Praxe académica: uma história longa e uma oportunidade
única
João Mineiro
18/02/2016 Substituir os valores da praxe, isto é,
da verticalidade, da hierarquia e da obediência ao superior, pelos valores da
horizontalidad
e, do companheirismo e da igualdade, é
uma tarefa urgente.
No passado dia 5 de
Fevereiro, a Assembleia da República aprovou um conjunto de recomendações
relacionadas com a questão das praxes académicas. Nelas os grupos parlamentares
procuraram ensaiar um conjunto de respostas novas para enfrentar um problema
que está longe de ser novo na sociedade portuguesa. Na verdade, desde pelo
menos 1727 que os rituais de receção aos novos alunos nas universidades são
alvos de contestação. Lembremos-nos que foi nessa data que curiosamente o rei
absolutista D. João V declarou que “mando que todo e qualquer estudante que por
obra ou palavra ofender a outro com o pretexto de novato, ainda que seja
levemente, lhe sejam riscados os cursos”. Mas a proibição não impediu que no
século XIX os mais comuns rituais de receção aos estudantes fossem coisas tão
bárbaras como o canelão, que consistia em dar pontapés nas canelas dos mais
novos, o rapanço, no qual se cortava o cabelo, e a pastada, em que os novatos
tinham que simular que eram animais comendo o seu pasto.
Estes rituais bárbaros, chamados de
“praxe” na segunda metade do século XIX, haviam de suscitar enorme agitação nas
universidades e na sociedade ao longo de todo o século XX. A abolição do
canelão em 1902 chamou a atenção de republicanos e progressistas que, já depois
da instauração da República, aboliram também a praxe académica. A praxe voltará
a ser reposta em 1919 e nas décadas seguintes há-de ser recuperada como símbolo
da academia e do seu conservadorismo durante o Estado Novo. Mas essa recuperação
não resistiu aos ventos de liberdade que se fizeram sentir nos anos 60 e 70. A
dissidência política e cultural dos meios estudantis, fortemente organizada em
torno da crítica ao regime e à guerra colonial, e que teve nas crises
académicas de 62 e 69 a sua melhor expressão, fez com que se acentuasse uma
contradição entre o discurso fortemente politizado que se expandia no movimento
estudantil, e as práticas mais conservadoras que persistiam na academia,
pautando quer pelo elitismo em relação ao exterior, quer pela forte hierarquia
no seu interior. Esse paradoxo crescente explica, em parte, que a praxe tenha
entrado naturalmente em desuso no final dos anos 60, na sequência do luto
académico, desaparecendo nos anos 70 quando, com a explosão do 25 de Abril, as
universidades se transformaram num palco de agitação política, ocupações e
transformações sociais e culturais profundíssimas.
A praxe como a conhecemos regressa nos
80, na sequência do fim do luto académico em Coimbra e do resfriamento da
atividade política nos meios estudantis, acompanhando o projeto de
reorganização da universidade portuguesa que começa com a abertura do sistema
aos privados e com as primeiras intenções de mercantilização do ensino. É
depois desta década que a praxe se expande ao conjunto do país e a muitas
universidades onde nunca constituiu qualquer “tradição”.
O crescimento do movimento praxista
desde os anos 90 teve como natural consequência a proliferação de inúmeros
casos de violência. No livro Desobedecer à Praxe (Deriva, 2015) que
escrevi com o realizador Bruno Morais Cabral, analisámos os casos
que deram origem a denúncias públicas, entre 1999 e 2014, e constatámos que
foram mais de duas dezenas as situações de violência, agressões, humilhações
sexuais, lesões físicas profundas ou até de mortes trágicas ocorridas em
contexto de praxe. Muitos outros casos não vieram a público, ficando abafados
pelos pactos de silêncio das comissões de praxe, pela ausência de
apoio às vítimas e pela falta de coragem de muitos direções estudantis e
instituições de ensino superior.
A escalada de violência e os valores
profundamente retrógrados que estão na raiz da praxe, têm sido alvo, ano após
anos, de denúncia pública e agitação nas universidades e fora delas. Desta vez,
essa agitação atravessou os muros da academia e chegou à Assembleia da
República que, no passado dia 5 de Fevereiro, chegou a um compromisso sobre o
combate às praxes académicas, aprovando sem votos contra um
conjunto recomendações propostas pelo BE (Projeto de Resolução n.º 21/XIII/1.ª)
PS (Projeto de Resolução n.º 124/XIII/1ª) e CDS (Projeto de Resolução n.º
122/XIII/1ª). Estas recomendações assentam em três objetivos: dar informação;
proteger as vítimas; e responsabilizar as instituições e os estudantes pela
criação de alternativas às práticas de praxe.
Quanto ao objetivo da informação, o
parlamento propõe a realização de um estudo sobre a realidade da praxe a nível
nacional, a distribuição de um folheto que alerte para as consequências
disciplinares e penais que a praxe pode ter, a elaboração de um conjunto de
documentos de apoio às instituições para a prevenção da violência, a realização
de questionários periódicos e anónimos sobre as atividades de praxe e a criação
de campanhas de tolerância zero aos abusos.
Quanto à proteção das vítimas, propõe-se
a criação e reforço de redes de apoio, que permitam um acompanhamento dos
estudantes ao nível psicológico e jurídico, garantindo igualmente o reforço dos
mecanismos denúncia.
Quanto à responsabilização pelo combate
ao fenómeno, o parlamento recomenda a obrigação das instituições realizarem
atividades de receção alternativas para os novos alunos, de caráter lúdico e
formativo, através de um gabinete de apoio à integração académica. Para além
disso, propõe ainda que as instituições e associações académicas promovam
uma ação pedagógica que defenda os estudantes e reforce os mecanismos de
responsabilização e denúncia.
Mas não nos iludamos. Para que estas
medidas saiam do papel é preciso que as direções das instituições de
ensino superior e o movimento estudantil, no seu conjunto, assumam a sua
responsabilidade. O parlamento pode, deve, e ainda bem que deu um sinal
político claro sobre este assunto. Mas acabar com o espetáculo degradante das
praxes e proteger as suas vítimas, implica, por um lado, que as reitorias se
esforcem muito mais do que o estão a fazer agora, e por outro, que o movimento
estudantil crie alternativas à praxe, preenchendo as universidades com outras
formas de socialização estudantil.
Todas as pessoas querem que os novos
alunos sejam integrados nas universidades. A pergunta que devemos fazer é quais
são os valores que devem estar inerentes a essa integração. Substituir os
valores da praxe, isto é, da verticalidade, da hierarquia e da obediência ao
superior, pelos valores da horizontalidade, do companheirismo e da igualdade, é
uma tarefa urgente para quem já se cansou de esperar e já não suporta continuar
a viver no século passado. Já é tempo de não perdermos mais tempo.
Sociólogo, investigador e co-autor do
livro “Desobedecer à Praxe” (Deriva, 2015)
A generalização das praxes é uma necessidade das universidades privadas.
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