O Liberalismo nunca se apresenta aberta e francamente, envolve a "mensagem" numa roupagem linguística que esconde os verdadeiros objectivos, em textos longos e fechados que cansam e fazem desistir os menos habituados a estas armadilhas. É um conto do vigário das classes da "ma$$a". O artigo que se publica desnuda a figura e mostra bem as garras do sujeito "liberal".
MC
Neoliberalismo à portuguesa I
O propósito
deste neoliberalismo à portuguesa passa não só por perpetuar, mas também
por ampliar, o domínio de uma classe através da eliminação de todos os direitos
e protecções sociais. É uma doutrina repleta de contradições, mas é o que há.
Rúben Leitão
Serém
23 de
Janeiro de 2022
As eleições
de 2022 representam um marco histórico para o neoliberalismo português. De
facto, esta é a altura ideal para estudar a Iniciativa Liberal (IL). Ou seja, após ter elegido um
deputado e no momento em que procura conciliar uma ideologia elitista com
ambições de crescimento, o IL não conseguiu ainda discernir com clareza
absoluta entre as propostas que devem ser (por agora) abandonadas, aquelas que
podem ser ocultadas através do recurso a linguagem metafórica, e as que merecem
plano de destaque.
Um dos
exemplos de projecto arquivado é a proposta de obrigar os estudantes
universitários a financiarem os seus
cursos, o que não
constitui surpresa se recordarmos que Carlos Guimarães Pinto já tinha criticado
a escolaridade obrigatória até ao 12.º ano como um desperdício de recursos e um
ataque à “liberdade de escolha” das famílias. É um recuo táctico, mas a
intenção de quebrar o único elevador social funcional em Portugal é mantido. Em
suma, é o ciclo em que o purismo ideológico casa com o pragmatismo táctico.
Já as metáforas
e chavões servem para camuflar não só a indigência intelectual de Guimarães
Pinto e outros, como também políticas mais impopulares. Vamos por partes. Não
obstante a narrativa neoliberal de um país a caminhar para a autocracia, o
respeito pela liberdade é consensual no espectro político democrático.
Portanto, quando o termo liberdade é repetido até à exaustão por uma força
política emergente é porque esta procura imprimir-lhe um conceito novo ao mesmo
tempo que tenta aproveitar-se da unanimidade em torno da definição clássica.
Quem, afinal, é contra a liberdade?
Mas, que
“liberdade” é esta que os neoliberais vêem como estando sob ameaça constante?
Numa das raras ocasiões em que um militante da IL se viu obrigado a clarificar
um chavão (o significado de “visão liberal para a Presidência da República”),
Tiago Mayan apresentou os estados de emergência como um assalto à “liberdade”.
Faltou adicionar o óbvio, que uma sociedade democrática implica um equilíbrio
entre o bem comum e a liberdade individual. No entanto, os neoliberais rejeitam
conceitos tão básicos como o de justiça social – “uma miragem”, segundo Hayek –
e da sua ausência cercear a liberdade de muitos, incluindo o direito à vida.
Para melhor
definir a concepção neoliberal de “liberdade” (por isso o uso de aspas), é
importante revisitar os seus alicerces ideológicos. O neoliberalismo assenta
numa série de pressupostos simples. O primeiro é o de que todos os humanos são
seres egoístas que apenas seguem os seus interesses. Importa realçar que os neoliberais
não vêem isto como uma teoria mas antes, segundo Cotrim de Figueiredo, como o
âmago da “natureza humana”. Que tal premissa tenha sido refutada por psicólogos
sociais é imaterial.
O segundo
pressuposto é o de que o mercado livre é o local onde todos estes interesses
confluem e se digladiam, resultando numa harmonia perfeita. E, porque o mercado
é livre, qualquer ingerência no mesmo constitui um ataque à “liberdade”. A
conclusão lógica, segundo Hayek, é a de que uma elite assume o poder,
substituindo-se à democracia, mas salvaguardando a “liberdade”.
Menos
explícito que Hayek mas igualmente dogmático, Cotrim de Figueiredo afirmou num
debate televisivo que a proposta da IL de abolir o salário mínimo nacional e
substituí-lo por um salário mínimo municipal é de elementar justiça porque a
situação actual limita a “liberdade” dos municípios. Ficámos a saber que os
municípios se tornaram indivíduos merecedores de liberdades. Ficou também claro
que a “liberdade” é, ao mesmo tempo, uma palavra elástica, para ser utilizada
de forma cínica, mas também um termo cuja definição é bastante rígida: a
“liberdade” é a económica e esta é absoluta. Não há bem comum ou outras
liberdades que possam restringi-la.
