O arco
da corrupção
25/03/2014 - 01:42
Há todas as razões para o combate à
corrupção ser uma bandeira da esquerda e nenhuma para não o ser.
Existem diferenças de monta
entre as análises feitas à esquerda e à direita sobre a nossa crise económica e
financeira. Essas diferenças têm que ver com as diferentes perspectivas sobre a
origem dos nossos males, com o diagnóstico dos males em si e com o prognóstico.
Quanto às origens, enquanto a esquerda
coloca de uma forma geral a tónica nas regras de funcionamento do euro, na
crise financeira de 2008, na consequente redução das receitas do Estado e
aumento de despesas sociais, na austeridade ela própria e na debilidade da
nossa estrutura produtiva, a direita coloca em geral a tónica num excesso da
despesa do Estado — seja devido aos investimentos em grandes projectos ou
aos serviços do Estado social — e na corrupção.
A corrupção está também presente nas
análises à esquerda, mas é em geral tratada com alguma contenção, já que a
esquerda considera disparatado colocar este factor no topo da lista de
responsáveis pelo empobrecimento do país, pelo desemprego e pela perda de
direitos sociais. De facto, mesmo que Portugal fosse o mais impoluto dos
países, a nossa situação económica, social e política não seria
substancialmente diferente, se se mantivessem todos os outros factores.
Esta diferença de perspectivas é
rica em consequências: a primeira é que a mensagem da esquerda é
dificilmente compreensível (o que é “a arquitectura do euro”? o que é “a
soberania monetária”? o que foi “a crise de 2008”?), enquanto a da direita é
fácil de perceber — ficámos sem dinheiro porque gastámos acima das nossas possibilidades
e porque nos andaram a roubar.
Podemos dizer que a mensagem da direita
é uma descarada mentira ou que é uma simplificação abusiva. Seja como for, ela
passa mais facilmente para a opinião pública. É simples e fácil de reproduzir.
Esquerda e direita podem discutir a
questão da despesa do Estado, mas é impossível um acordo total sobre estas
questões, onde qualquer compromisso obrigará a cedências mútuas: qual deve ser
o papel do Estado no fornecimento de serviços sociais essenciais como a educação,
a saúde e a Segurança Social? Que tipo e que nível de protecção deve o Estado
garantir aos mais desprotegidos? Que papel deve o Estado guardar para si? O que
deve fazer em nome próprio e o que pode subcontratar? Deve executar e gerir ou
regular e encomendar? Que nível de gastos são admissíveis? Que impostos estamos
dispostos a pagar para garantir as funções do Estado?
No entanto, sobre a questão da
corrupção, não existem, em princípio, diferenças de opinião entre a esquerda e
a direita: ambos os campos acham que não se deve roubar e que é particularmente
feio roubar o dinheiro da comunidade.
No entanto, apesar disso, a denúncia
vociferante da corrupção é usada com frequência como recurso retórico da
direita — é mesmo típica da direita populista “antipolítica”
emergente — e só raramente ele ocupa um papel central nas posições da
esquerda.
Este facto é tanto mais estranho quanto
a corrupção é um fenómeno especialmente ligado à prática política dos partidos
do chamado “arco da governação” — tanto, aliás, que seria mais rigoroso
usar a expressão “arco da corrupção” — e quanto as suspeitas ou casos de
corrupção são raros e combatidos com particular veemência nos partidos à
esquerda destes. Apesar disso, esta esquerda, piedosamente, continua a
considerar a corrupção como um epifenómeno da política, independente das
ideologias, e recusa-se no seu discurso político a estabelecer um laço entre os
partidos do “arco da governação” e a corrupção, como a simples correlação
estatística sugeriria.