Artigo de André Freire que coloca a questão principal a 4 de Outubro. A direita não ganha, o PS não tem a maioria absoluta. mas a esquerda no seu conjunto vai ter maioria mais que absoluta. E depois, que acontece?
Eleições legislativas e presidenciais
16/09/2015
Depois de 4 de Outubro a bola estará muito provavelmente no campo das
esquerdas. Esperemos que as elites estejam à altura dos anseios populares.
As
eleições legislativas que se aproximam indicam o fim de um período de mais de
quatro anos durante o qual a direita governou plenipotenciária.
Por um lado, porque PSD e
CDS-PP dispuseram de uma maioria absoluta de deputados que lhes permitiu
aprovar sem problemas praticamente todas as suas propostas, excetuando aquelas
que colidiram com o enquadramento constitucional. Por outro lado, porque o chamado
programa de assistência financeira e a presença da Troika funcionou
como um biombo útil para as forças no governo legitimarem o seu próprio
radicalismo ideológico com a suposta inevitabilidade das medidas a aplicar.
Finalmente, porque tiveram na Presidência um PR que, apesar de estar no seu
segundo mandato, praticamente se autoanulou deixando de funcionar como
contrapeso da maioria no parlamento, como acontece geralmente no nosso sistema
semipresidencial, e de guardião da democracia. Também por isto as próximas
eleições legislativas e presidenciais estão ligadas. Neste artigo, irei
refletir sobre o que está em jogo nestas eleições, legislativas e
presidenciais, e sobre a importância de uma mudança completa de protagonistas e
forças políticas no poder. Antes, porém, é preciso começar com a questão da
vinda da Troika e com balanço do mandato da direita que ora
termina.
1. A
vinda da Troika e o legado da direita no poder
É bem sabido que a direita no
poder, máxime o PSD, teve um papel chave na vinda
da Troika e
no desenho do programa de assistência financeira. Primeiro, porque o PSD foi o
partido de suporte do governo minoritário socialista entre 2009 e 2011: as
peças mais importantes da governação (orçamentos, PEC I, II e III, etc.) foram
aprovados com o apoio do PSD. Até às eleições presidenciais de Janeiro de 2011
um outro protagonista, Cavaco Silva, tudo fez para que este bloco central (em
regime de acordo parlamentar, não de coligação) funcionasse na perfeição. Basta
rever-se na imprensa da época o que se passou com a aprovação do orçamento de
Estado para 2011 e os “mil e um” esforços e iniciativas do PR para que o bloco
central funcionasse. Uma vez reeleito, porém, Cavaco mudou de agulha: o
discurso de tomada de posse em 2011 é o levantar da bandeirinha verde para o
PSD poder livremente retirar o apoio político ao governo minoritário
socialista, indispensável à sua sobrevivência. O chumbo do PEC IV, que depois
levaria à esperada e anunciada demissão do primeiro-ministro (aceite por Cavaco
“sem pestanejar”), foi apenas o corolário deste processo. Claro que o processo
se caracterizou ainda por uma coligação negativa (BE, PCP/CDU, PSD e CDS-PP) no
espoletar da queda do governo socialista, mas fica assim clara a
responsabilidade primeira da atual maioria e do PR na vinda da Troika.
Não fosse essa quebra de apoio político, e a rejeição do programa de
austeridade já consensualizado com as instituições europeias (PEC IV), e
Portugal teria permanecido com austeridade, quiçá com uma austeridade mais
severa do que até aí, mas sem tutela externa. Aliás, reveja-se a imprensa da
época e facilmente se verificará que foi a quebra do bloco central (isto é, o
fim do apoio do PSD ao governo maioritário do PS) e crise política subsequente
à demissão do primeiro-ministro e convocação de novas eleições que fizeram
disparar o ataque das agências de notação financeira e dos mercados de capitais
à divida pública portuguesa. Já foi dito e é facilmente documentável que a
direita, especialmente o PSD, teve um papel chave no desenho do programa da Troika:
ainda recentemente Eduardo Catroga o reconheceu mais uma vez. Mas basta
recordar que o atual primeiro-ministro não se cansava de repetir que queria ir
além da Troika, porque o programa era indispensável para recuperar Portugal da
abastança injustificada (tínhamos vivido todos acima das nossas
possibilidades), ou que a direita pintava com as cores mais negras possíveis a
situação de Portugal então de modo a obter os maiores ganhos na sua desejada
dose austeritária (ver o meu “Autoflagelação e terapia de choque”, Público,
9/5/2011), para se perceber que a direita literalmente exultou com a vinda da Troika.
Mas e qual é legado da direita
e do seu Presidente neste exercício? Eu resumi-lo-ia em três ideias forças.
Primeiro, um fortíssimo contributo para a deslegitimação da democracia e da
confiança nas instituições políticas por via da violação reiterada,
sistemática, profunda e, aos olhos da maioria da população (inquirida sobre o
assunto), injustificada de compromissos eleitorais fundamentais (uma pedra
basilar da democracia). Passos Coelho sempre disse que queria ir além da Troika,
é verdade, mas também disse clara e taxativamente que queria sobretudo “cortar
nas gorduras do Estado” e que não seria necessário (ele não o faria, garantiu então
reiteradamente) cortar salários, cortar pensões ou subir o IVA na restauração,
por exemplo. Segundo, a governação austeritária da direita no poder ficou
marcada pela assimetria: os contratos e compromissos com os eleitores,
assalariados e pensionistas foram grosseiramente violados, mas os contratos com
os capitais rentistas e com as parcerias público-privadas não; neste período
muitos ricos viram aumentar as suas fortunas e/ou algumas grandes empresas
migraram alegremente, e sem censura político do poder, os seus capitais para
fora do país de modo a se isentarem da austeridade; etc., etc. Finalmente, em
matéria de resultados basta pensar que apesar dos cortes de salários e pensões
(não previstos no programa original da Troika ou nos compromissos do PSD e
CDS-PP), dos aumentos de impostos e das extensíssimas privatizações (tudo
sempre muito acima do previsto), a divida pública (130% do PIB) é hoje muito
maior do que em 2010 (90% do PIB). E a tibieza da recuperação (no desemprego,
na produção de riqueza, etc.) é claríssima. Ou seja, além de uma deslegitimação
pelos procedimentos há também uma deslegitimação pelos resultados.
2. Novas
alianças, novos protagonistas, novas políticas
Perante este cenário global,
seria quase criminoso reconduzir a direita no poder,
seja ao nível do
Parlamento/Governo, seja ao nível da Presidência. Seria legitimar a deriva
austeritária e fingirmos que a direita não teve um papel chave na vinda da Troika,
ou fingirmos que a violação de compromissos era mesmo inevitável: se assim fosse
não teria sido tão assimétrica, teria sido transversal. Ou seja, uma mais ou
menos longa cura de oposição da direita no poder é uma condição necessária para
a regeneração da democracia e da confiança nas instituições políticas; é uma
questão de sanidade. Porém, é condição necessária mas não é suficiente: as
oposições de esquerdas têm que fazer também a sua parte. Por um lado, a(s)
esquerda(s) que venham a governar não podem repetir esta violação sistemática e
profunda de compromissos eleitorais como regra de governação: seria o
descrédito total da democracia. Por outro lado, as oposições de esquerdas têm
que assumir as suas responsabilidades e, perante a gravidade e urgência da
situação, não poderão receber uma maioria no parlamento e depois entregar o poder
de bandeja à direita, nomeadamente empurrando o PS para o regaço da direita
e/ou atirando-se o PS, ele próprio, para os braços da direita, em caso de
maioria relativa socialista. Todas as sondagens dos meses mais recentes apontam
para que a direita esteja reduzida a cerca de um terço dos votos e que as
esquerdas detenham cerca de dois terços juntas. Ou seja, tudo indica que irá
haver uma clara maioria de esquerdas no Parlamento, a questão é se haverá
responsabilidade suficiente para assumir o poder e fazer as concessões
necessárias para se governar. O Partido Livre /Tempo de Avançar, que tem sido
largamente silenciado pelos mass media (tal como outras novas
forças políticas fora do statu quo parlamentar), tem defendido
a absoluta necessidade de entendimentos à esquerda (dos socialistas às várias
esquerdas radicais) para mudarmos de políticas. O candidato presidencial
Sampaio da Nóvoa, ao contrário da candidata mais próxima do bloco central
(Maria de Belém), também tem defendido a necessidade de inovação política e de
dessacralização da ideia de “partidos do arco da governação” (ou seja, que o
governo só pode ser exercido por PS, PSD e CDS-PP). Uma coisa é certa, depois
de 4 de Outubro a bola estará muito provavelmente no campo das esquerdas.
Esperemos que as elites estejam à altura dos anseios populares.
Politólogo,
Professor do ISCTE-IUL (andre.freire@meo.pt)
Candidato
do Partido Livre – Tempo de Avançar às Legislativas de 2015,
Membro da
Comissão Política de Sampaio da Nóvoa à Presidência da República