terça-feira, 25 de janeiro de 2022


 O Liberalismo nunca se apresenta aberta e francamente, envolve a "mensagem" numa roupagem linguística que esconde os verdadeiros objectivos, em textos longos e fechados que cansam e fazem desistir os menos habituados a estas armadilhas. É um conto do vigário das classes da "ma$$a". O artigo que se publica desnuda a figura e mostra bem as garras do sujeito "liberal".

MC


Neoliberalismo à portuguesa I

O propósito deste neoliberalismo à portuguesa passa não só por perpetuar, mas também por ampliar, o domínio de uma classe através da eliminação de todos os direitos e protecções sociais. É uma doutrina repleta de contradições, mas é o que há.

Rúben Leitão Serém

23 de Janeiro de 2022

As eleições de 2022 representam um marco histórico para o neoliberalismo português. De facto, esta é a altura ideal para estudar a Iniciativa Liberal (IL). Ou seja, após ter elegido um deputado e no momento em que procura conciliar uma ideologia elitista com ambições de crescimento, o IL não conseguiu ainda discernir com clareza absoluta entre as propostas que devem ser (por agora) abandonadas, aquelas que podem ser ocultadas através do recurso a linguagem metafórica, e as que merecem plano de destaque.

Um dos exemplos de projecto arquivado é a proposta de obrigar os estudantes universitários a financiarem os seus cursos, o que não constitui surpresa se recordarmos que Carlos Guimarães Pinto já tinha criticado a escolaridade obrigatória até ao 12.º ano como um desperdício de recursos e um ataque à “liberdade de escolha” das famílias. É um recuo táctico, mas a intenção de quebrar o único elevador social funcional em Portugal é mantido. Em suma, é o ciclo em que o purismo ideológico casa com o pragmatismo táctico.

Já as metáforas e chavões servem para camuflar não só a indigência intelectual de Guimarães Pinto e outros, como também políticas mais impopulares. Vamos por partes. Não obstante a narrativa neoliberal de um país a caminhar para a autocracia, o respeito pela liberdade é consensual no espectro político democrático. Portanto, quando o termo liberdade é repetido até à exaustão por uma força política emergente é porque esta procura imprimir-lhe um conceito novo ao mesmo tempo que tenta aproveitar-se da unanimidade em torno da definição clássica. Quem, afinal, é contra a liberdade?

Mas, que “liberdade” é esta que os neoliberais vêem como estando sob ameaça constante? Numa das raras ocasiões em que um militante da IL se viu obrigado a clarificar um chavão (o significado de “visão liberal para a Presidência da República”), Tiago Mayan apresentou os estados de emergência como um assalto à “liberdade”. Faltou adicionar o óbvio, que uma sociedade democrática implica um equilíbrio entre o bem comum e a liberdade individual. No entanto, os neoliberais rejeitam conceitos tão básicos como o de justiça social – “uma miragem”, segundo Hayek – e da sua ausência cercear a liberdade de muitos, incluindo o direito à vida.

Para melhor definir a concepção neoliberal de “liberdade” (por isso o uso de aspas), é importante revisitar os seus alicerces ideológicos. O neoliberalismo assenta numa série de pressupostos simples. O primeiro é o de que todos os humanos são seres egoístas que apenas seguem os seus interesses. Importa realçar que os neoliberais não vêem isto como uma teoria mas antes, segundo Cotrim de Figueiredo, como o âmago da “natureza humana”. Que tal premissa tenha sido refutada por psicólogos sociais é imaterial.

O segundo pressuposto é o de que o mercado livre é o local onde todos estes interesses confluem e se digladiam, resultando numa harmonia perfeita. E, porque o mercado é livre, qualquer ingerência no mesmo constitui um ataque à “liberdade”. A conclusão lógica, segundo Hayek, é a de que uma elite assume o poder, substituindo-se à democracia, mas salvaguardando a “liberdade”.

Menos explícito que Hayek mas igualmente dogmático, Cotrim de Figueiredo afirmou num debate televisivo que a proposta da IL de abolir o salário mínimo nacional e substituí-lo por um salário mínimo municipal é de elementar justiça porque a situação actual limita a “liberdade” dos municípios. Ficámos a saber que os municípios se tornaram indivíduos merecedores de liberdades. Ficou também claro que a “liberdade” é, ao mesmo tempo, uma palavra elástica, para ser utilizada de forma cínica, mas também um termo cuja definição é bastante rígida: a “liberdade” é a económica e esta é absoluta. Não há bem comum ou outras liberdades que possam restringi-la.

Em vez de relembrar o trivial, tal como o facto de que existem áreas da sociedade que devem ser guiadas pela procura do bem comum e não pelo princípio do lucro, ou até mesmo recapitular os inúmeros exemplos práticos da falência da doutrina da infalibilidade do mercado, creio que será mais elucidativo expor o argumento da IL para a existência de “falhas de mercado”. Importa sublinhar que este é um conceito em tudo nebuloso excepto no facto de estas “falhas” não serem sistémicas e que a culpa última é sempre do Estado: ou porque interferiu no mercado ou porque não cumpriu a sua função de regulador, isto apesar de a IL afirmar que o “mercado é, ele próprio, uma forma de regulação, assente numa lógica de Liberdade”​.

As soluções são absurdamente fascinantes. Por exemplo, a corrupção deve ser combatida privatizando e desregulando ainda mais, porque a corrupção existe apenas na esfera do Estado. E isto tudo é a definição de uma ideologia extremista: simplista, dogmática, radical, absoluta e impenetrável a qualquer lógica.

