A situação na Grécia obrigou a Europa a discutir política como há muito não se fazia. Trouxe para o primeiro plano a Democracia e o seu conteúdo, colocou a UE e os seus mecanismos em análise crítica e abalou o sossego do mundo dos negócios e a sua influência sobre o mundo da política. Bastou um Governo cumprir as suas promessas eleitorais e ter a dignidade e a coragem de defender o seu povo e os mais fracos dentro dele.
Pode a chantagem, a mentira, as ameaças e o medo que a UE, o FMI, o Banco Central Europeu e a Comissão vomitam de dente arreganhado e sem vergonha, derrotarem a resistência de um Governo que quer acabar com a austeridade que levou a tragédia ao seu povo, mas nada voltará a ser como dantes. Vença o não ou o sim e tudo já mudou antes mesmo de se saber qual o resultado.
Ficamos a saber que os mercados e os políticos que os servem desprezam a Democracia, aceitam que os povos se divirtam um pouco nas eleições a pensar que escolhem mas que na verdade se limitam a votar quem já foi escolhido por eles. Até podem mudar de governos mas fica-lhes proibido mudar de políticas.
Quem manda de verdade não foi a eleições. Quem votou na chefe do FMI?; quem votou no capataz do BCE? etc.
Pela sua oportunidade junto um artigo que ajuda a esclarecer o que está em jogo.
MC
Dá-lhes com
democracia!
PAULO GRANJO
02/07/2015
Para além do topete de dar a palavra ao
povo, aquilo em que a convocação do referendo grego mais irrita chancelarias,
ministérios das finanças e eurocratas é o facto de, através dele, o governo
grego sair da armadilha.
Depois de o FMI recusar o plano grego (por uma parte do equilíbrio
orçamental ser pago pelas maiores e mais lucrativas empresas e pelos salários
mais altos, em vez de por mais cortes aos reformados e aumentos de preços) e
depois de o Eurogrupo ter feito alegre coro com essas firmes exigências de mais
austeridade para quem está na miséria ou à beira dela, o governo grego anunciou
um referendo acerca do pacote de exigências que as instituições europeias
pretendem impor, para desbloquear o financiamento ao país.
Em
Bruxelas, caiu o Carmo e a Trindade – ou o que quer que seja que por lá exista
de equivalente.
Não
obstante, o recurso ao referendo como arma política e instrumento legitimador
nada tem de novidade.
Para
desespero das esquerdas francesas, Charles de Gaulle recorreu extensivamente a
ele quando as coisas lhe ficavam mais adversas.
Mais
perto de nós, em 2008, o presidente boliviano Evo Morales enfrentou um ataque
em regra às suas políticas progressistas, que incluía a ameaça bem real (e com
implícito beneplácito estado-unidense) de uma secessão dos estados dominadas
pela oposição, a par de apelos explícitos e continuados a um golpe militar.
Em vez de
optar pelos anteriormente habituais endurecimentos de posições e escaladas
securitárias, fez referendar o seu lugar, o do vice-presidente e os dos também
eleitos governadores estaduais, pró-governamentais e oposicionistas. Foi
confirmado no cargo com mais 8% do que tinha sido eleito, sendo também
reconduzidos o vice-presidente e 6 dos 8 governadores provinciais (seus
apoiantes, ou da oposição); nos outros 2 casos, houve novas eleições.
A
legitimidade democrática saiu reforçada, os Estados Unidos chamaram de volta os
seus especialistas e entusiastas insurreccionais, as forças mais conservadoras
submeteram-se ao jogo democrático e deixou de se falar de golpes de estado, ou
de partir o país em dois.
Nada
permite afirmar que as consequências da convocação deste referendo na Grécia
venham a ser tão positivas. E nada permite afirmar que o não venham a ser.
O que não
lhe falta, certamente, é lógica, espírito democrático, dignidade e
oportunidade.
O governo
da Grécia foi eleito com o mandato de renegociar a dívida, de acabar com a
espiral austeritária sobre os mais fracos, com o indigno diktatdos
mangas-de-alpaca da troika e com o estado de calamidade
social, de implantar medidas de dinamização económica.
Tal como,
se quisermos, Pedro Passos Coelho foi eleito com o mandato de não aumentar os
impostos e de não cortar pensões e salários.
Só que o
governo da Grécia não é feito de gente capaz de vir, no dia seguinte, dizer que
afinal é tudo ao contrário do que se comprometeram e que até querem ir mais
longe do que as exigências da troika.
Para o
governo grego, tal como supostamente para qualquer pessoa de bem, aceitar um acordo
que põe em causa uma parte daquilo para que foram eleitos – mesmo sendo esse
acordo muito menos mau do que lhes queriam inicialmente impor – requer que os
eleitores se pronunciem explicitamente.
