Não!
04/07/2015
NÃO sei o que sairá do referendo de
amanhã. Mas sei que a “Grécia devia votar Não e que o governo grego devia
preparar-se, se necessário, para sair do euro.
NÃO, eles não gostam de referendos. Só gostam dos que mandam repetir (como
quando os dinamarqueses rejeitaram Maastricht, em 1992 – lembram-se da fúria de
Cavaco? –, ou quando os irlandeses rejeitaram, em 2001, o Tratado de Nice, e o
de Lisboa, em 2008, – fúria de Sócrates e de Durão).
NÃO, eles
acham que o cidadão comum não deve decidir sobre as políticas económicas
porque, como ministros do Eurogrupo perguntaram a Varoufakis quando este lhes
anunciou a intenção de consultar o povo grego sobre as exigências dos governos
europeus: “Está à espera que a gente comum entenda questões tão complexas?”
(ver descrição da discussão no Eurogrupo) NÃO, eles
nem sequer são os liberais que se dizem. Se o fossem,
lembrar-se-iam que há mais de duzentos anos foram liberais que estatuíram que
“os cidadãos têm o direito de concorrer pessoalmente ou através dos seus
representantes para a elaboração da lei”, e que “têm o direito de verificar por
si mesmos ou através dos seus representantes a necessidade da contribuição
pública, admiti-la livremente, acompanhar o seu emprego e determinar o seu
todo, a sua repartição, cobrança e duração.” (Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, 1789)
NÃO, a UE
é tudo menos uma estrutura democrática. Ninguém elege a Comissão Europeia ou os
governadores do Banco Central – e, contudo, as nossas vidas quotidianas, como
trabalhadores ativos ou desempregados, jovens à procura da autonomia,
pensionistas de hoje ou de amanhã, em tudo dependem de decisões tomadas por
gente sobre cuja escolha ninguém nos pede opinião. O processo de integração
europeia tem sido, desde sempre, o mais forte motor da desdemocratização das
escolhas económicas. Quando se fala da UE e da política económica que ela impõe
repete-se, sem despudor algum, que há questões que não devem ser submetidas ao
debate popular. E agora, que a eurocracia tem todos os canhões apontados contra
o primeiro governo europeu a mostrar alguma vontade para “responder com
democracia” a “esta austeridade descarnada e autocrática” (Tsipras, 26.6.2015),
os dirigentes da UE perderam a compostura. Juncker (20 anos ministro das
Finanças e 18 Primeiro-Ministro desse paraíso fiscal branqueador de capitais
que é o Luxemburgo), “com o povo grego no meu coração”, pediu-lhe para “não se
suicidar mesmo que tenha medo de morrer” [sic] – não se lembrando que “se terão
suicidado [já] onze mil [gregos] desde que se impôs a austeridade” (Guardian,
30.6.2015). Um socialista como o presidente do Parlamento Europeu, Martin
Schulz, apelou aos gregos que “culpassem Tsipras por ter posto de joelhos o seu
país”, pedindo-lhes que votem Sim para que o governo “se tenha
de demitir e se realizem novas eleições”. Até lá, a solução do que foi
candidato socialista à Comissão é que “o governo do Syriza deve ser substituído
por um governo técnico” (Guardian, 2.7.2015). “16 anos depois, a
Eurozona (…) é a antítese da democracia”, conclui Stiglitz, o Nobel da
Economia. Percebe-se que seja “extremamente inconveniente ter na Grécia um
governo tão oposto a políticas que tanto aumentaram as desigualdades em muitos
países avançados”. Impossível não perceber o padrão neocolonial: do que a
Grécia precisa é de um governador nomeado pela metrópole (a UE), uma espécie de
vice-Rei de umaadministração indireta, que recebe instruções de Bruxelas
(como se limitaram a fazer Papandreu, Papademos e Samaras – e Passos, e Rajoy)
e as transmite aos indígenas, gente menor à espera que um lento processo de
assimilação a faça merecer a plena cidadania europeia.
NÃO, esta
não é uma discussão sobre cumprimento de regras. Os primeiros a ignorar os tão
invocados tratados foram Dijsselbloem e Schultz, que garantiram que a Grécia
teria de sair do euro e da própria UE. Cavaco foi-lhes atrás. Uma Europa de
regras, como as do Tratado Orçamental que nenhum eleitor teve oportunidade de
ratificar, ou as de uma moeda única de que nos esconderam os mais básicos erros
de construção: os de um instrumento económico que deixa os parceiros menores à
mercê do diretório do(s) grande(s). A toda a Europa do Sul, o euro trouxe a
maior recessão económica desde a Grande Depressão, e o maior recuo na justiça
social desde que esta passou a ser considerada como inseparável da democracia.
“A filosofia económica do programa da troika empurrou a Grécia
para o abismo, produzindo uma quebra de 25% do PIB. Não me lembro de nenhuma
depressão que tenha sido provocada de forma tão deliberada e com consequências
tão catastróficas.” NÃO, a culpa não é grega. É inaceitável que a “troika se
recuse a aceitar a responsabilidade por tudo isto e não admita como foram
nefastas as suas previsões e os seus modelos. E é surpreendente que os líderes
da Europa não tenham aprendido lição alguma.” (J. Stiglitz,Guardian,
29.6.2015)
NÃO, esta
não é sequer uma discussão entre quem protege as pensões gregas e quem protege
as ainda mais baixas pensões portuguesas ou eslovacas, como se tem dito. A
Grécia mal viu todos aqueles milhões que se transferiram do BCE e do FMI para
Atenas e, em frações de segundo, dali para a banca privada europeia, a
francesa, a alemã ou a própria grega. Em 2011, ao fim de um ano do início do
“resgate”, 41% da dívida grega ainda era detida pela banca e empresas privadas.
Hoje só 3%. Foram os estados da UE que decidiram pagar à banca privada a dívida
grega: em 2011 detinham 15% desta; hoje detêm 60% (Fórum Económico
Mundial, El País, 2.7.2015).
E NÃO,
nada disto ajudou a reduzir a dívida, que não cessa de crescer, na Grécia como
em Portugal. É o próprio FMI que admite que ela é “insustentável”, que deveria
ser reestruturada e, mesmo assim, “permaneceria demasiado alta durante décadas”
(Guardian, 2.7.2015). Quem criou esta situação sabia bem o queria: a
austeridade como regime, como sistema de governo das relações sociais, políticas
e económicas na era da “hegemonia do mercado ilimitado” a que se tem chamado
eufemisticamente a globalização. “A austeridade do passado impõe
austeridade depois, a humilhação colonial do passado impõe mais humilhação
colonial depois. E sempre. (…) Empobrecer quem tem menos para transferir essa
diferença para quem teve sempre mais.” (J.M. Pureza, Linhas vermelhas,
2015)
NÃO sei o
que sairá do referendo de amanhã. Mas sei que a “Grécia devia votar Não e
que o governo grego devia preparar-se, se necessário, para sair do euro. (…) É
tempo de pôr fim a esta irracionalidade.” (Paul Krugman, NYT,
29.6.2015)
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