Nunca, nos cinquenta anos da democracia portuguesa, houve um partido tão pequeno que usufruísse de tanta notoriedade pública, podendo contar com apoio explícito de vários comentadores televisivos, cronistas e até de um jornal

Falta clarificar um termo: o Estado. Para os neoliberais, o Estado é simultaneamente uma abstracção e uma ameaça real – a maior de todas – à “liberdade”. Ora, numa democracia, o Estado somos nós. Para ser mais preciso, é a estrutura administrativa do país, tutelada por um governo eleito através de sufrágio universal. É o único garante, se bem que falível, de que a vontade popular é respeitada. É também a maior salvaguarda, mesmo que frágil, de que uma oligarquia económica não transforme as relações laborais em relações feudais. E é precisamente por constituir uma ameaça a esta “liberdade” que é tão odiado.

Esta mundivisão extremista é explanada com particular clarividência na hora das derrotas. Como racionalizar a rejeição desta não-ideologia, desta simples materialização política da “natureza humana”? Qual, então, a causa para a derrocada do neoliberalismo suave do PSD nas eleições autárquicas de 2017 (o então presidente da IL negava, em 2018, que o governo passista tivesse sido “liberal”), ou a mais recente derrota de Paulo Rangel nas eleições internas do partido após ter sido ungido como vencedor antecipado pelo comentariado neoliberal? Segundo o mesmo, só existem duas leituras possíveis: ou a mensagem “liberal” foi mal transmitida ou o público é asinino. Libertos de constrangimentos eleitorais, ressurgem os preconceitos de classe.

Entre as primeiras declarações de Cotrim de Figueiredo após as legislativas de 2019 consta esta pérola: “O PS sabe que mantendo um país amorfo e resignado tem um grupo de pobres, desesperados e dependentes do Estado que lhe irão dar o voto. A pobreza de muitos é o que segura o PS ao poder.” Resumindo, os pobres são irracionais e vivem alegremente da caridade, por isso é que votam em quem os mantém na penúria. É a explicação possível da parte de quem julga que resolve a miséria abolindo o salário mínimo nacional e acredita que basta omitir tal medida do sumário do seu programa eleitoral para ludibriar as massas embrutecidas.

A soberba de Cotrim de Figueiredo é, contudo, compreensível. Nunca, nos cinquenta anos da democracia portuguesa, houve um partido tão pequeno que usufruísse de tanta notoriedade pública, podendo contar com apoio explícito de vários comentadores televisivos, cronistas e até de um jornal. Aliás, o Observador encarna várias das contradições do neoliberalismo: um jornal cujo valor supremo é a “liberdade” mas onde todos os cronistas são de direita; onde reina a meritocracia, mas onde muitos desses colunistas possuem um trajecto profissional medíocre; um jornal que promove a civilidade, mas onde abundam visões apocalípticas de um país a resvalar para o comunismo; e onde a noção de génio consiste em citar acriticamente os ideólogos do neoliberalismo como se de uma verdade divina se tratasse. O recurso constante a elogios mútuos e a argumentos de autoridade desvelam mais outra contradição: o corporativismo de classe.

Confrontado com a crise de 2008, Alan Greenspan, o então chefe da Reserva Federal norte-americana, afirmou que a sua ideologia tinha falhado. Pode parecer anacrónico que este credo reentre no panorama político nacional em 2022. Mas não é

E isto leva-nos para a última questão. O propósito deste neoliberalismo à portuguesa passa não só por perpetuar, mas também por ampliar, o domínio de uma classe através da eliminação de todos os direitos e protecções sociais. É uma doutrina repleta de contradições, mas é o que há. Se antes existia o direito divino dos reis, e isso bastou até ao século XIX, hoje temos um neoliberalismo que resiste até à sua declaração de óbito.

Confrontado com a crise de 2008, Alan Greenspan, o então chefe da Reserva Federal norte-americana, afirmou que a sua ideologia tinha falhado. Pode parecer anacrónico que este credo reentre no panorama político nacional em 2022. Mas não é, porque estamos perante o projecto político de uma classe que, cinco décadas após o 25 de Abril, acredita que a democracia foi longe demais em termos de justiça social e económica, e que é necessário um “PREC liberal”.

Parafraseando o título de um livro assinado pelo primeiro presidente da IL, Obrigado pela democracia, agora queremos liberdade. Para o neoliberalismo à portuguesa chegou a hora de substituir a liberdade pela “liberdade”.

Rúben Leitão Serém é Assistant Professor na Universidade de Nottingham



Neoliberalismo à portuguesa II

O programa da Iniciativa Liberal é exactamente aquilo que aparenta ser – um projecto de classe. Ou melhor, a fronda de uma classe que acha que a democracia portuguesa já foi longe demais em termos de justiça social e económica.

Rúben Leitão Serém

24 de Janeiro de 2022

Por interesse profissional, li as 614 páginas do programa eleitoral da Iniciativa Liberal. Que este partido tenha produzido um paradigma de documento burocrático é apenas uma das muitas contradições do neoliberalismo. Proponho, então, que naveguemos as águas opacas de um texto repleto de informação duplicada, com uma mescla de propostas vagas com outras absurdamente detalhadas e saturado de lugares-comuns e muitos anglicismos.

