Filipe Duarte Santos
Secas que
transformaram civilizações e a seca em Portugal
Há muitos exemplos de secas que provocaram colapsos e transições
civilizacionais.
16 de Novembro de 2017
No Egipto, o ciclo exterior mais
importante, para além do movimento aparente diurno do Sol, era a cheia anual do
Nilo que inundava e fertilizava os campos preparando-os naturalmente para as
culturas agrícolas essenciais à vida das populações. As três estações do ano
correspondiam às três fases fundamentais daquele ciclo. A primeira, chamada Akhet
ou inundação, começava com a inundação cíclica do vale do Nilo no princípio do
Verão provocada pelas chuvas das monções na região da Etiópia e do alto Nilo e
durava de Junho a Setembro. A segunda, chamada Peret ou crescimento, era
o período das sementeiras, do ressurgimento da vida vegetal e animal e
coincidia com os meses de Outubro a Janeiro. Finalmente, Shemu ou águas
baixas era a fase das colheitas de Fevereiro a Maio.
Embora o início da cheia anual do Nilo
fosse previsível, a altura máxima que as águas atingiam era muito variável e
imprevisível. Cheias muito altas eram destrutivas e podiam devastar povoações e
infraestruturas ribeirinhas. Em contrapartida, as cheias fracas diminuíam a
produção agrícola e podiam causar a fome generalizada. O progresso da cheia era
essencial para planear o novo ano e provavelmente para calcular o valor dos
impostos nesse ano.
Os sacerdotes dos templos alimentavam a
fama de predizerem a altura das cheias anuais e mediam a altura das águas do
Nilo por meio de nilómetros. Alguns deles perduraram até à atualidade, tais
como os de Elephantine, Edfu, Esna, Kom Ombo, Dendera e Thmuis. São formados
por corredores com escadarias que conduzem ao rio e cujos degraus vão ficando
submersos com o avanço da cheia ou poços ligados por um túnel ao rio e
acessíveis também por uma escadaria. Os nilómetros foram usados durante mais de
5000 anos e existem registos escritos do nível das águas do Nilo durante grande
parte desse período, especialmente nos últimos 14 séculos. A análise destes
dados permitiu concluir que a variabilidade das cheias no Nilo está
correlacionada com o fenómeno da Oscilação Sul – El Niño.
A monção da África Oriental é a
principal origem da precipitação que alimenta o Nilo através das águas do Nilo
Azul. Na situação de El Niño, as águas do Pacífico equatorial leste
estão anormalmente quentes, o que gera movimentos ascensionais na atmosfera e
chuvas intensas, enquanto na região ocidental, incluindo o Índico, geram-se
movimentos descendentes anómalos que enfraquecem a monção e provocam secas no
planalto da Etiópia, onde nasce o Nilo Azul, e caudais muito baixos no Nilo
Azul e no Nilo. Com a construção de barragens, o nível das águas do Nilo deixou
de estar correlacionado com o El Niño, mas a análise dos registos
históricos das cheias desde o ano de 622 permite concluir que a maior
frequência de eventos de El Niño observada desde os finais da década de
1970, durante cerca de quatro décadas consecutivas, relativamente aos períodos
anteriores, é provavelmente uma anomalia provocada pelas alterações climáticas
antropogénicas (Trenberth, 1996). Projeções baseadas em cenários climáticos
indicam que os eventos extremos de El Niño e de La Niña se vão
tornar progressivamente mais frequentes com as alterações climáticas (Wang,
2017).
Após o final do Império Antigo, cerca do
ano de 2150 a.C. e durante duas ou três décadas, as cheias do Nilo diminuíram
drasticamente, as areias invadiram parte do vale do rio, o lago de Faiyum
secou, os solos do delta degradaram-se, a fome estendeu-se por todo o Egipto e
paralisou as instituições políticas, semeando o caos. Na parte biográfica das
inscrições do túmulo de Ankhtifi, governador de Edfu e Hierakonpolis na IX
dinastia, lê-se que “todo o país ficou como se fossem gafanhotos à procura de
comida”. As pessoas eram levadas a praticar atrocidades tremendas devido à
fome, incluindo, muito provavelmente, o canibalismo. Houve templos vandalizados
e saqueados e estátuas destruídas. A governação centralizada do faraó colapsou
e os governadores das várias regiões passaram a assumir o poder a nível local e
a guerrear-se. Iniciou-se o chamado Primeiro Período Intermediário da história
do Egipto. Porém, passados cerca de 100 anos, a governação centralizada
ressurgiu com a reunificação do Egipto realizada pelo faraó Mentuhotep II, cujo
reinado iniciou o Império do Meio e durou de 2055 a 1650 a. C.
