Este artigo do Soromenho-Marques, um dos pioneiros ambientais do país, ajuda a olhar melhor para este problema.
Viriato
Soromenho- Marques
Na utopia ecológica, o importante é que a
história continue
14/01/2016
Para um dos maiores
nomes do ambientalismo em Portugal, a sociedade deve permitir que cada um,
dentro de limites ecológicos e materiais, possa seguir o seu caminho.
Quando se pergunta a um histórico ecologista qual é a sua utopia para um
mundo sustentável, o que se espera é uma receita de soluções práticas em áreas
como a energia, alimentação, transportes ou ordenamento. Mas Viriato Soromenho
Marques, professor de filosofia na Universidade de Lisboa e um dos principais
nomes da arena ambiental no país, tem uma visão mais estrutural: para alcançar
a sustentabilidade, é preciso reinventar a utopia clássica, pôr a tónica na
ética e na política, e abandonar a crença de que tudo se vai resolver com a
próxima invenção tecnológica.
O testemunho da poluição
"A minha educação
ambiental começou em 1972, 1973, por via dos programas Há Só uma Terra.
Foi a primeira vez que ouvi falar do relatório Os Limites do Crescimento.
Eu estava no liceu, tinha uns 14 anos. O livro causou-me um grande impacto.
Atingiu-me como uma pedra.
Nasci e vivi em
Setúbal. Naquela altura, era uma cidade que mudava a olhos vistos com a
indústria. Eu assisti à transformação da paisagem e à poluição. Antes da
Setenave, fazia caminhadas no estuário do Sado e regressava à casa com os pés
retalhados das ostras. Desapareceu tudo por causa do TBT [produto utilizado nas
tintas dos navios].
Aos 18 anos, comecei a
escrever sobre temas ambientais para o trissemanário Nova Vida. Em 1978,
resolvi criar uma associação, em que um dos fundadores era o Zeca Afonso. E em
1980-1981, comecei a colaborar com o projecto Setúbal Verde. Em 1987,
integrámo-nos na Quercus.
Vivi como toda a gente
a viragem política à esquerda em 1974. E fiz um pouco o casamento das duas
coisas, o que correspondia a um eco-socialismo: a crise do ambiente chama a
atenção para o facto de estarmos a usar a natureza de uma forma predatória; o
socialismo chama a atenção para o facto de estarmos a utilizar as pessoas, não
respeitando a sua dignidade. No fundo, são duas formas de abuso.
Nessa altura, aquilo
que mais me preocupava – e me preocupa – é esta degradação da qualidade de
vida. Ver o mundo invadido pelo lixo, pela poluição, era algo que colocava em
questão a própria sobrevivência da humanidade. Para mim, isso era claro já
naquela altura".
Filosofia e o fim da história
"A minha formação
conduziu-me pelo caminho da filosofia continental, a europeia, a alemã, que é
uma filosofia do pensamento da totalidade, do sentido da história, do
significado da marcha humana neste planeta. E há uma tendência muito grande
para o conceito do fim da história. Ou seja, a história tem um projecto, tem
uma finalidade, e a nossa função é compreender e ajudar a realizar este
trajecto.
A ideia é que o
absoluto é uma coisa positiva. Mas pensei: imagine que, afinal, o segredo da
história não é o absoluto pela positiva, mas o absoluto negativo. Ou seja, que
o sentido da história não é a realização de uma possibilidade, mas a absoluta
destruição das possibilidades de realização. Podemos ter uma guerra nuclear ou
podemos ter uma catástrofe ambiental. Fiquei logo assustado".
A crise ambiental planetária
"Hoje em dia toda
a gente fala de crise para tudo e para nada. Mas o que é que há de diferente na
crise ambiental? Primeiro aspecto: é uma crise planetária, é a única crise
verdadeiramente planetária. A crise económica e financeira não atinge a
Antárctida. Nos oceanos não se discute a queda da bolsa de Nova Iorque. Em
contrapartida, temos os oceanos acidificados, a criosfera afectada, sítios onde
nem existem pessoas.
