A realidade nunca é a preto e branco, é sempre mais complexa, e para a entender são necessários vários focos para a iluminar. Os dois artigos que divulgamos, de Miguel Real, - um autor que tem vários livros sobre nós, os portugueses e a sua história, que tenho lido com proveito e prazer - , são, creio, elucidativos. Boa leitura, embora extensa vale a pena.
Identidade
histórica em mudança (I)
Por Miguel Real
29/01/2015 -
A modernização europeia de Portugal
entre 1980 e 2000 provocou uma profundíssima alteração nas suas instituições
fundamentais.
Sociologicamente, a modernização
europeia de Portugal entre 1980 e 2000 provocou uma profundíssima alteração nas
suas instituições fundamentais:
1. – operou-se uma profundíssima
alteração nos sectores produtivos da economia, com a terciarização desta a
suplantar os sectores primário e secundário. A imagem representativa de
Portugal abandonou a sua faceta rural e bucólica, carregada de pobreza, para se
evidenciar como a de um país moderno, informatizado, europeu, turístico, de
economia totalmente aberta ao exterior, acolhedora de imigrantes;
2. – operou-se uma profundíssima
alteração na estrutura política do Estado com a passagem de um sistema
hierárquico vertical e corporativista para um sistema de representação
parlamentar democrática ao modo da Europa Ocidental;
3. – operou-se uma profundíssima
alteração do lugar geográfico e estratégico internacional de Portugal,
deslocando-se o ângulo de actuação e reacção do Atlântico (o Império) para a
Europa; resta, dos tempos passados, ligando o passado ao presente e a história
à identidade nacional, os vagos traços de uma incerta Lusofonia;
4. – operou-se uma profundíssima
alteração dos vínculos sociais institucionais tradicionais da cultura e dos
hábitos dos portugueses (como a antiga ligação umbilical à Igreja e o
predomínio de uma família clássica), propiciada pela aceleradíssima laicização
e até profanização dos costumes obviada pela avalanche de novos padrões
comportamentais individualistas, relativistas e niilistas advindos da
Europa e dos Estados Unidos da América;
5. – operou-se uma profundíssima
alteração ética na hierarquia social com desvalimento das antigas profissões
nobres, como a do professor, do político, do militar, do sacerdote e do
intelectual, substituídas pelo técnico especialista em economia e em gestão,
pelo técnico em aplicações de ciência experimental e pelo comentador
televisivo, ora considerados de superior valia e utilidade.
De certo modo, estas cinco alterações
profundas no tecido social e na mentalidade nacional constituíram-se como
realizações factuais da modernização europeia de Portugal e, com elas, o país
actualizou-se historicamente e europeizou-se socialmente.
Assim, na segunda década do século XXI,
o retrato histórico de Portugal figura já o resultado do violentíssimo choque
social e cultural entre duas forças motrizes de natureza social, bem como o
efeito deste choque na consciência do cidadão português:
1. – Tempo longo – A primeira força
social imparável que tem regido a sociedade portuguesa como um todo consiste na
esforçada modernização europeia de Portugal desde 1980 (assinatura do tratado
de pré-adesão de Portugal à Comunidade Europeia) até ao final do século,
princípio do XXI, ambição colectiva desenhada desde o consulado do Marquês de
Pombal e só realizada plenamente na actualidade. Esta primeira força, mais do
que um movimento social, constituiu, verdadeiramente, uma autêntica vaga
histórica que atravessou o Constitucionalismo Liberal, a Regeneração e a I
República, foi bloqueada ao longo do Estado Novo por uma visão política rural,
imperial e católica da sociedade, e apenas integralmente executada e efectivada
de um modo global após 1980.
O movimento social de modernização
europeia de Portugal, como cumprimento histórico, correspondeu à inspiração dos
três “Dês” postulados pelo Movimento das Forças Armadas, “Descolonizar,
Democratizar e Desenvolver”, assumindo um tempo social novo, destituído de
Império, sem prevalência da religião sobre os comportamentos individuais e
sociais, sem regime de condicionamento industrial, desenvolvendo uma intensa
terciarização dos sectores produtivos e uma esperançosa legislação
igualitarista, fundada na justiça social, e permitiu, por um lado, a criação e
a consolidação de uma fortíssima classe média e, por outro, um tempo de
inovação cultural e científico, ambos sem paralelo no Portugal do século XX.
