Estamos na verdade a viver
tempos estranhos, tempos que pensávamos não ser possível no SECº XXI, do qual
se esperava mais e melhor democracia, mais prosperidade e paz.
Ao contrário assistimos ao
retorno em força das religiões e a retrocessos civilizacionais preocupantes,
aos "mercados" dominarem por completo nações e exigirem o regresso da
pobreza, mais e maior desigualdade social, pior saúde, trabalho sem qualquer
direito ou garantia e imporem que tudo, mas tudo, quer seja indústrias ou serviços
públicos ou a natureza (água incluída) passe para a propriedade privada dos
mercados. Mais, como meio para se alcançar tais fins privatizaram-se os
partidos de direita e mesmo muitos pseudo socialistas ou sociais democratas. O que se está a passar em
Portugal e na UE ilustram bem este tempo. Anexo dois artigos saídos hoje,
convicto que a sua leitura não é uma perda de tempo.
Escravatura por dívida
13/02/2016
Se se tratar de um estado soberano que tenha uma grande dívida, este pode
ser obrigado, como aconteceu na Grécia, a aceitar uma qualquer forma de
escravatura por dívida.
A história conheceu e conhece muitas
circunstâncias em que, por não pagamento de uma dívida, uma pessoa perdia a sua
liberdade e ia preso ou, pior ainda, era reduzido a um estatuto de escravatura,
temporária ou definitiva. Estas práticas existiam na Grécia antiga, com a
sempre especial excepção de Atenas, onde Sólon as proibiu. E mais ou menos espalhadas
continuaram na Índia praticamente até aos nossos dias, tendo conhecido formas
variadas de trabalho forçado durante a expansão colonial europeia. Hoje, uma
das formas modernas de escravatura por dívida é praticada pelos grupos mafiosos
que exportam mão-de-obra e emigrantes para a Europa e América e mulheres para
redes de prostituição, retirando-lhes os documentos, em nome da dívida que
contraíram ou as suas famílias para "pagar" a viagem e a entrada
ilegal nos países mais ricos. Estamos a falar, como é óbvio, de actividades
criminosas, visto que a escravatura é um crime.
Ah!, afinal não é bem assim. Se se tratar de um Estado soberano que tenha
uma grande dívida, por exemplo, Portugal, este pode ser obrigado, sob pena de
morrer à fome ou de uma qualquer forma de intervenção estrangeira mais ou menos
agressiva que o transforme num pária, como aconteceu na Grécia, a aceitar uma
qualquer forma de escravatura por dívida. Escravatura significa aqui deixar de
ser um país democrático, porque os seus habitantes deixam de poder votar como
entenderem, ou então votam sem consequência, porque as políticas que lhe são
exigidas são sempre as mesmas — trabalhar para pagar aos credores, sob a forma
que os credores consideram ser mais eficaz em função dos seus interesses.
Escravatura significa aqui que um país, Portugal, por exemplo, deixa de ser
propriedade dos portugueses para o ser dos credores, que definem os orçamentos,
as políticas, até ao mais pequeno pormenor, deixando apenas a intendência muito
menor aos responsáveis locais. Escravatura significa que esses países e povos
que assinaram em desespero de causa um contrato, seja um memorando, seja um
tratado orçamental, um contrato por dívida, ou outro, um contrato que obriga
todas as políticas a servir a dívida e o seu pagamento, não podem sequer
escolher qualquer outro caminho para pagar a dívida que não seja o de aceitarem
a escravatura, senão partem-lhes as pernas. Os credores controlam a
"reputação" e a "confiança" de um país, conforme ele cumpre
os preceitos do bom escravo, e, caso haja dúvidas sobre a sua obediência,
tiram-lhe de imediato o ar.