Em vez de
relembrar o trivial, tal como o facto de que existem áreas da sociedade que
devem ser guiadas pela procura do bem comum e não pelo princípio do lucro, ou
até mesmo recapitular os inúmeros exemplos práticos da falência da doutrina da
infalibilidade do mercado, creio que será mais elucidativo expor o argumento da
IL para a existência de “falhas de mercado”. Importa sublinhar que este é um
conceito em tudo nebuloso excepto no facto de estas “falhas” não serem
sistémicas e que a culpa última é sempre do Estado: ou porque interferiu no
mercado ou porque não cumpriu a sua função de regulador, isto apesar de a IL
afirmar que o “mercado é, ele próprio, uma forma de regulação, assente numa
lógica de Liberdade”.
As soluções
são absurdamente fascinantes. Por exemplo, a corrupção deve ser combatida
privatizando e desregulando ainda mais, porque a corrupção existe apenas na
esfera do Estado. E isto tudo é a definição de uma ideologia extremista:
simplista, dogmática, radical, absoluta e impenetrável a qualquer lógica.
Nunca, nos cinquenta anos da
democracia portuguesa, houve um partido tão pequeno que usufruísse de tanta
notoriedade pública, podendo contar com apoio explícito de vários comentadores
televisivos, cronistas e até de um jornal
Falta
clarificar um termo: o Estado. Para os neoliberais, o Estado é simultaneamente
uma abstracção e uma ameaça real – a maior de todas – à “liberdade”. Ora, numa
democracia, o Estado somos nós. Para ser mais preciso, é a estrutura administrativa
do país, tutelada por um governo eleito através de sufrágio universal. É o
único garante, se bem que falível, de que a vontade popular é respeitada. É
também a maior salvaguarda, mesmo que frágil, de que uma oligarquia económica
não transforme as relações laborais em relações feudais. E é precisamente por
constituir uma ameaça a esta “liberdade” que é tão odiado.
Esta
mundivisão extremista é explanada com particular clarividência na hora das
derrotas. Como racionalizar a rejeição desta não-ideologia, desta simples
materialização política da “natureza humana”? Qual, então, a causa para a
derrocada do neoliberalismo suave do PSD nas eleições autárquicas de
2017 (o então presidente da IL negava, em 2018, que o governo passista tivesse
sido “liberal”), ou a mais recente derrota de Paulo Rangel nas eleições
internas do partido após ter sido ungido como vencedor antecipado pelo
comentariado neoliberal? Segundo o mesmo, só existem duas leituras possíveis:
ou a mensagem “liberal” foi mal transmitida ou o público é asinino. Libertos de
constrangimentos eleitorais, ressurgem os preconceitos de classe.
Entre as
primeiras declarações de Cotrim de Figueiredo após as legislativas de 2019
consta esta pérola: “O PS sabe que mantendo um país
amorfo e resignado tem um grupo de pobres, desesperados e dependentes do Estado
que lhe irão dar o voto. A pobreza de muitos é o que segura o PS ao poder.”
Resumindo, os pobres são irracionais e vivem alegremente da caridade, por isso
é que votam em quem os mantém na penúria. É a explicação possível da parte de
quem julga que resolve a miséria abolindo o salário mínimo nacional e acredita
que basta omitir tal medida do sumário do seu programa eleitoral para ludibriar
as massas embrutecidas.
A soberba de
Cotrim de Figueiredo é, contudo, compreensível. Nunca, nos cinquenta anos da
democracia portuguesa, houve um partido tão pequeno que usufruísse de tanta
notoriedade pública, podendo contar com apoio explícito de vários comentadores
televisivos, cronistas e até de um jornal. Aliás, o Observador encarna
várias das contradições do neoliberalismo: um jornal cujo valor supremo é a
“liberdade” mas onde todos os cronistas são de direita; onde reina a
meritocracia, mas onde muitos desses colunistas possuem um trajecto
profissional medíocre; um jornal que promove a civilidade, mas onde abundam
visões apocalípticas de um país a resvalar para o comunismo; e onde a noção de
génio consiste em citar acriticamente os ideólogos do neoliberalismo como se de
uma verdade divina se tratasse. O recurso constante a elogios mútuos e a
argumentos de autoridade desvelam mais outra contradição: o corporativismo de
classe.