Por isto tudo, importa sublinhar que, na mundivisão neoliberal, a burocracia é um monopólio do Estado e que a sua eliminação passa pela constante revisão de procedimentos e monitorização de funcionários. Ou seja, mais burocracia. Mas não se julgue que esta assenta num “corte cego de custos”, até porque existem planos para promover “salários competitivos na Administração Pública, em especial nos seus níveis mais elevados”, à custa “de uma racionalização faseada do número de funcionários”. Bastava ter escrito “despedimento colectivo” e ter-se-iam economizado algumas palavras.

Para se ter ideias não basta dizê-lo, há que tê-las. O autoproclamado “partido das ideias” resume-se a um dogma único – o mercado livre é infalível e o Estado é a sua némesis –, o que leva a conclusões tão singulares como afirmar que não existe um problema de especulação imobiliária em Portugal. Antes pelo contrário, urge “libertar o sector da habitação” que se encontra prisioneiro às mãos do Estado.

Seguindo o mesmo raciocínio, a IL exige que se revogue a lei que estabelece um limite de sete alojamentos locais por proprietário nas zonas de contenção, a abolição do Imposto Municipal sobre Transacções Onerosas de Imóveis, entre outros, e que o Estado se desfaça dos seus imóveis devolutos. Entretanto, a questão das residências universitárias está já a ser resolvida pelo privado e, “com tempo, até os estudantes mais carenciados beneficiarão desta dinâmica de mercado” que se quer livre, pois “a função do Estado é apoiar quem mais necessita e não concorrer”, mesmo em casos em que apoiar implica interferir.

A bizarria argumentativa não se fica por aqui. É quase impossível descrever a fé dos neoliberais no mercado. Por exemplo, a proposta da IL de reforma do sistema de representação proporcional na Assembleia da República é exequível porque, e eis a tese, “tal como no mercado, a concorrência funcionará”. Todavia, e no mesmo programa, lemos a antítese: “as pressões concorrenciais tenderiam a levar as entidades bancárias a agir de forma nem sempre consonante com a prossecução” da estabilidade do sistema financeiro. A conclusão, desprovida tanto de síntese como de sentido, é de que a culpa é do Estado, porque este ou interfere, ou não regula. Em suma, não há bancos maus, apenas Estado péssimo. Encontramo-nos perante um raciocínio circular e à prova de qualquer lógica.

A incoerência atinge novos patamares nas secções sobre o ambiente e mundo rural. “Não se prevê nenhuma compensação financeira aos agricultores” afectados pelas políticas da IL porque a “expetativa não deve ser financeira, mas sim resolver um problema ambiental”. Palavras nobres e corajosas. Contudo, em relação à questão ambiental em si, a solução apresentada é a de mais crescimento económico sem reduzir as emissões.

Importa frisar que os neoliberais não negam as alterações climáticas, apenas rejeitam que esta seja uma emergência. Aliás, e segundo Carlos Guimarães Pinto, um dos portentos intelectuais da IL, o aparecimento de uma consciência ecológica apenas é possível após o país alcançar um certo grau de desenvolvimento económico. De acordo com a mão invisível do PIB, a China deve estar prestes a atingir o nirvana.

Todos os problemas se tornam simples quando a resposta é única. Para a reforma do Estado, a panaceia das privatizações. É um remédio que serve para justificar a capitalização do sistema de pensões (e, a propósito, “promover a participação no mercado de trabalho de pessoas em idade de reforma”); a privatização da RTP, da Caixa Geral de Depósitos e da rede de transportes do Estado; a criação de PPPs na Cultura; o “aumento e desenvolvimento da colaboração com o sector privado” nas embaixadas e “mais liberdade para contratar e despedir” nos consulados. Até a violência doméstica se combate promovendo “o investimento privado na rede de apoio à habitação para vítimas”. O sofrimento é um óptimo negócio.

A “liberdade de escolha” na Saúde e Educação é um tema recorrente e a razão apresentada para legitimar o financiamento massivo de corporações roça o anedótico: “O Estado não financia o privado, financia o aluno” (e o mesmo se aplica ao doente), uma lógica em tudo semelhante à da National Rifle Association: “As armas não matam as pessoas; as pessoas matam-se umas às outras.”

Menos conhecida é a proposta para que a Saúde passe a ser financiada através de uma taxa única sobre os salários, porque a existência de escalões “leva a uma discussão sobre o ritmo de progressividade”. Pelos vistos, a única maneira de evitar um debate enfadonho passa por taxar ricos e pobres por igual. É o argumento possível, mas não o mais inescrupuloso. Este baseia-se na instrumentalização dos mais carenciados para exigir medidas que visam substituir o princípio do bem comum pelo do lucro. Ainda sobre a Saúde, falta concluir que este plano, conjugado com o famoso “choque fiscal”, levará à degradação e eventual destruição do SNS, que é apenas e só o objectivo final da IL. Após isso, teremos a liberdade, mas não a escolha.

Todavia, o exemplo mais crasso de canalização de fundos públicos para o privado é o ainda menos conhecido Plano Ferroviário Nacional, que implicará a construção de centenas de quilómetros de ferrovia para ser depois concedida a privados. A previsível implosão da CP é negada e fundamentada, como já suspeitávamos, numa “dinâmica positiva da competição”. Esta política rentista pode ser resumida numa palavra cada vez mais querida a esta direita – subsidiodependência.

