), ou porque o ego os empurra para a aventura,
lançam-se diretamente na arena política e apresentam-se como campeões da mesma
retórica anti-plutocrática do fascismo dos anos 30: um dos homens
mais ricos dos EUA, que está no centro da oligarquia americana, denuncia as
maldades do sistema e promete vingar as vítimas do empobrecimento.
Há 80 anos, os nazis diziam exatamente a mesma coisa – mas, salvo os judeus
cujos bens foram expropriados, nunca os grandes patrões alemães ganharam tanto
dinheiro como sob o nazismo, guerra incluída. Pelos vistos, não há nada de mais
convincente que um rico que, em nome dos pobres, se queixa dos outros ricos.
“Quem criou este pesadelo em que nos encontramos foi o neoliberalismo”,
cuja “mundividência é plenamente corporizada por Hillary Clinton e a sua
máquina”, lembra Naomi Klein. “O que é preciso entender é que há um monte de
gente em sofrimento. Sob políticas neoliberais de desregulação, privatização,
austeridade (...), os seus padrões de vida caíram a pique. Perderam empregos,
pensões, muita da rede de segurança que costumava tornar menos assustadoras as
suas perdas. Anteveem o futuro dos seus filhos ainda pior do que o seu presente
precário.” Se a sua resposta é “atacar imigrantes e negros, insultar muçulmanos
e humilhar mulheres”, limitam-se a reproduzir os comportamentos de quem
manda (Guardian, 10.11.2016).
3. O racismo à solta. Orbán já em julho dissera que “a política externa
e de migrações defendida [por Trump] é boa para a Europa e vital para a
Hungria”. Substituindo “migrações” por “judeus”, parece que estamos em 1933: o
que os nazis pretendiam fazer com os judeus era, também então, “vital” para a
Europa e para a Hungria, que em 1938 adotou legislação própria para os
discriminar; em 1942-44, 600 mil judeus húngaros foram mortos. A euforia da
extrema-direita sente-se já todos os dias na rua, nas agressões a negros, a
latino-americanos e a muçulmanos nos EUA, na caça ao estrangeiro na
Grã-Bretanha, na perda total da vergonha racista em França, na Alemanha, na
Europa Centro-Oriental.
A vitória de Trump confirma (como antes as de Berlusconi) que é perfeitamente
possível assumir um programa desavergonhadamente racista contra uma parte dos
subalternos (muro contra mexicanos=violadores e criminosos; expulsão de
refugiados sírios; intimidação dos afroamericanos; humilhação de mulheres e de
minorias sexuais) e ganhar-se a condescendência da maioria: “ele não fará nada
do que diz...”, é o que julgam muitos dos que nele votaram. Os livros de
História estão cheios de citações de quem, com Hitler, julgava exatamente o
mesmo. A extrema-direita ainda pode ser travada. Mas só se levada a sério
e a sério combatidas as condições que permitem o seu avanço.
Trumpificação e o que de pior poderia haver em
2016
Francisco Louçã
12/11/2016
Tome nota, por favor: o centro deste risco é a Europa, que acumulou os
maiores erros ao longo da década e os vai pagar agora com a trumpificação da
sua política na França e na Alemanha.
No final de 2015, diversas
instituições publicaram as suas listas de pesadelos sobre tudo o que de pior
poderia acontecer em 2016. Em resumo, temiam três famílias de riscos, a que
chamam os “cisnes negros” ou o improvável mas que pode ocorrer: Brexit e crise
europeia, acidentes financeiros e degradação económica, eleição de Trump e
crise da globalização. Admitia-se então que estes seriam cenários extremos e
pouco prováveis. Ora, só com mês e meio para ver o que mais virá neste ano, o
quadro já não é simpático.
A Bloomberg, baseada em inquéritos a empresários de topo, fez então um
ranking dos pesadelos e apresentou um gráfico com o cálculo dos seus efeitos.
Os três piores seriam um ataque do Daesh aos pipelines do Médio Oriente
fazendo subir o preço do petróleo, o Brexit e um ciberataque destrutivo contra
a banca internacional.
A eleição de Trump, em contrapartida, só seria viável se Clinton
desistisse. Provocaria uma grande incerteza que favoreceria a indústria militar,
um arranjo com a Rússia para uma nova Guerra Fria deslocada para o Pacífico e
impactos imprevisíveis na ordem internacional, mas seria do domínio dos
impossíveis. Na União Europeia, o pesadelo seria a saída do Reino Unido, o
enfraquecimento de Merkel e o recuo do BCE na política de expansão monetária.
Na economia, os piores cenários seriam um fraco crescimento chinês ou a
aceleração do aquecimento climático com efeitos devastadores na agricultura e
acesso a água. Outro focos de tensão poderiam ser o Brasil se Dilma fosse
afastada e a Venezuela se a crise se prolongasse. Como é bom de ver, os
pesadelos chegaram pela calada do dia.
Outra instituição que apresentou os seus cenários foi o The Economist:
o pior, embora com baixa probabilidade, seria a eleição de Trump, que
destabilizaria a economia global. A União Europeia poderia fracturar-se se o
Reino Unido saísse, se a crise dos refugiados criasse novas tensões internas e
atingisse Merkel e se a Grécia fosse empurrada para fora do euro.
De tudo isto, já temos quanto baste – mas só pode piorar.
Primeiro, a crise europeia: muros contra os refugiados e ascenso da
xenofobia, aventura de Cameron no referendo britânico, sangria da Grécia. Mas
vem mais: referendo em Itália e eleições austríacas em Dezembro e depois
eleições francesas e alemãs em 2017. Cada um destes processos só pode acentuar
a crise europeia.
Segundo, a vitória de Trump. Ameaça imediata, renegar o Acordo de Paris
sobre alterações climáticas. Mas olhe para o governo que se perfila, com o peso
dos tubarões de Wall Street e a ressurreição dos profetas conservadores, e
percebe-se o que está a chegar: maná dos céus para a finança e o neoliberalismo
casado com o autoritarismo, como nos seus mais esfusiantes momentos.
Há no entanto um pesadelo de que
ainda não acordámos, uma nova crise financeira. A pergunta, aliás, não é se
ocorrerá, é quando ocorrerá. O aumento da volatilidade nos mercados financeiros
e a acumulação de dívidas são as consequências de uma política ameaçadora: o
BCE espalhou dinheiro que valorizou as acções mas não o investimento, enquanto
as taxas de juro negativas comprimiam as margens bancárias e estimularam novas
operações financeiras de risco, de que o Deutsche Bank é o exemplo mais
conhecido (o valor nocional dos seus derivados é superior ao valor do PIB
mundial). Ou seja, o nosso problema são as soluções para o problema.
Chegados ao fim de 2016, temos
então uma crise da procura mundial e zero capacidade para responder a uma
recessão, porque os bancos centrais não podem fazer nada. Tome nota, por favor:
o centro deste risco é a Europa, que acumulou os maiores erros ao longo da
década e os vai pagar agora com a trumpificação da sua política em França e na
Alemanha.