A decisão
de não aceitar esse acordo, num quadro que é já diferente do das eleições,
requer por seu lado um apoio popular maioritário que a legitime
democraticamente perante os cidadãos que dela discordem, perante os potenciais
entusiastas de pronunciamentos militares e perante os impositores de
inevitabilidades, ao mesmo tempo que reforça a posição governamental e
nacional, na busca de alternativas.
Para
além, se quisermos, dessa ideia caída em desuso numa Europa de supremacias
nacionais e financeiras: a de que, em estados democráticos, as opções mais
decisivas devem ser tomadas democraticamente.
Um outro
aspecto fulcral é que os impasses e tentativas de diktat a que
temos vindo a assistir, por parte das instituições europeias e do FMI, pouco
têm a ver com economia, mas antes com política.
Têm em
parte a ver – como o demonstra a justificação do FMI para recusar a última
proposta grega, até aí rotulada como "uma boa base de trabalho" – com
a continuidade de imposição, a países que estão financeiramente fragilizados,
de um quadro específico de políticas económicas e sociais, independentemente
daquilo que queiram os seus governos ou os seus povos.
(E aqui,
é curioso verificar que, se Marx escreveu metafórica e panfletariamente que os
governos são "o conselho de administração delegado da burguesia",
temos hoje banqueiros a exigir mandar – e mandando – nos governos.)
Mas têm
sobretudo a ver com a tentativa de tornar impossível a existência de governos,
países e povos que se recusem a acatar, submissos, a destruição da sua economia
e coesão social, em nome de ideologias e interesses que não escolheram nem
escolhem.
Têm
sobretudo a ver com tornar impossível a vida ao governo grego, procurando criar
uma lose-lose situation que o destrua e afaste veleidades
semelhantes noutros países: inviabilizar as condições para a prossecução mesmo
que parcial do seu programa (por sensato que ele seja), de forma a que ou se
submeta, perdendo a credibilidade popular, ou crie uma situação provisoriamente
caótica na tentativa de não se submeter, perdendo apoio para as soluções que
preconiza.
Para além
do topete de dar a palavra ao povo, aquilo em que a convocação do referendo
grego mais irrita chancelarias, ministérios das finanças e eurocratas é o facto
de, através dele, o governo grego sair da armadilha.
Uma
eventual aceitação das agora mitigadas exigência euro-éfeémisticas não seria
uma traição, mas uma opção popular, tal como a sua recusa não seria uma
caturrice de radicais, mas uma decisão partilhada pelo país.
Para além
disso, o anúncio de referendo já não pode levar ao derrube de governos a partir
do exterior – ao contrário do que aconteceu, há anos atrás e por exigência
troikista, com o governo eleito do Pasok – e, pelo contrário, reforça a posição
negocial da Grécia a nível mundial, ao demonstrar que não se pretende submeter
e que está disposta a correr os riscos inerentes.
Isto
porque, ao contrário do que têm insistido em imaginar os governos europeus e os
comentadores encartados, a solução do problema da Grécia não está restringida
às fronteiras do Euro, ou mesmo da União Europeia.
Mesmo com
os cofres pouco cheios, seria para a Rússia uma pechincha ajudar a Grécia,
ganhando influência sobre um país fulcral da NATO que lhe pode dar acesso ao
Mediterrâneo, e sobre um país da União Europeia que pode, por exemplo, vetar
sanções da União sobre outros países.
Os
interesses dos Estados Unidos não permitem, por essas razões, que a Grécia seja
empurrada pela UE para o colo da Rússia.
Para além
disso, em termos económicos, também não permitem que braços-de-ferro de
supremacia política e ideológica abram uma brecha no Euro de consequências
imprevisíveis, mas que quase certamente incluiriam fortes mudanças cambiais e
efeitos recessivos na Europa, com impacto na própria economia norte-americana e
nos mercados financeiros mundiais.
Só se
estranha, então, que só agora Obama faça saber que insta Merkel a assegurar as
condições para que a Grécia não saia do Euro e para que a dívida grega seja
restruturada. Mas entre o anúncio do referendo e a divulgação desse telefonema,
a relação não será certamente casual.
Também a
China se não pode dar ao luxo de uma cotação do Euro turbulenta, ou de recessão
num continente fulcral para as suas exportações e, consequentemente, para a sua
economia.
E também
ela, sábado à noite, veio pedir uma solução estável que viabilize a manutenção
da Grécia no Euro, ao mesmo tempo que se oferecia para, se necessário, sacar do
livro de cheques.
Se não
tivesse (como tem) as virtudes da dignidade, democraticidade, coerência e
oportunidade, a convocação do referendo na Grécia teria pelo menos uma outra
virtude: a de tornar evidente a miopia política, a auto-negação estratégica e o
narcísico bruxelocentrismo com que todo este problema tem sido tratado, desde o
início.
Antropólogo