Constituiu o tempo de ouro ou o tempo luminoso (cerca de um quarto de século)
de justiça social, de coesão e igualdade sociais, de fortíssima mobilidade
social (filhos de operários e pequenos agricultores tornam-se professores,
médicos, advogados, economistas), do impetuoso arranque de uma nova visão
cultural e estética de Portugal, de uma intensíssima actualização de todos os
sectores sociais, económicos, académicos, culturais, científicos, desportivos e
religiosos. Desde a Regeneração de Fontes Pereira de Melo que não se viveu tão
bem nem tão “modernamente” ou “europeiamente” em Portugal como no período entre
1980 e o final do século. De certo modo, em quase todos os indicadores de
qualidade de vida, atingiram-se desempenhos que nos colocavam, no princípio do
século XXI, numa posição mediana nas estatísticas europeias, tendo Portugal
partido em 1974, para a quase totalidade delas, de um lugar altamente
subalterno, mesmo terceiro-mundista.
2. – Tempo conjuntural – A segunda força
social opõe-se à primeira e deriva directamente, não da sociedade civil e das
aspirações culturais e históricas de tempo longo, mas da recente administração
do Estado, evidenciando uma regulação social que tem apenas em conta – e apenas
– a saúde orçamental das finanças públicas e as aspirações tecnocráticas por
que a elite político-administrativa, quebrando a mobilidade social e
restaurando o tradicional estado de coisas hierárquico em Portugal, fortemente
dividido entre “senhores” e subordinados, intenta reduzir a maioria da
população à luz de uma visão burocrata, monetarista e tecnocrata da Europa.
Este segundo movimento social inicia-se com o discurso da “tanga” de Durão
Barroso (2002), opõe-se frontalmente às dinâmicas históricas criadas pelo
primeiro movimento e prolonga-se até aos dias de hoje, deixando, porém e de
novo, o país de “tanga”, agora não o Estado, mas a quase totalidade da
população e das empresas de pequena dimensão (a maioria). O segundo movimento
social, ao contrário do primeiro, que perfazia parte integrante do processo
histórico europeu, há muito realizado na maior parte dos países seus
constituintes e de certo modo constitutivo de um “desígnio” nacional (apenas o
Partido Comunista votou contra a adesão de Portugal à Comunidade Europeia), é
artificial, criado por problemas financeiros do Estado (crise da dívida
soberana) e foi enfrentado, em Portugal, por uma fanática política de
austeridade (dizemos “fanática” porque ultrapassou as metas de austeridade
impostas pelo memorando de entendimento, subordinando todas as actividades e
sectores do Estado e da sociedade a uma obstinação encarniçada de poupança
orçamental e de brutal aumento do impostos) que empobreceu a maioria da
população, privilegiou o sector financeiro e, paradoxo dos paradoxos, não
concedeu um excedente de saúde contabilística ao Estado.
De um modo muito claro, tão explícito
como nunca houvera em Portugal, propõe-se a adesão a um neoliberalismo global
que deposita o país nas mãos de um mercado financeiro (quase) totalmente
desregulado e de uma economia concorrencial de cunho selvagem (a tal que mata,
segundo o Papa Francisco).
Identidade
histórica em mudança (II)
Por Miguel Real
30/01/2015 -
A modernização europeia de Portugal
entre 1980 e 2000 provocou uma profundíssima alteração nas suas instituições
fundamentais.