Segunda
característica: é uma crise que tem a natureza de acumulação temporal, diferida
no tempo. A modificação da estrutura química da atmosfera começou há 260 anos,
com a máquina a vapor. E agora, em 2015, começamos a sentir os primeiros
efeitos. Podemos ter uma geração que só colhe os benefícios e outra que só
colhe os prejuízos.
Terceira
característica: a irreversibilidade. Tivemos uma grande depressão em 1929, o
nazismo, a Segunda Guerra Mundial. Mas em 1945, o mundo estava a ser reconstruído.
Na crise ambiental, quando uma espécie desaparece, ela nunca mais volta – a não
ser nos filmes de Hollywood.
Uma quarta
característica é o impacte da crise ambiental na própria estrutura
sociopolítica. É um elemento de insegurança político-institucional, vai ser um
factor de criação de estados falhados.
Há um quinto ponto
também: o desafio psicológico. Pelo seu gigantismo, a crise ambiental
coloca-nos o dilema de aceitar a complexidade, e isto implica mudar o modo de
vida, os hábitos de consumo, o que comemos, como nos deslocamos. Não é fácil, é
como se estivéssemos a interrogar a respiração, se cada vez que inspiramos
tivéssemos de pensar se estamos a fazer bem.
Isto pode levar a uma
reacção contrária, de entropia. O Partido Republicano, nos Estados Unidos, por
exemplo, é o partido da entropia, dos indivíduos que dizem “que se lixe”.
Psicologicamente, estamos divididos entre uma consciência da complexidade, que
nos conduz a uma conduta ética e política de grande responsabilidade, e a
própria irresponsabilidade".
À espera da última app
"Considero que há
duas utopias fundamentais. Há uma utopia clássica, que é essencialmente ética.
E há uma utopia moderna, que é essencialmente tecno-científica. As utopias de
Platão e de Thomas More dizem o seguinte: nós podemos criar uma sociedade melhor,
temos é de ter a disposição moral para isso, temos de nos organizar ética e
politicamente para isso.
A utopia
tecno-científica é a que está à espera da última app na Internet. Ou
seja, podemos ter uma sociedade melhor, mas isto não tem nada a ver com a nossa
mudança de comportamentos, atitudes ou valores. Tem a ver com o facto de haver
uma máquina que nos permita lá chegar. É como acreditar no Pai Natal. O Stephen
Hawking, uma pessoa maravilhosa e muito inteligente, acredita que uma parte da
humanidade poderá emigrar para outro planeta. É uma história de fadas.
Uma das
características fundamentais da utopia tecno-científica é o falhanço entre
expectativa e resultados. Augusto Comte dizia, em 1822: vamos começar uma nova
idade, a idade industrial. Vamos substituir o domínio do homem sobre o homem
pelo domínio do homem sobre a natureza. Vamos ter mais produção, mais riqueza.
Teremos a paz porque toda a gente terá abundância. Mas a paz não aconteceu.
Temos tecnologia e temos guerra e exploração.
É o mesmo discurso dos
utopistas modernos. Na biotecnologia, argumenta-se que os organismos
geneticamente modificados vão acabar com a fome no mundo. É conversa. E
continuamos a dizer a mesma coisa que dizíamos sobre o nuclear, que é seguro,
que está sob controlo.
É por isso que surge a
crítica ecológica. Ela não é anti-tecnológica, mas é uma crítica a esta forma
de como nós transformamos a tecnologia num fim em si próprio, e não num
instrumento fundamental. Se não colocarmos a tecnologia dentro de limites
políticos muito precisos, ela vai-se desenvolver até ao colapso".
