A
esquerda e o PS
Por Adelino Fortunato
28/10/2014
A esquerda no seu conjunto deveria
envolver-se no compromisso de desobediência às regras do tratado orçamental que
implicam a perpetuação da austeridade por décadas.
Quase 50 anos de ditadura e as
vicissitudes do processo que se seguiu ao 25 de Abril criaram a clivagem entre
PS e PCP com a configuração que hoje conhecemos. O PCP foi o partido da
resistência, marcando gerações de activistas e intelectuais e construindo uma
implantação organizada nas empresas e nos sindicatos, enquanto o PS se
transformou num partido de massas apenas com a implantação do regime
democrático e por demarcação face ao PCP. É importante relembrar isto sobretudo
aos que não se reconhecendo nem no PS nem no PCP são conduzidos a optar por um
deles naquilo que designam por “política de alianças”.
Num momento em que a troika se
prepara para abandonar o país, podendo criar na opinião pública a sugestão de
que a austeridade pode acabar em breve, a esquerda no seu conjunto deveria
envolver-se no compromisso de desobediência às regras do tratado orçamental
que, por exigirem uma contracção acelerada do défice público e da dívida,
implicam a perpetuação daquela mesma austeridade por décadas. Isso significa um
desafio que não pode deixar ninguém de fora ao nível partidário, até porque
neste momento, à esquerda, todos se declaram contra a austeridade. Não só o
PCP, mas também o PS, na versão António Costa, faz disso um ponto de demarcação
em relação à direita que pretende derrotar nas próximas legislativas, ainda que
nada seja dito acerca do tratado orçamental.
Face a esta questão perfilam-se dois
tipos de abordagens.
Primeiro, a daqueles que procuram
influenciar o PS, declarando-se disponíveis para colaborar com um futuro
governo desde que este cumpra um certo número de requisitos mínimos. Trata-se
de uma perspectiva negocial, de olhos postos nas promessas que os actuais
dirigentes irão certamente fazer e frustrar – mas que tem um enorme
inconveniente, até tendo em conta a forma como está a ser gerida: alimenta
ilusões que não têm fundamento na dinâmica concreta da social-democracia
contemporânea e coloca os seus promotores à mercê da assimilação pelo cone de
aspiração criado pelo próprio PS. Tudo isto sem resultados palpáveis.
Segundo, a dos que objectivamente
privilegiam a aproximação ao PCP na convicção de que o desafio ao PS é uma
causa perdida, afinal foi este mesmo partido que começou a austeridade e até
assinou o memorando da troika. É, desde logo, uma visão que negligencia
a evolução das expectativas de milhares de cidadãos, que devem ser confrontados
com as contradições daqueles que os pretendem representar no governo de uma
forma que não se resuma à política da denúncia feita aprioristicamente, que é insuficiente.
Uma variante deste argumento inspira-se
numa ideia ainda mais discutível: o PS já não seria de esquerda, ao acompanhar
a viragem neoliberal da social-democracia que inspirou Schröder, Blair,
Hollande ou Sócrates e deve ficar fora do apelo de unidade à esquerda. É uma
concepção que despreza a natureza ambivalente de um partido com uma direcção
que habitualmente executa políticas de direita, mas visto pelos trabalhadores
como sendo de esquerda e no qual a maioria deles se reconhece. O único
partido a tirar vantagem desta abordagem é o PCP, pois alimenta aquela clivagem
histórica da esquerda que lhe assegura o controlo de bases sem contágios. Não
pode ser inspiradora para mais ninguém, sobretudo para os que não dispõem dessa
implantação e antes precisam de a conquistar.
A resolução da tensão enunciada deveria
passar por uma iniciativa que ganhasse dinâmica à esquerda e perante a qual
toda a esquerda fosse responsabilizável, que não desistisse de influenciar e
acompanhar o conflito e as diferenciações que pudessem surgir na consciência de
muitos milhares de portugueses que se revêem nos grandes partidos de esquerda
ou sem partido. Seria uma "carta contra a austeridade", construída de
forma articulada com o contributo de um leque abrangente de sugestões,
individuais e colectivas, partidárias e de movimentos sociais, no terreno das
lutas concretas e das experiências de cidadania, o instrumento adequado para
estruturar uma frente contra a austeridade mobilizadora e eficaz.
Professor da Universidade de Coimbra
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