Lembro-me disto quando ouço justificar tudo o que acontece com a
"bancarrota Sócrates". E tudo o que nos acontece não é coisa de
somenos, é aquilo que define a liberdade de um país e de um povo, é a perda de
democracia, a perda de autonomia dos portugueses para se governarem, a redução
das suas instituições como o Parlamento à impotência, é o taxation without
representation, é a humilhação pública de governos através de fugas de
informações de funcionários de Bruxelas, é o desprezo e o deitar gasolina para
a fogueira de pessoas como Schäuble e, pior que tudo, é ver portugueses muito
contentes com a submissão do seu país. Percebe-se porquê: as políticas que nos
são impostas são as deles, identificam-se com elas e os interesses que
representam (e representam muitos interesses) sentem-se confortáveis com a
escravatura que nos é imposta. Podem não governar já hoje Portugal, mas governam-no
a partir de Bruxelas, das agências de rating e do senhor Schäuble.
A "bancarrota Sócrates" foi um desastre para o interesse
nacional, Sócrates tem uma imensa responsabilidade, mas não está solitário
nessa responsabilidade. Embora ainda haja muitas obscuridades no que aconteceu,
a responsabilidade deve ser partilhada com o PSD e o CDS, e em menor grau como
BE e o PCP. Parte dessa responsabilidade é também da crise financeira
internacional, da maneira como a Alemanha suscitou, com o caso grego, a crise
artificial das dívidas soberanas, e do comportamento errático da Comissão sob
tutela alemã, que primeiro quis combater a crise deitando dinheiro em cima da
economia e depois travou, virando 180º a política económica. Bem vistas as
coisas, sem que isso signifique uma caução às políticas despesistas de
Sócrates, podia não ter havido a "bancarrota Sócrates".
Por isso, a situação actual não é filha de um único evento, mas de dois: a
"bancarrota Sócrates" e a governação desastrosa do PSD-CDS dos
últimos quatro anos. Como já escrevi várias vezes, a crise de 2008-2011, abriu
caminho para uma outra crise, que tem sido responsável pela estagnação da
Europa em contraste com os EUA. E o que se seguiu, para países como Portugal,
foi menos dramático do que a iminência de não ter dinheiro nos cofres, mas foi,
num certo sentido, pior: foi a redução do país a uma política que, acentuando
as desigualdades e a pobreza, destruindo os escassos recursos que existiam,
erodindo a frágil classe média e obrigando à emigração dos mais qualificados,
impedindo qualquer política de desenvolvimento, tornou o país num medíocre
executor de políticas com um único objectivo: pagar a dívida que é hoje, no
meio da crise bancária e financeira, uma linha de vida para os credores.
Pequenos que somos, não contando muito para os balanços, contamos para o
exemplo. Aí contamos muito mais do que devemos, daí a enorme pressão política
sobre o Governo Costa, que tem garantida a enorme hostilidade dos mesmos que
tornaram estas políticas a variante nacional da TINA. O problema não é de
"desconfiança", é de hostilidade — ele não é dos nossos, não é o que
foi Passos Coelho, logo, vamos ensiná-lo como fizemos aos gregos. Com os
resultados brilhantes que se vêem na Grécia.
O contentamento mal escondido da direita radical com as dificuldades do
Governo Costa coloca-a com entusiasmo ao lado da vozearia que vem de Bruxelas e
Berlim, alguma de uma arrogância que devia ofender já não digo um patriota, mas
um português que gosta do seu país. Responsáveis do Eurogrupo, altos
funcionários sob a capa das fugas anónimas, antigos e actuais ministros das
Finanças europeus, holandeses, bálticos, alemães, dão entrevistas
pronunciando-se sobre um governo legítimo da União Europeia com uma
desenvoltura que nunca tiveram com os responsáveis políticos húngaros e polacos
cujas malfeitorias em direitos e liberdades são-lhes bastante menos importantes
do que uma décima no défice português. E quando alguém acha que todas estas
vozes, falando também para as agências de rating e para os
"mercados", são demais, eles encolhem os ombros e dizem que um país
em bancarrota é escravo da dívida.