2. – Actualidade – Com efeito, a
imagem que o português possuía da Europa alterou-se radicalmente e
consolidou-se negativamente entre 2008 e 2015. Se a antiga imagem da Europa se
identificava, do ponto de vista histórico e civilizacional, com uma sociedade
fundada na justiça social, no progresso económico, na qualidade de vida e no
desenvolvimento científico e tecnológico, hoje, em função da consolidação do
euro como moeda comunitária e da imposição alemã da regra de ouro das finanças
públicas (máximo de 3% do défice), ela identifica-se com a existência de dois
blocos de países, o primeiro capitaneado inflexivelmente pela Alemanha,
constituído pelos Estados mais ricos da Europa Central e do Norte, e o segundo,
para além da Irlanda, por um agrupamento de países empobrecidos do Sul (Grécia,
Portugal, Espanha, Chipre, de certo modo a Itália), em perda acelerada de
soberania, que, para fazer face às despesas correntes do Estado, se tornaram
“eternamente” devedores dos primeiros através de uma troika de
instituições financeiras (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo
Monetário Internacional). A nova imagem da Europa comunitária identifica-se, na
mente dos portugueses, com acções penalizadoras, mesmo mortificantes, geradoras
de desemprego de longa duração e de emigração forçada, desigualdade entre
países e menor justiça social para as populações mais desfavorecidas. Existe,
assim, uma diferença abissal entre o que Portugal esperava da Europa em 1980 e
o que hoje espera, gerando sentimentos contraditórios – no primeiro momento, um
optimismo voluntarioso; no segundo, um pessimismo desencorajante. Tendo a
actual elite política e administrativa como principal motor de acção, assistiu-se
em Portugal, como doutrina dominante, imposta pelas necessidades de
financiamento do Estado, entre 2008 e 2014, a um inaudito e escandaloso
empobrecimento da população com expressa destruição da recente e ainda
economicamente insegura classe média. Neste sentido, o movimento geral social
que enquadra a actualidade directa dos anos mais recentes reside, justamente,
no choque social frontal havido entre as duas forças ou os dois movimentos
sociais anteriores, gerando um país despido de identidade histórica própria, um
país sonâmbulo, perplexo e petrificado, permanentemente em estado de choque.
A diferença radical entre a modernização
europeia alcançada entre 1980 e 2000 e as políticas públicas desenvolvidas
entre o princípio do século e 2014 pode ser sintetizada, de uma maneira
simbólica mas muito expressiva, pela diferença de posição de Portugal no Índice
de Desenvolvimento Humano, medido pela Organização das Nações Unidas, que
estabelece a qualidade de vida dos povos (educação, saúde, esperança de vida, riqueza…)
entre 2002 e 2012. Naqueles anos, Portugal encontrava-se numa honrosa 23.ª
posição, situado entre os países mais desenvolvidos; dez anos depois,
encontra-se no 43.º lugar. A primeira posição reflecte os resultados do
movimento de modernização europeia de Portugal; a segunda reflecte os
resultados do segundo movimento social, de retracção no avanço de uma sociedade
tendencialmente comunitária (a lei expressa o bem comum e não os interesses do
Estado) e de enorme mobilidade social. Com efeito, em menos de 15 anos do
século XXI, Portugal perdeu 20 lugares, o que significa que foi ultrapassado
por outros tantos países.
A destruição dos resultados sociais
atingidos pela modernização europeia de Portugal que os governos de Portugal
empreenderam este século, retirando a esperança de um futuro estável para as
famílias portuguesas e uma visão optimista de futuro para a maioria da
juventude não pertencente à elite política e empresarial, conduziu à introdução
maciça e acelerada de novos valores (emergidos, sem dúvida, através da intensa
promoção do consumismo e do individualismo gerados pelo consulado de Cavaco
Silva à frente do Governo) e à perda de referentes éticos e culturais do
passado, como o valor do trabalho, o valor da amizade, o valor da poupança, o valor
da honestidade, o valor da espiritualidade e da transcendência, o valor do
saber desinteressado, o valor da memória histórica e cultural, substituídos por
valores hedonistas (o prazer e a realização individuais acima de tudo, que é o
mesmo que dizer, em geral, o dinheiro acima de tudo), valores técnicos de
eficiência e de competição (de concorrência, no sentido em que invariavelmente
ganha quem nasceu em berço de ouro e possui uma formação superior e
conhecimentos pessoais no empresariado e nos partidos instalados, os restantes
forçados a contentarem-se com empregos rotineiros e vencimentos débeis, sem
esperança de que as suas qualidades sejam reconhecidas e possam atingir um dia
um estatuto financeiro superior), niilistas (isto é, uma multiplicidade infinita
de valores, nenhum dos quais de superior valia ao do dinheiro e do prazer,
ambos medidos sobretudo pela ostentação de bens) e individualistas (a sociedade
não se constitui como uma comunidade coesa solidária, mas como um agregado ou
uma soma de valor nulo de indivíduos e todas as políticas são firmadas em nome
da primazia do indivíduo e dos seus interesses e desejos).
Parado no meio do caminho da sua
realização europeia, é forçoso que Portugal retome a sua caminhada histórica.
Fazemos votos para que 2015 seja o ano desta retomada.
Escritor