Alexandre
Guerreiro Governo português contribui para o enterro da Venezuela
Portugal não tem razões legais ou morais
para recusar reconhecer a Assembleia Constituinte da Venezuela.
7 de Agosto de 2017
Começo por fazer a minha declaração de
interesses: não tomo o partido da ala fiel a Nicolás Maduro, nem o dos que a
este se opõem. Não sou venezuelano, nem tenho interesses particulares na
Venezuela. Embora não negue a preocupação com a forma como os acontecimentos no
país se podem reflectir em Portugal, o meu interesse com o que se passa na
Venezuela é exclusivamente académico.
Analisei com interesse a tomada de
posição do Governo português relativamente às eleições para a Assembleia
Constituinte, na Venezuela, realizadas a 30 de Julho. Com a intensificação das
pressões por parte de praticamente todos os quadrantes políticos nacionais,
Augusto Santos Silva seguiu no sentido habitual de um Estado sem personalidade
e autonomia, como é o caso de Portugal: recusar a oportunidade de fazer valer o
bom senso e seguir a corrente da União Europeia.
Portugal não reconhece a Assembleia
Constituinte da Venezuela e justificou-o com a necessidade de “regresso à
normalidade constitucional, com pleno respeito dos poderes dos órgãos eleitos,
pela separação de poderes”. Ora, a falácia nesta fundamentação começa no facto
de o ministro dos Negócios Estrangeiros português desconhecer a Constituição da
República Bolivariana da Venezuela, datada e referendada em 1999.
Se conhecesse, certamente saberia da
existência de um tal Título IX com a epígrafe “Da Reforma Constitucional”, cujo
Capítulo III, intitulado “Da Assembleia Constituinte”, dispõe, no artigo 348.º,
que podem convocar eleições com vista à formação de uma Assembleia Nacional
Constituinte, tanto dois terços do Parlamento, como dois terços dos Conselhos
Municipais, 15% dos eleitores e, muito importante, o Presidente da República em
Conselho de Ministros.
Paralelamente, dispõe o artigo 349.º que
o Presidente da República não pode opor-se à nova Constituição e que “os
poderes constituídos não podem de alguma forma impedir as decisões da
Assembleia Nacional Constituinte”. Ou seja, a convocação de eleições para a
Assembleia Constituinte cumpriu o disposto na Lei Fundamental. A presente
Constituição venezuelana é o corolário do exercício da soberania pelo povo,
reconhecimento este consagrado um pouco por toda a Constituição, em especial no
artigo 347.º, que legitima a eleição de membros para uma Assembleia
Constituinte.
Independentemente do resultado dos
trabalhos da Assembleia Constituinte eleita — e eu acredito que o cenário mais
provável passará por replicar na Venezuela algo semelhante ao que Fidel Castro
promoveu em Cuba —, a oposição a Maduro conhece perfeitamente as disposições
referidas, as quais, insisto, integram uma Constituição que está em vigor há 18
anos, após ter sido submetida a referendo. Se a oposição recusa participar no
acto eleitoral convocado pelo Chefe de Estado, como forma de o descredibilizar,
a responsabilidade é inteiramente de quem toma a decisão de não influenciar os
trabalhos da futura Assembleia Constituinte. Mas que não se coloque em causa a
legalidade da convocatória das eleições, porque estas cumprem estritamente o
previsto na Constituição.
O MNE português não tem, assim, motivos
para justificar a recusa de reconhecimento da Assembleia Constituinte, já que
Nicolás Maduro exerceu poderes que lhe são constitucionalmente reconhecidos e é
o Parlamento quem não está a respeitar os poderes do Presidente, enquanto,
também ele, órgão eleito. Portanto, a “normalidade constitucional” está
cumprida.
Desta falácia resulta, por parte de
Portugal, uma violação do direito internacional, em particular, da Carta das
Nações Unidas, nomeadamente o seu artigo 2.º, n.ºs 1 e 7, onde se reconhece o
princípio da igualdade soberana entre todos os membros da ONU e,
consequentemente, o princípio de não ingerência, que proíbe que qualquer Estado
intervenha nos assuntos internos de outro Estado.
O Governo português, ao recusar reconhecer
a Assembleia Constituinte da Venezuela que foi eleita no cumprimento da Lei
Fundamental do país, está a cometer um acto de ingerência com o objectivo de
pressionar o país a seguir um rumo diferente daquele que a própria Constituição
admite como legal. À luz do direito internacional actual, Portugal só pode
recusar reconhecer a Assembleia Constituinte venezuelana caso esta resulte de
acção militar ilícita de uma organização que tenha tomado o controlo do país
com o apoio de um Estado terceiro, tornando-se, assim, sua marionete, e caso a
Assembleia Constituinte tivesse sido eleita em condições não democráticas — as
eleições foram convocadas, a oposição é que se recusou a participar nelas. No
final, poderemos ainda equacionar a sujeição da futura Constituição a
referendo, como forma de reforçar a legitimidade da Assembleia Constituinte e
do resultado do seu trabalho por via da soberania popular. Mas não é
obrigatório que assim seja.
Em suma, Portugal não tem razões legais
ou morais para recusar reconhecer a Assembleia Constituinte da Venezuela. Terá
razões políticas, já que segue incondicionalmente a corrente maioritária da
União Europeia. Mas estas razões já violam o direito internacional e até a
própria Constituição portuguesa, cujo n.º 1 do artigo 7.º reitera o princípio
da “não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados”.
Como nota final, poderíamos ainda
reflectir sobre a legitimidade de eleições que poderão ter sido manipuladas,
tanto no número de votantes como no sentido de voto. É uma via possível, que
merece uma investigação mais profunda do que a especulação que tem sido feita.
Mas importa perguntar por que motivo este acto eleitoral seria inválido e o
referendo da oposição, realizado semanas antes, já seria inteiramente
transparente e fiel aos princípios democráticos ao ponto de ser cegamente
aceite na Europa e noutros países do bloco Ocidental mesmo apesar de não ter
sido sujeito a qualquer controlo.
E, indo por esta via, poderemos mesmo
questionar por que motivo reconhecem Portugal e a União Europeia uma reforma
constitucional na Turquia onde, pelo menos, mais de 1,5 milhões de votos foram,
de forma comprovada, acrescentados de forma fraudulenta. E por que motivo foram
reconhecidas a vitória de George W. Bush, em 2000, após a fraude eleitoral
cometida na Florida, e a de Hillary Clinton nas primárias do Partido Democrata,
em 2016, quando são públicas as provas de fraude para prejudicar Bernie
Sanders.
Ou seja, Portugal e a União Europeia
tomam uma decisão estritamente política ao não reconhecerem a Assembleia
Constituinte, decisão esta violadora do direito internacional e do próprio
direito interno. Provavelmente, citando Julian Assange, preferiam um modelo
constitucional semelhante ao da Arábia Saudita, Estado em que, pelo menos,
cinco membros da União Europeia votaram recentemente para integrar a Comissão
dos Direitos das Mulheres da ONU. Da realidade venezuelana, já dificilmente se
esperaria um futuro positivo. Mas esta tomada de posição de Portugal e da União
Europeia só agrava mais um cenário catastrófico, faltando apenas as habituais
sanções para acabar de vez com as escassas esperanças de vida do povo
venezuelano.
Jurista e investigador de questões
internacionais
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