Confrontado com a crise de 2008,
Alan Greenspan, o então chefe da Reserva Federal norte-americana, afirmou que a
sua ideologia tinha falhado. Pode parecer anacrónico que este credo reentre no
panorama político nacional em 2022. Mas não é
E isto
leva-nos para a última questão. O propósito deste neoliberalismo à
portuguesa passa não só por perpetuar, mas também por ampliar, o domínio de
uma classe através da eliminação de todos os direitos e protecções sociais. É
uma doutrina repleta de contradições, mas é o que há. Se antes existia o
direito divino dos reis, e isso bastou até ao século XIX, hoje temos um
neoliberalismo que resiste até à sua declaração de óbito.
Confrontado
com a crise de 2008, Alan Greenspan, o então chefe da Reserva Federal
norte-americana, afirmou que a sua ideologia tinha falhado. Pode parecer anacrónico que este
credo reentre no panorama político nacional em 2022. Mas não é, porque estamos
perante o projecto político de uma classe que, cinco décadas após o 25 de
Abril, acredita que a democracia foi longe demais em termos de justiça social e
económica, e que é necessário um “PREC liberal”.
Parafraseando
o título de um livro assinado pelo primeiro presidente da IL, Obrigado pela
democracia, agora queremos liberdade. Para o neoliberalismo à portuguesa
chegou a hora de substituir a liberdade pela “liberdade”.
Rúben Leitão
Serém é Assistant Professor na Universidade de Nottingham
Neoliberalismo à portuguesa II
O programa
da Iniciativa Liberal é exactamente aquilo que aparenta ser – um projecto de
classe. Ou melhor, a fronda de uma classe que acha que a democracia portuguesa
já foi longe demais em termos de justiça social e económica.
Rúben Leitão
Serém
24 de
Janeiro de 2022
Por
interesse profissional, li as 614 páginas do programa
eleitoral da Iniciativa Liberal. Que este partido tenha produzido um paradigma de
documento burocrático é apenas uma das muitas contradições do neoliberalismo.
Proponho, então, que naveguemos as águas opacas de um texto repleto de
informação duplicada, com uma mescla de propostas vagas com outras absurdamente
detalhadas e saturado de lugares-comuns e muitos anglicismos.
Por isto
tudo, importa sublinhar que, na mundivisão neoliberal, a burocracia é um
monopólio do Estado e que a sua eliminação passa pela constante revisão de
procedimentos e monitorização de funcionários. Ou seja, mais burocracia. Mas
não se julgue que esta assenta num “corte cego de custos”, até porque existem
planos para promover “salários competitivos na Administração Pública, em
especial nos seus níveis mais elevados”, à custa “de uma racionalização faseada
do número de funcionários”. Bastava ter escrito “despedimento colectivo” e
ter-se-iam economizado algumas palavras.
Para se ter
ideias não basta dizê-lo, há que tê-las. O autoproclamado “partido das ideias”
resume-se a um dogma único – o mercado livre é infalível e o Estado é a sua
némesis –, o que leva a conclusões tão singulares como afirmar que não existe
um problema de especulação imobiliária em Portugal. Antes pelo contrário, urge
“libertar o sector da habitação” que se encontra prisioneiro às mãos do Estado.
Seguindo o
mesmo raciocínio, a IL exige que se revogue a lei que estabelece um limite de
sete alojamentos locais por proprietário nas zonas de contenção, a abolição do
Imposto Municipal sobre Transacções Onerosas de Imóveis, entre outros, e que o
Estado se desfaça dos seus imóveis devolutos. Entretanto, a questão das
residências universitárias está já a ser resolvida pelo privado e, “com tempo,
até os estudantes mais carenciados beneficiarão desta dinâmica de mercado” que
se quer livre, pois “a função do Estado é apoiar quem mais necessita e não
concorrer”, mesmo em casos em que apoiar implica interferir.
A bizarria
argumentativa não se fica por aqui. É quase impossível descrever a fé dos neoliberais
no mercado. Por exemplo, a proposta da IL de reforma do sistema de
representação proporcional na Assembleia da República é exequível porque, e eis
a tese, “tal como no mercado, a concorrência funcionará”. Todavia, e no
mesmo programa, lemos a antítese: “as pressões concorrenciais tenderiam
a levar as entidades bancárias a agir de forma nem sempre consonante com a
prossecução” da estabilidade do sistema financeiro. A conclusão, desprovida
tanto de síntese como de sentido, é de que a culpa é do Estado, porque este ou
interfere, ou não regula. Em suma, não há bancos maus, apenas Estado péssimo.
