Quando lemos que edifícios históricos de VRSA serão transformados em hotéis de "charme" e na pretensão de um grupo hoteleiro construir um hotel sobre a praia de Monte Gordo, este artigo é oportuno e esclarecedor.
MC
Maria Ramalho
Património,
cidade, turismo, negócio y otras cositas más...
O objectivo agora é a eliminação de
todos os entraves ao desenvolvimento do negócio imobiliário dentro das áreas
centrais das cidades.
14 de Junho de 2017
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Que relação existe entre a morte de dois
operários durante a demolição de um prédio histórico da cidade de Lisboa, uma
feira de carros dentro de um museu nacional ou a opinião de uma gestora
bancária que afirma que a linguagem e a dimensão da cultura e do entretenimento
são semelhantes ao negócio bancário?
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Infelizmente têm todos a mesma origem,
um sistema económico que, em desespero, derruba os últimos obstáculos à
comercialização de todas actividades e de todas as relações sociais. A cultura
e o património histórico em particular são agora vistos como excelentes meios
de criar a “a atractividade” que faltava à “Marca Portugal” que, cada vez mais,
se procura vender lá fora. Não é de agora que se começaram a criar as condições
ideais à afirmação desta mentalidade.
No âmbito do património histórico
urbano, novos instrumentos legais surgiram como a Lei da Reabilitação Urbana,
que isenta de uma série de cuidados a intervenção em edifícios com mais de 30
anos, nomeadamente tudo o que seja um empecilho ao sector da construção agora
recauchutado em “sector da reabilitação", usufruindo assim de fundos
nacionais e europeus, uma farsa que tarda a ser desmontada. De facto, são as
mesmas empresas que antes construíam prédios nas periferias desqualificadas das
nossas cidades que agora se dedicam a transformar imóveis de valor histórico em
contentores de T1 ou T2, como no caso do edifício que acabou por matar os seus
operários. Cada dia que passa mais um destes interessantes edifícios é abatido:
Baixa Pombalina, Bairro Alto, Mouraria e por aí fora, espalhando um novo ciclo
de especulação na cidade consolidada como nunca se viu, levando ao
desaparecimento completo de imóveis ou de interiores extraordinariamente ricos
em decoração artesanal de estuques, carpintarias, vitrais, pinturas, ferros
forjados e azulejos.
Não há que enganar, é só passear pela
cidade e espreitar para dentro dos edifícios em obras para se confirmar que de
original nada resta. Miraculosamente, mesmo naqueles imóveis onde é necessário
a apresentação de relatório prévio o diagnóstico repete-se: “o edifício é
irrecuperável...” — lembrando a velha desculpa das más condições
fitossanitárias da pobre árvore que se atreveu a estar no caminho de qualquer
novo projecto de paisagismo ou reformulação de tráfego.
Outra oportuna lei vem também abrindo
caminho a este rentável negócio — a Lei das Rendas, que acelera o despejo e a
reconversão das nossas principais cidades em parques temáticos para turista ver
e viver, nada mais restando aos cidadãos que abandonar a ideia de se
aproximarem das zonas que mais gostam e irem encher as ditas periferias
desqualificadas.
Por outro lado, as estruturas do Estado
que poderiam garantir alguma fiscalização estão a ser desmontadas num processo
que se poderia apelidar, no mínimo, de perverso: primeiro a asfixia financeira,
depois o envelhecimento e o corte de pessoal e, por último, a “captura” de
dirigentes que, sem se darem conta de que atentam contra a própria razão da sua
existência, enaltecem o valor da rentabilidade dos espaços, da importância do
turismo como tábua de salvação do património cultural, que passa a ser visto
como qualquer activo económico cada vez mais cobiçado. O objectivo agora é a
eliminação de todos os entraves ao desenvolvimento do negócio imobiliário
dentro das áreas centrais das cidades onde, tradicionalmente, se concentram os
elementos de maior valor histórico, isto até que a última barreira seja
derrubada, neste caso conseguir aprovar a “desconcentração de competências na
área da cultura”, com os licenciamentos a ficarem nas mãos das autarquias e das
CCDR.
É neste ambiente que se torna possível
assistir às declarações de um conhecido homem de negócios do Norte, mano a mano
com responsáveis da Cultura, usando a mesma linguagem e defendendo o mesmo
ideal. Museu Nacional dos Coches, Parque do Côa ou World of Discoveries
no Porto é tudo igual, ou será em breve, pois às instituições que não são
rentáveis nada mais lhes resta que passarem a ser, nem que isso custe hipotecar
a identidade ou colocar de lado a sua verdadeira missão. Afirma-se, assim, uma
cada vez maior cumplicidade entre promoção patrimonial e os circuitos
financeiros via turismo, em benefício da apelidada indústria cultural que
deveria ser questionada na sua essência.
Veja-se o caso do Programa Revive, única
iniciativa estruturada para a “reabilitação” do nosso património histórico e
que inclui, na sua carteira de negócios, muitos monumentos nacionais
destinados, na sua totalidade, à gestão privada mas onde, no entanto, foram
recentemente investidos vários milhões de euros dos cofres do Estado, como é o
caso do Mosteiro do Lorvão ou do Castelo de Portalegre. Dizem que não há outra
saída mas, no entanto, o dinheiro existe, já que estes privados irão ser
avantajadamente subsidiados pelo mesmíssimo Estado que poderia criar incentivos
a programas de reabilitação mais baratos e mais adequados aos espaços,
motivando as comunidades locais a aí se fixarem e desenvolverem actividades
certamente mais interessantes do que estar ao serviço do turista.
Desde as destruições de Paris, pela mão
de Haussman, e já lá vai mais de século e meio, que a retórica é a mesma,
argumentos que desembocam numa visão hegemónica de cidade hoje facilmente
apelidada de “cidade imobiliária”, cada vez mais segregada e estratificada, um
espaço urbano criado para facilitar o negócio, uma total apropriação privada
das condições que foram criadas para o conjunto da sociedade.
O primeiro passo para que algo mude é
tomar consciência que não há tempo para dúvidas, nem ingenuidades, que vivemos
num ambiente urbano de empobrecimento contínuo onde a normalização e
comercialização do património edificado, dos museus e dos espaços públicos é
uma realidade a combater, quanto mais não seja pela sua inegável
insustentabilidade.
Arqueóloga