Já a famosa taxa única de IRS de 15% foi apresentada por Cotrim de Figueiredo como uma medida em que “ninguém fica a perder”. Faltou acrescentar que alguns ficarão a ganhar e muito. Ora vejamos: os dois mil milhões de perda de receita fiscal contabilizados pela IL correspondem ao valor cobrado a 4% dos agregados familiares mais ricos. E por falar em liberalidades, falta mencionar que, segundo a IL, o “nosso setor bancário é atualmente alvo de inúmeras medidas punitivas”, logo, é uma questão de justiça que se exija o fim da taxação de “bónus distribuídos a administradores empresariais”.

No caso da taxa única, a Lituânia é apontada com um exemplo a seguir, pois ultrapassou Portugal no PIB per capita. De facto, é um caso que merece reflexão. Entre 1990 e 2020, a Lituânia perdeu um milhão dos seus 3,7 milhões de habitantes. A maioria emigrou à procura de melhores condições de vida. É uma catástrofe demográfica equivalente a uma guerra. Mas o PIB cresceu

Mas é precisamente na taxa única que reside a chave que decifrará o chavão favorito da IL: “mais crescimento económico” – mas como? Uma das tácticas recorrentes do partido passa por enfatizar que as políticas propostas foram já testadas noutros países. No caso da taxa única, a Lituânia é apontada com um exemplo a seguir, pois ultrapassou Portugal no PIB per capita. De facto, é um caso que merece reflexão. A taxa de suicídio da Lituânia é das mais altas do mundo, sendo uma das causas a desigualdade económica, a segunda mais alta da UE. O sistema de educação pratica dos salários mais baixos da UE enquanto o desempenho académico dos estudantes se encontra abaixo da média da OCDE. Na Saúde, este país tem hoje menos 52 hospitais que em 1990 e a esperança média de vida é seis anos mais baixa do que a portuguesa. Com resultados semelhantes, a Letónia decidiu abandonar a taxa única de IRS em 2018. Por último, entre 1990 e 2020, a Lituânia perdeu um milhão dos seus 3,7 milhões de habitantes. A maioria emigrou à procura de melhores condições de vida. É uma catástrofe demográfica equivalente a uma guerra. Mas o PIB cresceu.

Ainda sobre o tema da desigualdade económica, a reacção da IL aos tumultos sofridos no Chile é sintomática. Em Novembro de 2019, o partido entregou um voto de condenação sobre a violência no país em que o objecto da sua censura não eram as assimetrias económicas que provocaram os protestos, mas “o aumento do preço dos transportes públicos por parte do Governo, uma medida que não se enquadra nos princípios do mercado livre”. Esta negação do impacto da desigualdade, conjugado com as propostas laborais da IL, clarificam categoricamente de que forma o partido pensa colocar “Portugal a crescer”.

Sem surpresas, a IL ambiciona “reduzir a complexidade administrativa nos processos de despedimento individual” e exige mais “flexibilidade na legislação laboral” – bastava ter escrito “precarizar”. Propõe também o fim do decreto do pagamento de horas extraordinárias e, a cereja no topo do bolo, a abolição do salário mínimo nacional e a sua substituição por um salário mínimo municipal. Mais uma vez, o conceito de justiça reaparece para abolir direitos básicos. A IL menciona a injustiça que é poder usufruir do mesmo salário mínimo em Lisboa e em Belmonte. É uma proposição tão espúria como alegar que criar 308 salários mínimos significa desburocratizar, mas é esclarecedora para quem procura entender a mentalidade neoliberal: não são os lisboetas pobres que merecem salários mais altos; são os belmonteses que vivem acima das suas possibilidades.

Vale a pena lembrar que em Portugal o extremismo que conseguiu (e consegue) alcançar o poder foi sempre respeitável. Se ontem trajava cartola e gravata, hoje passeia-se de sapatilhas e blazer

As “perguntas frequentes” do programa da IL são talvez as mais elucidativas, por incluírem questões como: “Mas isto não favorece os mais ricos?” e “Estas reformas não vão prejudicar os mais desfavorecidos?”. O leitor nunca encontra formulações inversas, o que por si é bastante esclarecedor, mas não tanto como o programa de Assistência Social, que ocupa umas modestas seis páginas. A munificência neoliberal abrange a criação de centros de alojamento para os sem-abrigo, mas sempre salvaguardando a “relação custo/qualidade”, senão haverá “cortes automáticos” e, claro, envolvendo o sector privado. A lógica é cristalina: “apoiar os mais desfavorecidos passa por criar as condições necessárias para que haja crescimento económico sustentado”. Encontramo-nos perante a versão neoliberal da máxima pombalina: sepultar os pobres; cuidar dos ricos.

O programa da IL é exactamente aquilo que aparenta ser – um projecto de classe. Ou melhor, a fronda de uma classe que acha que a democracia portuguesa já foi longe demais em termos de justiça social e económica. A aplicação deste programa implicaria o fim da democracia tal e qual como a conhecemos e a implantação de uma versão moderna de uma plutocracia censitária do século XIX. A normalidade com que a direita clássica acolhe a IL no seu regaço e a falta de escrutínio de grande parte da comunicação social não representa nada de novo. Na realidade, existe uma tendência, compreensível dada a sua natureza histriónica em focar a atenção na direita que calça bota cardada. Contudo, vale a pena lembrar que em Portugal o extremismo que conseguiu (e consegue) alcançar o poder foi sempre respeitável. Se ontem trajava cartola e gravata, hoje passeia-se de sapatilhas e blazer.