Não, não é só isso — é que eles gostam do que ouvem, pena é que Schäuble
não fale mais vezes para varrer este Governo do Syriza português, mais o PCP e
o BE. Pensam acaso que eles estão muito preocupados com a dívida? Enganam--se.
Tanto mais que a aumentaram consideravelmente quando estiveram no poder e que
em segredo sussurram que "no fim de tudo tem de haver uma reestruturação
da dívida". Não é a dívida que os preocupa, é o poder político deles e dos
seus e a prossecução de uma política que faça recair sobre uma parte dos
portugueses, aqueles a que se tornou maldito restituir salários e pensões, o
ónus do défice e da dívida e, acima de tudo, que o alvo desses custos não sejam
outros. A escravatura do país é para eles bem-vinda, ajuda-os a manter o poder,
"porque não há alternativa". Conheço vários exemplos na história
destes "não há alternativa" e nenhum acabou bem.
Racistas
13/02/2016
“Desprezível.” Quem o diz é o
diretor da Human Rights Watch, Kenneth Roth, sobre a legislação que a Dinamarca
aprovou para confiscar todos os valores (dinheiro, joias, objetos) acima dos
1300 euros na posse dos refugiados que chegam ao país. O objetivo, diz o
governo, é o de os fazerem “pagar o custo do tratamento dado pelo Estado a cada
um deles” e – pasme-se! - o de “assegurar uma melhor integração” (Guardian,
26.1.2016). “Acho desprezível que a Dinamarca e a Suíça estejam a confiscar os
últimos bens que restam a pessoas que, vulneráveis e em mudança permanente [de
um território para outro], empobreceram e a quem quase nada resta”. É uma
atitude “vingativa” (The Local.dk, 27.1.2016) por parte de um dos países
mais ricos da UE e do mundo, que não tem especiais dificuldades em assegurar os
“serviços muito básicos” que deve prestar aos refugiados ao abrigo da Convenção
do Estatuto dos Refugiados, que, preparada pela ONU, a Dinamarca assinou há 65
anos mas que o primeiro-ministro, o liberal Lars Løkke Rasmussen, quer agora
rever, num gesto que responsáveis por agências de de Direitos Humanos das
Nações Unidas entenderam ter como objetivo a “renúncia a uma tradição milenar
de hospitalidade” para com os refugiados. “A convenção sobre refugiados salvou
milhões de vidas e é um dos mais importantes instrumentos de Direitos Humanos
alguma vez criado” (declarações de François Crépeau e de Melissa Fleming ao Guardian,
6.1.2016).
Porquê
esta sanha? A Dinamarca acolheu 21 mil refugiados em 2015 (2% do total da
Europa). Quase todos, atenção, aguardam ainda uma decisão sobre o seu pedido de
de asilo – e é muito provável que lhes seja recusado. Estes refugiados são 4
pessoas em cada 100 mil habitantes daquele país! À Grécia, com o dobro da
população da Dinamarca mas um seu sócio europeu bem mais pobre, e muito mais
deprimido, chegaram 750 mil refugiados em 2015 – passando a representar um de
cada 14 habitantes do país. O Líbano, menos populoso e muito mais pobre que a
Dinamarca, acolhe hoje 1,3 milhões de refugiados, que representam mais de ¼ da
sua população! O que é revelador na reação europeia à crise dos refugiados é o
facto de serem os países mais ricos a adotarem as medidas legais (e já nem falo
do acolhimento social) mais hostis aos refugiados. É que, além da Dinamarca, já
a Suíça e os três maiores e mais ricos estados federados da Alemanha adotaram
medidas de confisco de bens que emergem da pior tradição racista e persecutória
da história da Europa. Na Baviera, as autoridades podem confiscar tudo acima de
750 euros; no Baden-Württemberg, acima dos 350 euros; e na Renânia-Vestefália
do Norte, 200 euros é o valor máximo dos bens que os refugiados podem
conservar! (The Local.de, 28.1.2016) Na Suíça, a TV pública revelou que
as autoridades não só confiscam tudo quanto os refugiados tenham acima de mil
euros, como estes são obrigados durante dez anos a pagar 10% do salário que