Encontramo-nos perante um raciocínio circular e à prova de qualquer lógica.
A
incoerência atinge novos patamares nas secções sobre o ambiente e mundo rural.
“Não se prevê nenhuma compensação financeira aos agricultores” afectados pelas
políticas da IL porque a “expetativa não deve ser financeira, mas sim resolver
um problema ambiental”. Palavras nobres e corajosas. Contudo, em relação à
questão ambiental em si, a solução apresentada é a de mais crescimento
económico sem reduzir as emissões.
Importa
frisar que os neoliberais não negam as alterações climáticas, apenas
rejeitam que esta seja uma emergência. Aliás, e segundo Carlos Guimarães
Pinto, um dos portentos intelectuais da IL, o aparecimento de uma consciência
ecológica apenas é possível após o país alcançar um certo grau de
desenvolvimento económico. De acordo com a mão invisível do PIB, a China deve
estar prestes a atingir o nirvana.
Todos os
problemas se tornam simples quando a resposta é única. Para a reforma do
Estado, a panaceia das privatizações. É um remédio que serve para
justificar a capitalização do sistema de pensões (e, a propósito, “promover a
participação no mercado de trabalho de pessoas em idade de reforma”); a
privatização da RTP, da Caixa Geral de Depósitos e da rede de transportes do
Estado; a criação de PPPs na Cultura; o “aumento e desenvolvimento da
colaboração com o sector privado” nas embaixadas e “mais liberdade para
contratar e despedir” nos consulados. Até a violência doméstica se combate
promovendo “o investimento privado na rede de apoio à habitação para vítimas”. O
sofrimento é um óptimo negócio.
A “liberdade de escolha” na Saúde e Educação é um tema
recorrente e a razão apresentada para legitimar o financiamento massivo de
corporações roça o anedótico: “O Estado não financia o privado, financia o
aluno” (e o mesmo se aplica ao doente), uma lógica em tudo semelhante à da
National Rifle Association: “As armas não matam as pessoas; as pessoas matam-se
umas às outras.”
Menos
conhecida é a proposta para que a Saúde passe a ser financiada através de uma
taxa única sobre os salários, porque a existência de escalões “leva a uma
discussão sobre o ritmo de progressividade”. Pelos vistos, a única maneira de
evitar um debate enfadonho passa por taxar ricos e pobres por igual. É o
argumento possível, mas não o mais inescrupuloso. Este baseia-se na
instrumentalização dos mais carenciados para exigir medidas que visam
substituir o princípio do bem comum pelo do lucro. Ainda sobre a Saúde, falta
concluir que este plano, conjugado com o famoso “choque fiscal”, levará à
degradação e eventual destruição do SNS, que é apenas e só o objectivo final da
IL. Após isso, teremos a liberdade, mas não a escolha.
Todavia, o
exemplo mais crasso de canalização de fundos públicos para o privado é o ainda
menos conhecido Plano Ferroviário Nacional, que implicará a construção de
centenas de quilómetros de ferrovia para ser depois concedida a privados. A
previsível implosão da CP é negada e fundamentada, como já suspeitávamos, numa
“dinâmica positiva da competição”. Esta política rentista pode ser resumida
numa palavra cada vez mais querida a esta direita – subsidiodependência.
Já a famosa taxa única de IRS de 15% foi apresentada por Cotrim de
Figueiredo como uma medida em que “ninguém fica a perder”. Faltou acrescentar
que alguns ficarão a ganhar e muito. Ora vejamos: os dois mil milhões de perda
de receita fiscal contabilizados pela IL correspondem ao valor cobrado a 4% dos
agregados familiares mais ricos. E por falar em liberalidades, falta
mencionar que, segundo a IL, o “nosso setor bancário é atualmente alvo de
inúmeras medidas punitivas”, logo, é uma questão de justiça que se exija
o fim da taxação de “bónus distribuídos a administradores empresariais”.
No caso da taxa única, a Lituânia é
apontada com um exemplo a seguir, pois ultrapassou Portugal no PIB per capita.