A profunda crise que afetou o Egipto
gerou um novo quadro político caracterizado por uma maior sensibilidade para as
questões sociais, a misericórdia e a compaixão. Esta terá sido provavelmente a
primeira vez na história das civilizações que um governo, baseado numa
hierarquia forte e centralizadora, adotou, embora sob uma forma embrionária,
conceitos sociais de equidade que impunham ao faraó proteger os mais fracos e
pobres na sociedade, especialmente em períodos de adversidade. Mais tarde,
estes conceitos e práticas floresceram sob diversas formas com o cristianismo e
o islamismo. Uma das manifestações mais claras da transição para novas formas
de igualdade foi tornar a imortalidade acessível a todos e não apenas ao faraó
e às elites dos dirigentes e sacerdotes. A fórmula encontrada foi considerar
todos iguais assumindo que, para efeitos de acesso à imortalidade, cada um é um
faraó. Os detalhes práticos sobre como aceder à imortalidade estavam escritos
no interior dos sarcófagos.
Dados paleoclimáticos revelam que entre
2350 e 1850 a.C. houve períodos de secas severas em várias regiões do mundo,
uma das quais originou os níveis muito baixos do Nilo no Egipto a partir de
2200 a.C. Outras regiões afetadas foram a América do Norte, o Mediterrâneo, o
Médio Oriente, África Oriental, Índia e a China. É muito provável que essas
secas tenham sido a causa principal do colapso do Império Acádio na Mesopotâmia
e da cultura Liangzhu, a última do jade no delta do rio Iangtzé, na China, na
região onde hoje está Xangai. A mudança climática para um clima mais seco há
cerca de 4200 anos deu-se também na Península Ibérica na Idade do Bronze e está
na origem de umas construções intrigantes em pedra que se encontram na região
de Castilla La Mancha, em Espanha, próximo de Ciudad Real, chamadas Motillas.
Investigações arqueológicas nos últimos anos levaram à conclusão que as Motillas
eram edificações destinadas a aproveitar as águas subterrâneas e a armazenar
água e cereais numa época de grande aridez. Na Motilla de Azuer encontrou-se
um poço com cerca de 4000 anos, provavelmente o mais antigo da Península, que
permitia ir buscar água a um nível freático profundo. A construção dos poços na
cultura das Motillas foi uma solução de sucesso para fazer face à seca,
que contribuiu para impulsionar a transição para uma sociedade mais complexa e
estruturada. Quanto à origem do evento climático de seca de há 4200 anos
sabe-se ainda muito pouco. Poderá estar relacionado com variações da
temperatura superficial no Oeste do Pacífico, Índico e no Atlântico
Norte.
Há muitos outros exemplos de secas que
provocaram colapsos e transições civilizacionais. No período de 750 a 900 d.C.
deu-se o colapso da civilização Maia Clássica que resultou em parte de períodos
de seca prolongados. Situação análoga deu-se com o Império Tiwanaku entre 1000
e 1100 d.C. e com o Império Khmer baseado em Angkor, no Camboja, nos séculos
XIV e XV.
Recentemente houve uma seca na região da
Síria que durou 15 anos, de 1998 a 2012, tendo sido a mais intensa dos últimos
500 anos (Cook, 2016). As suas consequências contribuíram para criar as
condições que levaram à guerra civil iniciada em março de 2011, que matou entre
331 e 475 milhares de pessoas e levou cerca de 5,1 milhões de refugiados a
abandonarem a Síria.
Devido às alterações climáticas
antropogénicas, a média decadal da precipitação anual tem estado a diminuir no
Mediterrâneo, especialmente na Península Ibérica, Península Balcânica e região
do Médio Oriente, onde se encontra Israel, Jordânia, Palestina e Síria. As
secas estão a tornar-se mais frequentes e prolongadas e a seca na Síria
insere-se nesta tendência, que tende a agravar-se. A severidade da seca que
afeta atualmente grande parte da Península Ibérica é muito provavelmente mais
uma manifestação das alterações climáticas.
Nos últimos 13 meses, desde outubro de
2016 a outubro de 2017, não houve um único mês em que uma parte de Portugal
Continental não estivesse na situação de seca. O melhor mês foi março de 2017,
em que apenas algumas regiões tinham seca fraca. Em Portugal, a seca é já
gravíssima e não sabemos quando irá terminar. Pode chover abundantemente este
inverno ou haver apenas chuva fraca. As consequências desta última hipótese são
preocupantes e urge estar preparados para as enfrentar. Aquilo que sabemos com
bastante segurança é que se o Acordo de Paris não for cumprido, o centro e sul
da Península Ibérica irão tornar-se perigosamente áridos. É necessário
adaptar-nos às alterações climáticas e termos planos de contingência de médio e
longo prazo adequados para diversos cenários futuros.
Professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa