Queremos sempre acreditar que o dia 1º de Janeiro de cada ano, por acaso Dia Mundial da Paz, vai dar respostas positivas aos nossos anseios e esperanças.
O ano que morreu simbolicamente às 24 horas do dia 31 de Dezembro não nos deixou saudades, fomos assistentes e vítimas do maior retrocesso político, social, económico e civilizacional após o 25 de Abril.
Este texto do João Caraça é simultâneamente um olhar sobre o passado, análise amarga do presente e, apesar de tudo, crença no futuro. Daí me parecer um bom texto para começar o ano no Xaringado e por tal o escolhi. Boa leitura!
Tanto mau costume, e em tempo avesso
João Caraça
05/01/2016
A turbulência que
campeia pela Europa é o prenúncio das revoltas que estão por eclodir.
Era assim – “(…) tanto mau costume, e em tempo avesso” – que o poeta André
Falcão de Resende descrevia a época desvairada que tinha produzido, apesar de
tudo, um génio como o seu amigo Luís de Camões. Não devemos pois ficar
demasiado desassossegados com as crises e malfeitorias que agora vemos, porque
talvez não sejam tão excepcionais na história como isso (o século XVI também
não foi caso único). Preocupemo-nos sim com a amplitude e a dimensão da
desgraça e da criminalidade que grassa pela Europa. Não só não aprendemos com a
história, como também os sistemas em que vivemos se vão dotando de uma
perversidade crescente, que só diminui quando colapsam na fornalha da próxima
revolução.
O conceito moderno de
“cidadão” apareceu com a revolução francesa. A soberania passou a residir no
povo e não num monarca. O que havia antes eram “súbditos” e “servos”. É a ideia
de soberania popular que define politicamente a esquerda desde o seu
nascimento. Foi em França, igualmente no século das “luzes”, que a frase “laissez
faire, laissez passer” foi inventada, promovendo um modelo “liberal” para a
estrutura e funções da actividade económica. O capitalismo absorveu bem o
choque da revolução e adaptou-se com proficiência às novas condições de vida em
sociedade. De facto, transformou-se e robusteceu-se. Como explica Karl Polanyi
em “A Grande Transformação”, a economia, que desde sempre esteve imersa na rede
das relações sociais, passou a partir de então a comandar a vida social pelo
que as relações sociais passaram a estar incorporadas no sistema económico.
Apoiado em regimes
parlamentares, o capitalismo foi-se apoderando habilmente do sistema-mundo
económico e portanto de toda a sociedade. Conseguiu com êxito durante os
últimos cento e cinquenta anos compatibilizar a igualdade política
(indispensável para legitimar a liquidação dos privilégios senhoriais bem como
a abolição da escravatura) com a desigualdade económica – inerente ao modo de
acumulação capitalista. As constituições dos nossos Estados-nação defendem
tanto os direitos do cidadão como os da propriedade. Nada disto foi obra do
acaso.
Claro que apenas foi
possível gerir estas práticas antagónicas porque houve um sustentado
crescimento da riqueza gerada. A expansão colonial europeia ajudou. A
estabilidade dos sistemas nacionais repousou ainda sobre a existência de uma
classe média em alargamento, apta a alternar o seu voto entre dois grandes
partidos do centro político, um mais à esquerda, outro mais à direita,
consoante as vicissitudes das conjunturas interna e externa.
Mas nem tudo foram
rosas neste último século e meio. Os movimentos reivindicativos de melhores
condições de vida para as populações e para a generalidade dos trabalhadores
foram uma constante, embora com várias intensidades e calibres. Surgiram várias
esquerdas, herdeiras de experiências históricas específicas; travaram-se duas
guerras terríveis em solo europeu; ocorreram revoluções na Rússia e na China;
as nações europeias foram forçadas a descolonizar; o centro do sistema-mundo
moveu-se do Reino Unido para os Estados Unidos da América; o capitalismo
financeiro tomou as rédeas do Estado e lançou-se na globalização; as
desigualdades não pararam de aumentar.
As crises que tiveram
origem nos Estados Unidos e assolaram a Europa neste século são o resultado das
disfunções do capitalismo financeiro “informacional” (e da sua ânsia de
acumulação infinita de capital) como ordenador do mundo. A desagregação dos
poderes do Estado favorecida pela globalização facilitou a mescla do trigo com
o joio. As consequências estão à vista: escândalos financeiros em catadupa;
paraísos fiscais que servem para branquear operações fraudulentas;
administrações nacionais infiltradas pela corrupção. Basta, estamos fartos!
No meio da
desconfiança generalizada que daqui resultou só por milagre o produto mundial
poderia voltar a crescer tal como no século XX. As deslocalizações que
beneficiaram o capital financeiro destruíram ao mesmo tempo muito do capital
humano do ocidente. O nível de desemprego aumentou. E a ideologia neoliberal da
competitividade e do crescimento é claramente incapaz de reduzir o desemprego a
curto prazo.
Daí a indignação
contra as políticas de austeridade: porquê reduzir o Estado-providência
precisamente quando a situação económica geral piorou? E por que razão só os
mais ricos ficam mais ricos? Quando parte da população cruza o limiar da
pobreza, uma considerável fracção da classe média é arrastada para níveis
próximos dela. Perde-se assim o estabilizador do regime – a maioria que
disputava o “centro” – o que faz com o que o sistema político se torne caótico.
Num recente artigo (no site do Centro Fernand Braudel) Immanuel Wallerstein
discorre sobre as consequências desta deriva para os sistemas eleitorais de
hoje.
A turbulência que
campeia pela Europa é o prenúncio das revoltas que estão por eclodir. É tempo
de avisarmos os nossos concidadãos, tal como Thomas Mann, em “Aviso à Europa”
(1937):
“Em todo o humanismo
há um elemento de fraqueza que vem da sua repugnância por qualquer fanatismo,
da sua tolerância, e da sua inclinação para um cepticismo indulgente, numa
palavra, da sua bondade natural. Mas isso pode, em certas circunstâncias,
tornar-se fatal. Aquilo de que nós teríamos necessidade, hoje, seria de um
humanismo militante, um humanismo que afirmasse a sua virilidade e que
estivesse convencido de que os princípios da liberdade, da tolerância e do
livre arbítrio não têm o direito de se deixar explorar pelo fanatismo sem
vergonha dos seus inimigos.”
De todos os seus
inimigos, os de dentro e os de fora. O tempo está avesso mas é o nosso. É neste
tempo que se desenha o futuro. Bom Ano Novo!
Professor
universitário, físico
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