Máscaras gregas
CARLOS VARGAS
19/06/2015
O braço-de-ferro em curso não é sobre
finanças, é de facto sobre política. É política pura e dura.
O governo português continua a apostar na
queda do governo grego até às próximas legistativas portuguesas. O mau aluno
tem de ser punido, é a lógica calvinista do bom aluno. Por isso, PSD e CDS
insistem em fazer da Grécia a ovelha ronhosa da Europa. E não perdem uma
ocasião para arrasar os gregos.
A ministra das Finanças voltou a fazê-lo.
A propósito de um pagamento que Portugal irá antecipar ao FMI, Maria Luís
Albuquerque voltou a atacar directamente a Grécia. "Enquanto nós
antecipamos pagamentos, outros adiam-nos..." – atirou. Além do mau gosto
diplomático de atacar um país-parceiro de Portugal – na União Europeia e na
NATO – o governo dos cofres cheios parece não entender as graves
consequências para Portugal de um colapso da Grécia e da sua saída
do euro.
O ódio a Atenas torce o pescoço à
realidade: caso os mercados financeiros voltassem a entrar em ebulição na zona
euro, o próximo alvo seria inevitavelmente Portugal. A visão mirífica das taxas
de juro "históricamente baixas", ou negativas, faz esquecer as
causas efectivas do retorno de Portugal aos mercados. Uma abertura fácil
oferecida pelo programa de compra de dívida do BCE, iniciado há dois anos e
reforçado com o chamado "canhão-Draghi" – o programa de "quantitive
easing" da zona euro.
Pode o governo português sonhar com
amanhãs que cantam e com uma zona euro livre do tumor grego. Contudo, a verdade
é crua: o ‘rating’ da República Portuguesa, atribuído pelas três principais
agências de notação mundiais – que de facto comandam os mecanismos de mercado –
mantém-se no nível lixo. Os mercados conhecem bem a realidade. O crédito de
Portugal foi salvo pela asa do BCE. Mas é óbvio que essa protecção não poderá
durar sempre, nem muito mais tempo.
De facto, os programas de compra de dívida
do BCE continuam a ser contestados pela Alemanha e pelos países da Europa do
Norte. Responsáveis desses países, liderados pelo Bundesbank, forçaram o
BCE a recusar desde 11 de Fevereiro último títulos soberanos da Grécia como garantia
colateral. E puseram desde então a funcionar gota-a-gota o mecanismo de
emergência do BCE, por forma a secar rápida e totalmente os cofres de Atenas.
Uma nova crise nos mercados provocada pela
eventual saída da Grécia do euro seria o pretexto ideal para o BCE mudar de
políticas, deixando de novo Portugal à mercê da especulação financeira e do
‘rating’ lixo.
Há algo de irracional na fúria portuguesa
contra a Grécia. E revelam-se contornos de um cínico jogo de máscaras. Ao
contrário do que afirmou a ministra das Finanças, no afã populista de atacar os
gregos, Atenas não adiou pagamentos. Usou uma regra do FMI para fazer o
‘bundling’ dos pagamentos de Junho. Ou seja, agregar num só cheque os créditos
do Fundo que se vencem até ao final do mês. É uma norma do FMI que o permite.
Outros países-membros já a usaram.
Porém, a onda que o governo português
ajudou a levantar na generalidade dos media é que Atenas teria falhado um
pagamento no dia 5 de Junho. A ausência de rigor em relação à Grécia – e às
finanças gregas – não é apenas um fenómeno português, é um vírus espalhado por
quase toda a Imprensa global.
Há uma visão trágica que é repetida à
exaustão. Os comentários afectos às instituições financeiras e aos governos
conservadores da UE mandam cortar sambenitos e conduzir à fogueira os
dirigentes gregos por duas magnas razões. Primeira: não se renderem a
imposições externas destinadas a estropiar ainda mais a sociedade e a economia
gregas. Segunda: pretenderiam receber da troika uma tranche-extra de 7.200 milhões
de euros.
A verdade é que essa tranche reclamada
pelos gregos não é extra, faz parte do último resgate. Sendo que inclui 3.500
milhões de euros que o FMI devia ter entregue à Grécia em 2014. E um pagamento
a Atenas de 1.800 milhões de euros do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira,
que também está por fazer. E ainda um valor que o BCE tem vindo a reter em
Frankfurt, após ter-se comprometido a devolvê-lo à Grécia: 1.900 milhões de
euros em lucros obtidos pelos bancos do Eurosistema – só durante o ano de 2014
– com obrigações gregas.
Tudo somado, chega-se aos famosos 7.200
milhões de euros. Na verdade, um montante que o governo grego tem a haver das
instituições. E é aqui que, em rigor, se deve falar de atraso. Não um atraso
ocasional, mas sim, um atraso estratégico do FMI, Comissão Europeia e BCE nos
pagamentos a Atenas.
Nada disto é explicado publicamente pelos
altos responsáveis da UE. O paradigma é o da condenação preventiva da Grécia e
liquidação do balanço de Atenas.
Existem na UE vários países que ameaçam
rebentar pelas costuras se não for corrigido rapidamente o erro austeritário e
retomada a trajectória original da construção europeia: a ‘pax’ fundada na
correção de assimetrias, na coesão económico-social, no desenvolvimento, na
diminuição de desigualdades, na solidariedade entre Estados.
Cresce um temor surdo que outros Estados
deprimidos possam, a partir do exemplo grego, exigir maior flexibilidade e
rejeitar certas imposições dos credores.
Por isso, o braço-de-ferro com Atenas não
é sobre haver umas décimas a mais ou a menos de excedente primário, ou sobre as
taxas de IVA, ou sequer sobre a extensão dos cortes nas pensões de reforma.
Essa é a narrativa oficial. Mas o braço-de-ferro em curso não é sobre finanças,
é de facto sobre política. É política pura e dura.
O sistema financeiro e os governos
neoliberais europeus apostaram em derrotar a Grécia e o seu actual governo
eleito. Não o tendo conseguido nas urnas, tentaram exaurir as finanças gregas,
fazer capitular o executivo e forçar a demissão de Tsipras. Jogos de máscaras
decorrem há quase cinco meses em diversos cenários. A Alemanha parece vacilar
agora em assumir os custos da expulsão da Grécia do euro. Apesar de toda a
crispação formal, parece existir espaço para desenhar uma fórmula de recurso
que permita salvar a face alemã e dos países da linha dura, sem humilhar a
Grécia. Se assim for o euro, os gregos e, principalmente os europeus, terão
ganho esta batalha.
Jornalista