Rúben Leitão Serém é Assistant Professor na Universidade de Nottingham


domingo, 9 de janeiro de 2022


 

Casaquistão tem 2.724.900 Km2 ; UE tem 4.422,777 Km2. População: UE 493 milhões, Casaquistão cerca de 19 milhões.


Artigo de Pepe Escobar, ajuda a perceber melhor o que se encontra em jogo.


Registo: “toda a aventura do Cazaquistão está sendo patrocinada pelo MI6 para criar um novo Maidan pouco antes das conversações Rússia/EUA-OTAN em Genebra e Bruxelas na próxima semana, para evitar qualquer tipo de acordo. “

 


Enviada: Sunday, January 9, 2022 8:56 AM

Assunto: Fwd: Estepe em chamas: a revolução colorida do Casaquistão

 

ESTEPE EM CHAMAS: A REVOLUÇÃO COLORIDA DO AFEGANISTÃO

 

Por Pepe Escobar em 6.1.2022

 

 

MAIDAN EM ALMATY? OH, SIM! MAS É COMPLICADO...

 

Então, isso é tanto medo e ódio tudo sobre gás? Na verdade, não.

 

O Cazaquistão mergulhou no caos virtualmente da noite para o dia, em princípio, por causa da duplicação dos preços do gás liquefeito, que atingiu o equivalente (russo) de 20 rublos por litro (compare com uma média de 30 rublos na própria Rússia).

 

Essa foi a centelha para protestos em todo o país, abrangendo todas as latitudes, do centro de negócios Almaty aos portos do Mar Cáspio de Aktau e Atyrau e até mesmo a capital Nur-Sultan, anteriormente Astana. 

 

O governo central foi forçado a reduzir o preço do gás para o equivalente a 8 rublos o litro. No entanto, isso apenas levou à próxima fase dos protestos, exigindo preços mais baixos dos alimentos, o fim da campanha de vacinação, uma idade de aposentadoria mais baixa para mães com muitos filhos e - por último, mas não menos importante - mudança de regime, completa com seu próprio slogan: Shal, Ket! (“Abaixo o velho.”)

 

O "velho" não é outro senão o líder nacional Nursultan Nazarbayev, 81, que mesmo quando deixou a presidência após 29 anos no poder, em 2019, para todos os efeitos práticos continua a ser a eminência cinzenta do Cazaquistão como chefe do Conselho de Segurança e o árbitro da política interna e externa.

 

A perspectiva de mais uma revolução de cores inevitavelmente vem à mente: talvez amarelo-turquesa - refletindo as cores da bandeira nacional do Cazaquistão. Especialmente porque bem na hora, observadores atentos descobriram que os suspeitos de costume - a embaixada americana - já estava “alertando” sobre protestos em massa já em 16.12.2021.

 

CAOS EM ALMATY 

 

Para o mundo exterior, é difícil entender por que uma grande potência exportadora de energia como o Cazaquistão precisa aumentar os preços do gás para sua própria população.

 

A razão é - o que mais - neoliberalismo desenfreado e as proverbiais travessuras do mercado livre. Desde 2019, o gás liquefeito é comercializado eletronicamente (Leilões de "pacotes" de gas) no Cazaquistão. Portanto, manter os preços máximos - um costume de décadas - logo se tornou impossível, já que os produtores enfrentavam constantemente a venda de seus produtos abaixo do custo, à medida que o consumo disparava.

 

Todo mundo no Cazaquistão esperava um aumento de preço, assim como todo mundo usa gás liquefeito, especialmente em seus carros convertidos. Todo mundo no Cazaquistão tem um carro, como me disseram, com tristeza, durante minha última visita a Almaty, no final de 2019, quando tentava em vão encontrar um táxi para ir para o centro.

 

É bastante revelador que os protestos começaram na cidade de Zhanaozen, bem no centro de petróleo/gás de Mangystau. E também é revelador que a Unrest Central imediatamente se voltou para a viciada em carros Almaty, o verdadeiro centro de negócios do país, e não a capital governamental isolada e com muita infraestrutura no meio das estepes. 

 

A princípio, o presidente Kassym-Jomart Tokayev parecia ter atropelado um cervo em frente aos faróis. 

 

Ele prometeu o retorno dos limites de preços, instalou um estado de emergência/toque de recolher em Almaty e Mangystau (então em todo o país), aceitando a renúncia do atual governo em massa e nomeando um vice-primeiro-ministro sem rosto, Alikhan Smailov, como PM interino até a formação do um novo gabinete.

 

No entanto, isso não pode conter a agitação. Em rápida sucessão, tivemos o assalto ao Almaty Akimat (gabinete do prefeito); 

 

— manifestantes atirando no Exército; 

 

— um monumento de Nazarbayev demolido em Taldykorgan; 

 

— sua antiga residência em Almaty assumida; Kazakhtelecom desconectando todo o país da Internet; 

 

— vários membros da Guarda Nacional - incluindo veículos blindados - juntando-se aos manifestantes em Aktau; 

 

— ATMs (policiais) morreram.

 

Então Almaty, mergulhada no caos completo, foi virtualmente tomada pelos manifestantes, incluindo o aeroporto internacional, que na manhã de quarta-feira (5.1.2022) estava sob segurança extra, e à noite havia se tornado território ocupado.

