No momento em que a UE se encontra em plena tormenta causada pela crise grega, ler este texto do Mário Vieira de Carvalho é um bom contributo para ajudar a reflectir sobre o nosso presente.
MC
Que tal um
“capitalismo de rosto humano”?
MÁRIO VIEIRA DE CARVALHO
14/07/2015
O que poderá acontecer à herança
humanista da cultura alemã?
O Sr. Merkel ensina ciência política na Humboldt-Universität a poucos
quarteirões da chancelaria da Sr.ª Merkel. São ambos alemães e até têm o mesmo
nome, mas pensam de maneira diferente.
É um alívio, não fosse a gente alarmar-se com uma nova Gleichschaltung(sincronização) à maneira de Goebbels que punha todos a ler pela mesma
cartilha. As declarações de Sigmar Gabriel e Martin Schultz sobre o referendo
grego fizeram-nos temer por isso. Pois se já nem os putativos socialistas
alemães têm um pensamento e um projeto próprios – se já nem eles dão ouvidos a
intelectuais como Habermas e outros críticos do atual curso da UE, que sempre
lhes foram próximos – que poderá acontecer à herança humanista da cultura
alemã?
Peter Weiss, no seu romance Estética
da Resistência (1975-1981), assaca aos socialistas
alemães graves responsabilidades na eclosão da primeira guerra mundial, e na
ascensão (“resistível”, como diria Brecht) de Hitler ao poder, a qual, por sua
vez, levou à segunda guerra mundial. O seu diagnóstico é duro. Fala de traição
da social-democracia e cita o Diário de Heine, em Paris: “a única teoria capaz de abalar o poder da alta finança
foi a ideia de comunismo”. Quase dois séculos depois, será que Heine
continua a ter razão?
Com efeito, nas últimas décadas, como observa o Sr. Merkel (entrevista
publicada no jornal Social
Europe, de 10 de Julho), “as democracias
removeram a maior parte dos limites antes utilizados para conter o capitalismo,
e fizeram-no consciente e negligentemente”. “Ao desregular os mercados,
especialmente os mercados financeiros, a democracia privou-se do seu próprio
poder”. “Em questões cruciais de política monetária, orçamental e fiscal, quem
dá o tom são os investidores mais poderosos, crises bancárias ou supostos
constrangimentos de ordem prática, e não as maiorias democráticas”. “A
desnacionalização económica contribuiu de forma alarmante para este processo,
sobretudo no que respeita ao controlo democrático sobre importantes parâmetros
económicos”. “A política orçamental de cada Estado, um elemento-chave no
esforço por criar uma sociedade justa, perdeu importância”, enquanto, por outro
lado, “a União Europeia, sobretudo empenhada na lei da concorrência, se tornou
uma espécie de cavalo de Tróia dos mercados, em vez de se afirmar como baluarte
contra a despolitização dos mesmos”.
Por isso – continua Wolfgang Merkel –, temos de arrepiar caminho e “obrigar
os mercados a ser de novo mais conformes à democracia”. “A tarefa que temos
pela frente é, pois, a de devolver mais poder ao Estado democrático”, o que não
pode ser feito “sem reconquistar parte do território que cedemos ao capital
desregulado”. “O capitalismo não pode ser domado pela sociedade civil... Sem um
forte Estado democrático as nossas sociedades não podem ser estruturadas
decentemente.” “Sejamos claros: a longo prazo, os mercados desregulados
destroem-se a si próprios e destroem a coesão social”.
Neste diagnóstico, a situação é, pois, vizinha da anarquia (ausência de
Estado). Não, da anarquia que Marx e Engels prefiguravam no Manifesto de 1848
como realização última do ideal comunista: “uma associação em que o livre
desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”.
Mas sim de um outro tipo de anarquia, que não devia assustar menos os
tradicionais defensores da Família e da Propriedade: aquela em que todo o Direito
é derrogado por uma única norma: a da otimização permanente e ilimitada da taxa
de remuneração do capital.
Numa tal situação já nem se pede aos socialistas europeus que empunhem
agora de novo a bandeira do socialismo. Não é preciso ir tão longe. Basta que
lutem, ao menos, por... um “capitalismo de rosto humano”.
Professor catedrático jubilado
(FCSH-UNL)
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