Como é seu timbre mais um bom texto de V.Malheiros
Um orçamento realmente anti-austeridade
16/02/2016
O orçamento tem uma elevada carga
fiscal. Mas poderia ter, sem problema e com justiça, uma carga fiscal ainda
mais elevada.
Escasseia a paciência para o falso
debate sobre o orçamento que a direita tem conseguido manter na agenda
mediática usando todas as armas de arremesso possíveis e imaginárias e ao qual
o Governo, o PS e os outros partidos da esquerda têm respondido de uma forma
demasiado defensiva. Porquê “falso debate”? Porque em caso algum a direita
avançou uma contestação séria dos objectivos ou das políticas consubstanciadas
no orçamento - o que tinha o dever de fazer - e apenas tem tentado colar-lhe
rótulos que visam denegrir as novas políticas sem as discutir e,
principalmente, sem as comparar com as políticas que a própria direita pôs em
prática no governo anterior ou com aquelas que preconiza nas actuais
circunstâncias.
Primeiro foi o “debate” sobre os
pressupostos do orçamento, que eram irrealistas e inatingíveis - como se um
orçamento não fosse um exercício de previsões (arriscadas por definição,
principalmente em tempos de agitação das finanças e das economias
internacionais), como se um orçamento não fosse uma definição de objectivos
políticos (sempre discutíveis, sempre ideológicos e, naturalmente, distintos e
opostos aos dos adversários) e como se os pressupostos dos orçamentos do
governo PSD-CDS não tivessem sido, mais do que discutíveis, comprovadamente
falsos.
Depois foi o “debate” sobre aquilo que
seria afinal uma continuação da “austeridade”, devido à manutenção de uma carga
fiscal elevada, que a maior parte dos comentadores e jornalistas adoptou como
argumento e causa própria sem pruridos de maior.
Antes de mais, pensemos um pouco nas
palavras. “Austeridade” foi durante muitos anos um substantivo neutro ou mesmo
com tonalidades positivas. Ser austero não era ser alegre e imaginativo mas era
ser frugal e prudente, severo e rigoroso, contido e disciplinado, honesto e
fiável - tudo qualidades que, se é verdade que podem ser exercidas com excesso
e fanatismo, todos concordamos que devem balizar de uma forma geral a acção
governativa do Estado. Uma política de austeridade pode assim não ser a mais
adequada num determinado momento mas não é (não era) intrinsecamente
condenável.
O que acontece é que a direita
neoliberal internacional - como está hoje bem estabelecido por múltiplos
estudos feitos por inúmeros especialistas e organizações - decidiu,
inteligentemente, chamar “austeridade” a uma política que nada tinha de austera
e que constou, simplesmente, de uma brutal transferência de rendimentos do
factor trabalho para o capital; de um empobrecimento geral dos cidadãos; de um
aumento do desemprego de forma a reduzir a capacidade negocial dos
trabalhadores e a facilitar a descida de salários; de uma redução brusca da
quantidade e da qualidade dos serviços públicos de forma a fragilizar a
situação dos mais pobres e a aumentar as receitas dos serviços prestados pelas
empresas privadas em particular nas áreas da saúde e da educação; de uma
redução dos direitos sociais, económicos e culturais dos cidadãos; de uma
redução dos direitos laborais e sindicais de forma a reduzir a capacidade
reivindicativa dos trabalhadores; da imposição de uma situação de excepção do
ponto de vista legal que fez regredir as conquistas do último século em termos
de direitos humanos; de uma redução das prestações sociais de forma a excluir
da forma mais radical possível os mais frágeis do exercício da cidadania; de
pilhagem do património público, privatizando todas as actividades económicas
rentáveis ainda na esfera pública, de forma a reduzir o poder político do
Estado e a submetê-lo ao poder económico das empresas privadas; etc.
Porque é que esta política nada tinha de
austera? Porque a política chamada de “austeridade”, a par da muito real
“austeridade para os pobres”, estabeleceu uma situação de facto de regabofe
para os ricos e poderosos, que aumentaram as suas riquezas e poder, que se
apropriaram ilicitamente de bens públicos, que viram as suas rendas e
privilégios reforçados.
O programa radical que a extrema-direita
económica representada em Portugal pelo PSD e pelo CDS (“extrema-direita”
porque não há nada mais à direita no espectro da política económica) levou a
cabo no nosso país foi assim uma revolução de direita, feita sem mandato
popular, com falsos pretextos e com resultados catastróficos em termos sociais
e económicos.
O orçamento do actual governo, por isso,
não tem nada de austeridade e é, em quase toda a linha, um orçamento
anti-austeridade – no sentido abastardado que a direita impôs à palavra – ainda
que frugal e prudente.
É um orçamento com uma elevada carga
fiscal. Mas poderia ter, sem problema e com justiça, uma carga fiscal ainda mais
elevada. É que o problema não é quanto se paga de impostos, mas sobre o quê e
sobre quem incidem os impostos. Todos sabemos (é a Autoridade Tributária quem o
diz) que os mais ricos pagam menos imposto do que deviam. Os impostos do actual
orçamento são justos porque aliviam os menos ricos e porque permitem que a
economia respire. E é essa a questão. Não se aqui ou ali há mais ou menos duas
décimas de imposto.
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