 

O espaço aéreo do Cazaquistão, por sua vez, teve de enfrentar um longo congestionamento de jatos particulares que partiam para Moscou e a Europa Ocidental. Embora o Kremlin tenha notado que Nur-Sultan não havia pedido nenhuma ajuda russa, uma “delegação especial” logo estava saindo de Moscou. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, ressaltou cautelosamente: “...estamos convencidos de que nossos amigos cazaques podem resolver seus problemas internos de forma independente”, acrescentando: “é importante que ninguém de fora interfira”.

 

PALESTRAS DE GEOESTRATÉGIA

 

Como tudo pode descarrilar tão rápido? 

 

Até agora, o jogo de sucessão no Cazaquistão tinha sido visto, principalmente, como um golpe no norte da Eurásia. 

 

Os chefões locais, oligarcas e as elites compradoras mantiveram seus feudos e fontes de renda. 

 

No entanto, em "off", fui informado em Nur-Sultan no final de 2019 que haveria sérios problemas pela frente quando alguns clãs regionais viessem a cobrar - como no confronto com “o velho” Nazarbayev e o sistema que ele implementou.

 

Tokayev fez o proverbial apelo “para não sucumbir a provocações internas e externas” - o que faz sentido - mas também garantiu que o governo “não cairá”. 

 

Bem, já estava caindo, mesmo depois de uma reunião de emergência tentando resolver a teia emaranhada de problemas socio-econômicos com a promessa de que todas as “demandas legítimas” dos manifestantes seriam atendidas.

 

Isso não funcionou como um cenário clássico de mudança de regime - pelo menos inicialmente. 

 

A configuração era de um estado de caos fluido e amorfo, já que as - frágeis - instituições cazaques de poder eram simplesmente incapazes de compreender o mal-estar social mais amplo. 

 

Não existe oposição política competente: não há intercâmbio político. A sociedade civil não tem canais para se expressar.

 

Então, sim: há um motim acontecendo - para citar o "rhythm'n blues" americano. E todo mundo é um perdedor. 

 

O que ainda não está exatamente claro é quais clãs conflitantes estão inflamando os protestos - e qual é a sua agenda caso eles tenham uma chance de chegar ao poder. 

 

Afinal, nenhum protesto “espontâneo” pode surgir simultaneamente em toda esta vasta nação, virtualmente da noite para o dia. 

 

O Cazaquistão foi a última república a deixar a URSS em colapso há mais de três décadas, em dezembro de 1991. 

 

Sob Nazarbayev, ele imediatamente se envolveu em uma política externa autodescrita como “multivetorial”. 

 

Até agora, Nur-Sultan estava habilmente se posicionando como um mediador diplomático principal - das discussões sobre o programa nuclear iraniano já em 2013 à guerra na Síria a partir de 2016. O objetivo: solidificar-se como a ponte quintessencial entre a Europa e na Ásia.

 

A Nova Rota da Seda, impulsionada pela China, ou BRI (Belt & Road Iniciative), foi oficialmente lançada por Xi Jinping na Universidade de Nazarbayev em setembro de 2013. 

 

Isso aconteceu para se encaixar rapidamente com o conceito do Cazaquistão de integração econômica da Eurásia, elaborado após o próprio projeto de gastos do governo de Nazarbayev, Nurly Zhol (“ Bright Path ”), projetado para turbinar a economia após a crise financeira de 2008-9. 

 

Em setembro de 2015, em Pequim, Nazarbayev alinhou Nurly Zhol com o BRI, levando o Cazaquistão ao centro da nova ordem de integração da Eurásia. 

 

Geoestrategicamente, a maior nação sem litoral do planeta tornou-se o principal território de interação das visões chinesa e russa, o BRI e a União Econômica da Eurásia (EAEU).

 

UMA TATICA DIVERSIVA

 

Para a Rússia, o Cazaquistão é ainda mais estratégico do que para a China. Nur-Sultan assinou o tratado CSTO em 2003. É um membro chave da EAEU. Ambas as nações têm laços técnico-militares maciços e conduzem cooperação espacial estratégica em Baikonur. O russo tem status de língua oficial, falado por 51% dos cidadãos da república.

 

Pelo menos 3,5 milhões de russos vivem no Cazaquistão. Ainda é cedo para especular sobre uma possível “revolução” tingida com as cores da libertação nacional caso o antigo sistema acabasse entrando em colapso. E mesmo que isso acontecesse, Moscou nunca perderá toda a sua considerável influência política. 

 

Portanto, o problema imediato é garantir a estabilidade do Cazaquistão. Os protestos devem ser dispersoados. Haverá muitas concessões econômicas. O caos desestabilizador permanente simplesmente não pode ser tolerado - e Moscou sabe disso de cor. Outro - rolando - Maidan está fora de questão.

 

A equação da Bielo-Rússia mostrou como uma mão forte pode operar milagres. Ainda assim, os acordos do CSTO não cobrem assistência em caso de crises políticas internas - e Tokayev não parecia inclinado a fazer tal pedido.

 

Até que ele fez. Ele pediu que o CSTO interviesse para restaurar a ordem.

 

Haverá um toque de recolher imposto pelos militares. E Nur-Sultan pode até mesmo confiscar os ativos de empresas dos EUA e do Reino Unido que supostamente patrocinam os protestos.

 

Foi assim que Nikol Pashinyan, presidente do Conselho de Segurança Coletiva do CSTO e primeiro-ministro da Armênia, formulou: Tokayev invocou uma "ameaça à segurança nacional" e à "soberania" do Cazaquistão, "causada, inter alia, por interferência externa". Assim, o CSTO “decidiu enviar forças de paz” para normalizar a situação, “por um período limitado de tempo”.