conseguirem reunir, até reembolsar o Estado suíço dos 15 mil euros que este
estima ser o custo do seu acolhimento (Guardian, 15.1.2016). Isto é
literalmente o que fazem muitos dos passadores de migrantes forçados à
ilegalidade, que, depois de pagar a passagem com quantias que representam anos
de trabalho seu e das suas famílias, são obrigados a pagar comissões desta
mesma natureza aos traficantes. Isto é, governos como o suíço comportam-se
exatamente como os traficantes de pessoas que tanto dizem querer perseguir…
Fez bem a
Assembleia da República em condenar o que achou, por unanimidade, ser um
“evidente retrocesso político, jurídico, social e civilizacional”. E, por mais
dúvidas que alguns tenham, bem fez o grupo parlamentar do PS em convocar o
embaixador dinamarquês em Portugal para prestar explicações aos deputados sobre
a “lei das joias”; se o diplomata queria embaraçar os socialistas portugueses
ao sublinhar que até os sociais-democratas do seu país apoiaram a proposta da
extrema-direita racista (que já é o segundo mais votado naquele país), não fez
mais do que confirmar a eficácia do discurso racista que, por todo o Ocidente,
salta barreiras ideológicas que durante décadas pareciam intransponíveis.
Nesta
Europa empapada por uma frustração social acumulada em oito anos de recessão
paga pelos mais pobres, num ciclo mais longo de 35 anos em que os mais ricos
têm conseguido (voltar a) sugar dos mais pobres a maioria do bem-estar que
estes haviam começado a conquistar, assiste-se a uma nova fase da secular
batalha contra a igualdade. “O que torna o racismo ocidental tão autónomo e
evidente na história mundial tem sido o facto de se ter desenvolvido num
contexto que presumia um certo tipo de igualdade humana” (George M.
Fredrickson, Racismo, 2004), primeiro de raiz cristã, depois com a
proclamação liberal da igualdade de direitos cívicos, depois, ainda, com a
reivindicação socialista da democratização dos direitos sociais, da igualdade
de género, da luta antirracista e anticolonial. O racismo cresce sempre quando
se agrava a desigualdade social. E hoje alimenta poderosos movimentos políticos
que, nos países mais ricos do Ocidente, se estruturam especificamente em torno
do discurso xenófobo (contra o imigrante ou o refugiado, contra o europeu
meridional, o africano, o sul-americano ou o árabe, o muçulmano ou o cigano
cristão), disfarçado de culturalismo determinista (hoje a “inassimilabilidade”
do muçulmano ou do cigano, antes a do judeu) e até de racionalidade económica,
assegurando ser impossível às sociedades mais ricas do planeta acolher
refugiados em números que são ridículos por comparação com aqueles que acolhem
sociedades muito mais desestabilizadas e com muito menos recursos. Há muito que
o discurso e as práticas políticas do racismo deixaram de ser monopólio do que
se costuma chamar a extrema-direita: os partidos dos arcos da governação da
maioria dos Estados europeus com ela partilham o exercício do poder e/ou a
conceção das políticas sociais e securitárias. Há 20 anos, pelo menos, que
dirigentes políticos abertamente racistas assumem parcelas muito significativas
do poder em todos os países escandinavos, na maioria dos Estados pós-comunistas
da Europa (Hungria, Polónia, Ucrânia, ...), na Holanda e Bélgica, na Baviera (o
maior Estado alemão) e na Áustria, em Itália. Fora dos governos, eles têm
imposto grande parte da agenda política na Grã-Bretanha, em França, na
Alemanha, em Espanha, … Nos Estados Unidos, um racista sem pudor como Donald
Trump pode vir a substituir o primeiro Presidente negro da história do país –
cuja eleição, sabemo-lo agora, em nada alterou a natureza racista das relações
sociais.
“Todas as
sociedades têm limites”, disse o embaixador dinamarquês. Pois têm...