Política de ciência e parlamentos
"A política de
ciência é fundamental. Vamos ter uma mudança positiva a partir do momento em
que o financiamento à investigação científica começar a ser um assunto de
primeira relevância. No fundo, trata-se de voltar a colocar no plano das
instituições políticas o comando das operações. E não como acontece agora, em
que temos a tecnologia completamente à solta, e aquelas comissões de ética que
andam atrás.
Precisamos de um
controlo democrático. É escandaloso perceber que gastamos várias vezes mais na
investigação de novos cosméticos do que nas energias renováveis. A investigação
científico-tecnológica não é dominada por uma ideia de bem comum da humanidade,
mas pela maximização do lucro das empresas.
Os parlamentos é que
têm de tomar estas decisões, não são as academias. Temos não só de pôr a
investigação debaixo da alçada dos representantes do povo, como também o
mercado debaixo da alçada da lei pública.
Só há uma hipótese,
que é encontrar uma estrutura política que permita corresponder à escala
económica que temos hoje. Por isso é que eu sou um federalista. Temos de ter,
além dos estados nacionais, ligações federadas entre eles. O caminho para a
sustentabilidade não está em criar um estado mundial. Mas temos de ter uma
ordem mundial de estados".
Palmadas nas costas em Paris
"A minha utopia,
o meu projecto, assenta num regresso do primado da razão prática, da ética e da
política. A partir de Francis Bacon [1561-1626], cometemos o erro fundamental
de considerar que podíamos mudar o futuro para melhor confiando nas nossas
invenções tecnológicas. Mas não estamos a jogar em condições de ausência de
constrangimentos. Temos cada vez menos tempo em matéria de recursos, de
equilíbrio climático, em matéria demográfica. O jogo está a ficar cada vez mais
contraído. É fundamental alargar a margem de tempo, e nisso é a política que
pode ajudar, e não a tecnologia.
Por isso é que
continuo a defender um modelo clássico de regime internacional para o ambiente,
com metas vinculativas. Só isso é capaz de criar uma mudança das regras
do jogo que permita canalizar os investimentos necessários à inovação num tempo
mais eficaz.
O recente Acordo de
Paris [para o combate às alterações climáticas] corresponde à visão
tecno-científica contemporânea. A ideia básica é essa: deixem o mercado
trabalhar, o mercado há-de encontrar a melhor solução. O acordo coloca as
regras do mercado a constranger a sociedade, enquanto devemos pôr as regras da
sociedade política a constranger o mercado.
O sistema de
compromissos anunciados pelos países não é suficiente. São palmadas nas costas,
é uma conversa retórica, de que todos somos irmãos. É melhor do que não haver
acordo. Mas falta a noção de que precisamos ir mais depressa. E só é possível
ir mais depressa se encontrarmos mecanismos artificiais que modelem o mercado.
Um exemplo simples: o
preço do petróleo. Se quisermos resolver o problema até nem precisamos ter
metas, basta ter um preço fixo para o barril de crude, por exemplo, que não
desça abaixo de 100 dólares".
A utopia pluralista
"A minha utopia é
uma utopia pluralista. A melhor sociedade é uma sociedade onde não exista o fim
da história. E isto parece-me algo novo na ecologia. As utopias tradicionais –
clássica e moderna – tinham uma coisa em comum: propunham uma determinada
vistão do fim da história, uma sociedade que seria a ideal. A utopia ecológica
diz que o importante é que a história continue, é criar condições de
possibilidade para que as gerações seguintes continuem a ter as suas utopias.
A grande utopia é
termos uma sociedade que permita que cada um, dentro de limites ambientais,
ecológicos, materiais, possa seguir o seu caminho. A minha utopia para o futuro
é a utopia da realização do indivíduo.
Mas se não arranjarmos
a casa, se não organizarmos politicamente a economia e a sociedade, não vamos
ter nada disso. Teremos sociedades de refugiados ambientais, de estados
policiais, de estados de emergência. O terrorismo, agora, é uma pequena amostra
do que poderá vir a acontecer".
Depoimento recolhido e
editado por Ricardo Garcia
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