 

Os suspeitos desestabilizadores usuais são bem conhecidos. Eles podem não ter o alcance, a influência política e a quantidade necessária de cavalos de Tróia para manter o Cazaquistão em chamas indefinidamente.

 

Pelo menos os próprios cavalos de Tróia estão sendo muito explícitos. Eles querem a libertação imediata de todos os presos políticos; mudança de regime; um governo provisório de cidadãos “respeitáveis”; e - o que mais - “retirada de todas as alianças com a Rússia”. 

 

Então tudo desce ao nível da farsa ridícula, quando a UE começa a pedir às autoridades do Cazaquistão que “respeitem o direito a protestos pacíficos”. Como ao permitir total anarquia, roubo, saque, centenas de veículos destruídos, ataques com rifles de assalto, caixas eletrônicos e até mesmo o "Duty Free" no aeroporto de Almaty completamente saqueado.

 

Esta análise (em russo) cobre alguns pontos-chave, mencionando, “a internet está cheia de cartazes de propaganda pré-arranjados e memorandos para os rebeldes” e o fato de que “as autoridades não estão limpando a bagunça, como Lukashenko fez na Bielo-Rússia.” (ver em: https://www.kp.ru/daily/27348.3/4528358/)

 

Os slogans até agora parecem se originar de muitas fontes - exaltando tudo, desde um “caminho ocidental” para o Cazaquistão à poligamia e a lei Sharia: “Não há um objetivo único ainda, não foi identificado. O resultado virá mais tarde. Geralmente é o mesmo. A eliminação da soberania, a gestão externa e, finalmente, como regra, a formação de um partido político anti-russo." 

 

Putin, Lukashenko e Tokayev passaram muito tempo ao telefone, por iniciativa de Lukashenko. 

 

Os líderes de todos os membros do CSTO estão em contato próximo. Um plano mestre de jogo - como em uma maciça “operação antiterrorista” - já foi traçado. O general Gerasimov supervisionará pessoalmente.

 

Agora compare com o que aprendi de duas fontes de inteligência diferentes e de alto escalão.

 

A primeira fonte foi explícita: toda a aventura do Cazaquistão está sendo patrocinada pelo MI6 para criar um novo Maidan pouco antes das conversações Rússia/EUA-OTAN em Genebra e Bruxelas na próxima semana, para evitar qualquer tipo de acordo. 

 

Significativamente, os “rebeldes” mantiveram sua coordenação nacional mesmo depois que a internet foi desconectada.

 

A segunda fonte é mais matizada: os suspeitos do costume estão tentando forçar a Rússia a recuar contra o Ocidente coletivo, criando uma grande distração em sua frente oriental, como parte de uma estratégia contínua de caos ao longo de todas as fronteiras da Rússia. Essa pode ser uma tática de diversão inteligente, mas a inteligência militar russa está observando. De perto. E para o bem dos suspeitos de costume, isso não pode ser interpretado melhor - ameaçadoramente - foi uma provocação de guerra.


segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

 





2022 um ano decisivo para a democracia nos EUA

Nas colunas dos mais importantes jornais norte-americanos fala-se abertamente sobre os riscos de uma guerra civil nos Estados Unidos. Em 2022, esses avisos vão ser postos à prova por uma série de decisões do Supremo Tribunal e pelas eleições intercalares de Novembro.

 

Alexandre Martins

27 de Dezembro de 2021

Um ano depois da invasão da sede do Congresso norte-americano por apoiantes de um Presidente dos Estados Unidos em exercício de funções, a corrosão acelerada da democracia americana é hoje uma realidade sobre a qual trabalham vários observadores e estudiosos independentes.

Em Janeiro de 2021, nos dias que se seguiram à invasão do Capitólio por cidadãos norte-americanos — um episódio sem precedentes na História dos EUA —, os discursos de condenação do ataque, por parte dos líderes do Partido Republicano, criaram a esperança de que o processo de deterioração da democracia podia ser revertido.

“Cidadãos americanos atacaram o seu próprio Governo”, disse o líder dos republicanos no Senado, Mitch McConnell, na votação final do segundo processo de destituição de Donald Trump, a 13 de Fevereiro de 2021. “Agiram dessa forma, porque foram alimentados com falsidades delirantes pelo homem mais poderoso na Terra — que estava zangado por ter perdido uma eleição.”

No mesmo dia, McConnell votaria contra a condenação de Trump, permitindo que o responsável moral pelo ataque ao Capitólio (segundo as suas próprias palavras) pudesse voltar a candidatar-se à Casa Branca em 2024. Mas havia a esperança de que o discurso do líder republicano fosse suficiente para trazer de volta à realidade os eleitores que acreditaram nas “falsidades delirantes” de Trump (também segundo as suas palavras de McConnell).

De acordo com as leituras mais optimistas da altura, as queixas de fraude eleitoral (nunca provadas em dezenas de processos nos tribunais e desmentidas por todas as recontagens e auditorias, incluindo por apoiantes de Trump) iam acabar por desaparecer com o passar do tempo, como tantas outras crises políticas e constitucionais no passado — à excepção dos anos que antecederam a guerra civil norte-americana, de 1861-1865.

“Sobrevivência do país”

Se o ano de 2021 marcou o fim da ilusão de que Joe Biden — ou, para esse efeito, Barack Obama, Oprah Winfrey ou Lincoln ressuscitado — seria capaz de salvar os EUA de uma corrida acelerada em direcção a um futuro potencialmente explosivo, o ano de 2022 será decisivo para se perceber até que ponto ainda é possível salvar a democracia americana de uma divisão tão profunda como a que originou a guerra civil de 1861-1865.