De facto, é um caso que merece reflexão. Entre 1990 e 2020, a Lituânia perdeu
um milhão dos seus 3,7 milhões de habitantes. A maioria emigrou à procura de
melhores condições de vida. É uma catástrofe demográfica equivalente a uma
guerra. Mas o PIB cresceu
Mas é
precisamente na taxa única que reside a chave que decifrará o chavão favorito
da IL: “mais crescimento económico” – mas como? Uma das tácticas recorrentes do
partido passa por enfatizar que as políticas propostas foram já testadas
noutros países. No caso da taxa única, a Lituânia é apontada com um exemplo a
seguir, pois ultrapassou Portugal no PIB per capita. De facto, é um caso
que merece reflexão. A taxa de suicídio da Lituânia é das mais altas do mundo,
sendo uma das causas a desigualdade económica, a segunda mais alta da UE. O
sistema de educação pratica dos salários mais baixos da UE enquanto o
desempenho académico dos estudantes se encontra abaixo da média da OCDE. Na
Saúde, este país tem hoje menos 52 hospitais que em 1990 e a esperança média de
vida é seis anos mais baixa do que a portuguesa. Com resultados semelhantes, a
Letónia decidiu abandonar a taxa única de IRS em 2018. Por último, entre 1990 e
2020, a Lituânia perdeu um milhão dos seus 3,7 milhões de habitantes. A maioria
emigrou à procura de melhores condições de vida. É uma catástrofe demográfica
equivalente a uma guerra. Mas o PIB cresceu.
Ainda sobre
o tema da desigualdade económica, a reacção da IL aos tumultos sofridos no Chile é sintomática. Em Novembro de 2019,
o partido entregou um voto de condenação sobre a violência no país em que o
objecto da sua censura não eram as assimetrias económicas que provocaram os
protestos, mas “o aumento do preço dos transportes públicos por parte do
Governo, uma medida que não se enquadra nos princípios do mercado livre”. Esta
negação do impacto da desigualdade, conjugado com as propostas laborais da IL,
clarificam categoricamente de que forma o partido pensa colocar “Portugal a
crescer”.
Sem
surpresas, a IL ambiciona “reduzir a complexidade administrativa nos processos
de despedimento individual” e exige mais “flexibilidade na legislação laboral”
– bastava ter escrito “precarizar”. Propõe também o fim do decreto do pagamento
de horas extraordinárias e, a cereja no topo do bolo, a abolição do salário
mínimo nacional e a sua substituição por um salário mínimo municipal. Mais uma vez, o conceito de
justiça reaparece para abolir direitos básicos. A IL menciona a injustiça
que é poder usufruir do mesmo salário mínimo em Lisboa e em Belmonte. É uma
proposição tão espúria como alegar que criar 308 salários mínimos significa
desburocratizar, mas é esclarecedora para quem procura entender a mentalidade
neoliberal: não são os lisboetas pobres que merecem salários mais altos; são os
belmonteses que vivem acima das suas possibilidades.
Vale a pena lembrar que em Portugal
o extremismo que conseguiu (e consegue) alcançar o poder foi sempre
respeitável. Se ontem trajava cartola e gravata, hoje passeia-se de sapatilhas
e blazer
As
“perguntas frequentes” do programa da IL são talvez as mais elucidativas, por
incluírem questões como: “Mas isto não favorece os mais ricos?” e “Estas
reformas não vão prejudicar os mais desfavorecidos?”. O leitor nunca encontra
formulações inversas, o que por si é bastante esclarecedor, mas não tanto como
o programa de Assistência Social, que ocupa umas modestas seis páginas. A
munificência neoliberal abrange a criação de centros de alojamento para os
sem-abrigo, mas sempre salvaguardando a “relação custo/qualidade”, senão haverá
“cortes automáticos” e, claro, envolvendo o sector privado. A lógica é
cristalina: “apoiar os mais desfavorecidos passa por criar as condições
necessárias para que haja crescimento económico sustentado”. Encontramo-nos
perante a versão neoliberal da máxima pombalina: sepultar os pobres; cuidar dos
ricos.
O programa
da IL é exactamente aquilo que aparenta ser – um projecto de classe. Ou melhor,
a fronda de uma classe que acha que a democracia portuguesa já foi longe demais
em termos de justiça social e económica. A aplicação deste programa implicaria
o fim da democracia tal e qual como a conhecemos e a implantação de uma versão
moderna de uma plutocracia censitária do século XIX. A normalidade com que a
direita clássica acolhe a IL no seu regaço e a falta de escrutínio de grande
parte da comunicação social não representa nada de novo. Na realidade, existe
uma tendência, compreensível dada a sua natureza histriónica em focar a atenção
na direita que calça bota cardada. Contudo, vale a pena lembrar que em Portugal
o extremismo que conseguiu (e consegue) alcançar o poder foi sempre respeitável.
Se ontem trajava cartola e gravata, hoje passeia-se de sapatilhas e blazer.
Rúben Leitão
Serém é Assistant Professor na Universidade de Nottingham