PPires Trump e
as fragilidades da democracia
O confronto com o problema da Coreia do Norte revela-se como um exemplo
lapidar do perigo público que Trump parece materializar.
26 de Setembro de 2017
Vivemos numa sociedade ocidental que
acredita que sedimentou e aperfeiçoou definitivamente o conceito e o modelo de
democracia. Não reconhece que o que hoje vemos é ainda uma fase da infância da
plena democracia. Provavelmente dentro de um século a democracia terá sido bem
mais amadurecida e aperfeiçoada e olhar-se-á esta presente fase como um
embaraçoso exercício de arqueologia política. Não, a democracia é muito mais
que uma frenética luta por votos lançados numa caixa, entre opções de sectárias
máquinas de interesses que se enquistam por detrás de cada símbolo.
A genuína democracia tem que ser muito
mais profunda, pura e assente nos cidadãos, que constituem a inalienável base
deste conceito e da sociedade. Corruptos e medíocres proliferam nos bastidores
da “democracia” atual (muitos são enaltecidos por telejornais e por parte da
comunicação social) e apenas alguns países como os escandinavos têm uma cultura
sistémica contrária a esta deficiente vivência que agora prevalece no Ocidente.
Na história democrática contemporânea não faltam ditadores em diversos graus,
eleitos.
Eleições e votos em máquinas partidárias
frequentemente convencem estas de que democracia é uma atribuição de poderes
ditatoriais aos vencedores, induzindo abusos, perversões e prepotências. Por
exemplo, muitos “vencedores” tendem a supor que estão investidos do linear
poder de, publicando leis que lhes interessam, “legalizar” o que é ilegítimo e
mesmo imoral. É, de facto, uma mentalidade ditatorial assente em votos.
Democracia é uma perceção diferente.
Olhando para o nosso país vizinho vejo
algo que, sem me surpreender, me assusta. Se eu fosse catalão, há apenas alguns
meses teria votado a favor da permanência dessa região em Espanha, embora
sempre tenha respeitado a (totalmente legítima) vontade dos independentistas.
Mas se eu fosse catalão, hoje votaria, sem hesitação, a favor da independência
da Catalunha. Porque a inabilidade e o totalitário comportamento das
autoridades centrais espanholas demonstraram, ainda melhor que os
independentistas, que esse poder central é, afinal, impositivo, dominador e
quase colonial. Temos assistido a um comportamento governamental
verdadeiramente tenebroso e absolutamente desastrado. Decretar por leis que a
democracia e a vontade de uma enorme comunidade são ilegais é uma perversão da
democracia. O Ocidente tem, durante décadas, pregado ao mundo os valores da
autodeterminação dos povos, desde que sejam os outros povos, não os seus. Mas
na Catalunha e, em geral, no seio da União Europeia, vemos o oposto. Os
cidadãos anestesiados não notam. A inconsciência coletiva é uma ameaça ainda
maior às democracias.
Ao longo do tempo, os Estados Unidos
geraram alguns dos mais vibrantes e intemporais conceitos e passos na formação
da consciência democrática. Simultaneamente, foram-se transformando num país
que, sucedendo ao predomínio britânico no mundo, se erigiram como principal
potência global a partir da Segunda Guerra Mundial.
Quer com ela simpatizemos ou não,
objetivamente a sociedade norte-americana atingiu, em muitos aspetos,
impressionantes níveis. Trata-se de uma nação que, com apenas cerca de 4% da
população mundial, ganhou cerca de 40% dos Prémios Nobel até hoje atribuídos, e
é a fonte de grande parte do progresso científico e da criação tecnológica que
transformou o planeta nos últimos dois séculos, como continua a fazer. Foi aqui
que germinaram a eletricidade, as telecomunicações, o computador, o computador
pessoal, a Internet ou a Google, e foi esta a nação que conduziu a Humanidade à
Lua. Foi este país que criou o conceito dos parques naturais para preservar enormes
áreas de natureza intocada. Esse país com uma população numericamente marginal
tornou-se na maior economia do mundo, embora tenha já sido ultrapassada pela
China (PIB ppp). O norte-americano é, em média, 45% mais rico que cada cidadão
da União Europeia. Tornou-se na maior potência militar do planeta, a única
potência literalmente global, com cerca de 800 bases militares em mais de 70
países. Podemos gostar ou antipatizar, mas a realidade norte-americana tem uma
dimensão extraordinária que só é possível com um povo corajoso, inventivo e
tenaz.
E é este povo que mudou o mundo que, nos
seus boletins de votos democráticos, elegeu um presidente como Donald Trump.
Após Obama, o contraste dificilmente poderia ser maior. A legitimidade formal
desta eleição é incontornável. Como, em graus variáveis, se verifica em grande
parte do Ocidente formalmente democrático, os votos “legalizam” mas não
legitimam necessariamente.
O respeito pela história inovadora e
realizadora dos Estados Unidos impõe alguma repulsa pela forma como Trump tem,
de facto, ridicularizado, humilhado e destruído a imagem de liderança e (apesar
de erros clamorosos) de referências morais que esse país afirmou no mundo ao
longo de gerações. Trump exibe o seu lema “América Primeiro” mas o que eu vejo
é a postura “Trump Primeiro, a América Depois”. É difícil imaginar um
presidente mais narcisista e menos responsável. Contrariamente ao que muitos
pensam, Trump é inteligente e tem uma qualidade que raros políticos possuem, a
coragem de inovar ideias e de confrontar interesses instalados na política.
Infelizmente, usa essas qualidades de um modo cuja disfuncionalidade seria
difícil ultrapassar.
Este contexto poderia ser apenas
intranquilizador se não se tornasse também perigoso. Trump talvez tenha
conseguido transformar-se numa ameaça para a paz e a segurança do mundo bem
mais preocupante que o irritante líder norte-coreano. Na verdade, o confronto
com o problema da Coreia do Norte revela-se como um exemplo lapidar do perigo
público que Trump parece materializar. O Presidente norte-americano não perde
qualquer oportunidade para provocar, para acirrar, para parecer induzir um real
conflito militar, que seria inevitavelmente dantesco e nuclear, um desastre
geracional para esses dois países, para toda a Ásia Oriental e para todo o
mundo. É uma profunda irresponsabilidade e uma devastadora inabilidade.
Tal como muitos políticos ocidentais
“democráticos” que foram eleitos por votos, Trump parece também não compreender
que o que permite tornar aparentemente legal à sombra do poder (apenas
delegado) dos votos não confere legitimidade à arrogância, ao autoritarismo e
ao capricho pessoal. A democracia plena tem ainda imenso para aperfeiçoar antes
de ser futuramente atingida.