Numa sondagem da Universidade de Harvard, publicada no início de Dezembro, só 7% dos jovens norte-americanos dos 18 aos 29 anos consideram que o estado da democracia no país é “saudável”. A maioria, 52%, diz que a democracia está “em apuros”, ou é mesmo já uma “democracia falhada”.

E a percentagem é muito mais elevada entre os jovens republicanos do que entre democratas e independentes — o que reforça a ideia de que as queixas infundadas de fraude eleitoral lançadas por Trump passaram a fazer parte das crenças mais profundas no Partido Republicano. Segundo a sondagem, 70% dos jovens republicanos dizem que a democracia norte-americana está em risco, e 50% pensam que há pelo menos 50% de hipóteses de virem a assistir a uma guerra civil no seu tempo de vida.

Numa outra sondagem, da Universidade da Virgínia, publicada em Outubro, mais de 80% dos inquiridos em cada um dos partidos dizem que os representantes eleitos do partido adversário representam “um perigo iminente para a democracia americana”.

“Não é nenhum exagero dizer que é a sobrevivência do país que está em jogo”, diz Dana Milbank, um colunista do The Washington Post que foi correspondente na Casa Branca durante a Administração de George W. Bush.

“Se conhecem pessoas que ainda estão em negação sobre a crise da democracia americana”, continua Milbank no seu artigo, publicado a 17 de Dezembro, “tenham a gentileza de lhes tirar a cabeça da areia durante o tempo suficiente para que ouçam esta mensagem: uma nova descoberta surpreendente, feita por uma das principais autoridades do país em guerras civis no estrangeiro, diz que nós estamos à beira da nossa própria guerra civil.”

A descoberta a que o colunista do Post se refere faz parte de um livro com publicação agendada para Janeiro de 2022, escrito por Barbara F. Walter, uma professora de Ciência Política na Universidade da Califórnia que integra um painel de aconselhamento da CIA sobre a instabilidade nos vários países do mundo — a Political Instability Task Force.

“Ninguém quer acreditar que a sua amada democracia está em declínio, nem que esteja a caminhar para uma guerra”, diz Walter. “Mas se você fosse um analista de um país estrangeiro atento aos acontecimentos na América — como se estivesse a olhar para a Ucrânia, a Costa do Marfim ou a Venezuela —, iria usar uma lista predefinida para avaliar as condições que tornam provável o início de uma guerra civil. E iria descobrir que os Estados Unidos, uma democracia fundada há mais de dois séculos, entrou num terreno muito perigoso.”

Segundo a análise de Walter, os EUA já passaram pelas fases de “pré-insurgência” e de “conflito incipiente” — duas das três categorias que o seu painel usa para avaliar os riscos de uma guerra civil em qualquer outro país no mundo. “Só o tempo dirá”, acrescenta Milbank, “se a fase final, a da ‘insurgência aberta’, começou com a invasão do Capitólio.”

Supremo e eleições

Em 2022, há pelo menos dois acontecimentos que devem ser acompanhados com atenção para se perceber se os avisos catastrofistas sobre o futuro da democracia americana vão ficar mais perto de se tornarem realidade: a decisão final do Supremo Tribunal dos EUA sobre o direito ao aborto no país, que vai ser conhecida em Junho ou Julho; e as eleições intercalares de Novembro.

Numa audiência preliminar, no início de Dezembro, a maioria conservadora no Supremo adiantou que pode vir a devolver às assembleias legislativas dos 50 estados norte-americanos a autoridade para decidirem, cada uma por si, em que circunstâncias podem as mulheres ter direito a um aborto em condições de segurança.

Na prática, essa decisão iria pôr fim à consagração da interrupção da gravidez, em determinadas circunstâncias, como um direito constitucional — que existe nos EUA desde 1973. Ao mesmo tempo, aprofundaria ainda mais as divisões no país, no auge das campanhas eleitorais.

E as eleições de Novembro de 2022 são vistas, a esta distância, como muito importantes para o futuro da democracia dos EUA, apenas dois anos antes da eleição presidencial de 2024.

É provável que o Partido Republicano recupere a maioria nas duas câmaras do Congresso, o que lhe dará ainda mais margem de manobra para continuar a aprovar, nos estados mais conservadores, leis eleitorais que tornam legais muitas das pressões feitas por Trump, em 2020, no sentido de impedir a vitória de Biden.

“Na eleição presidencial de 2024, não haverá uma repetição dos acontecimentos de 6 de Janeiro de 2021”, diz Lawrence Douglas, professor de Direito na Universidade de Amherst, num artigo publicado no jornal Guardian, a 17 de Dezembro. “Quando o Congresso abrir os votos do Colégio Eleitoral, a 6 de Janeiro de 2025, o golpe estará consumado. Se isso acontecer, é porque o golpe foi preparado antecipadamente nos gabinetes dos responsáveis eleitorais nos estados mais disputados. E isso está a ser escrito neste preciso momento.”

Em Junho de 2020, o mesmo Lawrence Douglas dizia, em entrevista ao PÚBLICO, que era “impossível imaginar Trump a aceitar uma derrota nas eleições” — o que poucos se atreviam a dar como certo na altura, e que viria a acontecer cinco meses mais tarde.

tp.ocilbup@snitram.erdnaxela