Após umas semanas de férias da internet regresso ao blogue. Nada melhor do que recomeçar com este texto oportuno. Sobre a amnésia da direita
Alfredo Barroso
28/09/2016
Infelizmente, o imobilismo neoliberal gerou um assustador e indesejável
subproduto: uma cidadania despolitizada.
1. Sem passado, não há presente
nem futuro, e o passado mais próximo que tivemos foi o do governo de direita
chefiado por Pedro Passos Coelho (PPC) acolitado por Paulo Portas (PP). A
comando da troika, e para além dela, os chefes da coligação entre
PPD/PSD e CDS/PP decidiram empobrecer deliberadamente os portugueses durante
mais de quatro anos. E não foi coisa que boa de se ver, tantos foram os
sacrifícios brutais impostos às classes populares e a boa parte das classes
médias, em benefício exclusivo dos mais ricos e poderosos.
Como alguns se lembrarão, não têm conta as falsas promessas proferidas por
PPC para conseguir ganhar as eleições e alcançar o poder – onde, aliás,
continuou a mentir sistematicamente. Lembramo-nos de muitas das suas falsas
promessas. Mas há uma, proferida por PPC quando já estava no poder, que
constitui como que uma “marca de fábrica” deste político amoral e sem
escrúpulos.
No dia 5 de Abril de 2011, PPC fez uma extraordinária afirmação – hoje
certamente esquecida – reveladora da sua incapacidade e incompetência
políticas. Numa das suas habituais sessões de ilusionismo político, neste caso
no chamado Clube dos Pensadores, disse PPC: “É decisivo um crescimento
económico de pelo menos 3 a 3,5% nos próximos dois ou três anos, ou
então a austeridade não valeu de nada”. Referia-se aos anos de 2012, 2013 e
2014. Ora, chegados a 2015 com uma baixíssima taxa de crescimento, a conclusão
que então se impunha era óbvia: “a austeridade não valeu de nada”,
segundo as palavras do próprio PPC.
É certo que, hoje, as notícias sobre o crescimento continuam a não ser
boas. Mas é no mínimo escandaloso que PPC, para criticar o actual Governo, se
tenha esquecido do seu monumental fracasso, ao ficar bem longe do crescimento
prometido por ele próprio em 2011 – os tais 3 a 3,5%, nos três anos seguintes –
sem o qual nunca haveria (e não houve!) “pacotes de austeridade” que lhe
valessem e nos valessem. E não foram poucos os “pacotes de austeridade” que
flagelaram sem piedade as populações, aumentando a pobreza e encolhendo o país.
2. Um dos argumentos mais
aviltantes recorrentemente utilizados pela direita ultra-liberal e
reaccionária, frustrada por já não exercer o poder, é o de que os pobres e os
remediados – impiedosamente sacrificados pelos “pacotes de austeridade” –
querem agora passar a viver à tripa-forra.
Que vergonha! Quem vive à tripa-forra e beneficiou imenso com a austeridade
e os sacrifícios impostos aos trabalhadores pelo governo de direita, foram os
ricos e poderosos, os grandes empresários, os plutocratas e os “tecnocratas sem
pátria” (ou “apátridas”, como lhes chamava De Gaulle) ao serviço do
capital financeiro.
Esta gente constitui um poder não democrático (e por isso ilegítimo)
difícil de conter e erradicar – que existe não apenas em Portugal mas também na
União Europeia, no Banco Central Europeu, no Fundo Monetário Internacional e
nas outras instâncias internacionais que comandam a globalização.
Convém lembrar que, nos quatro anos do governo de direita, o emprego caiu a
pique; foram destruídos cerca de 400 mil postos de trabalho; o desemprego
cresceu; os salários diminuíram; a precariedade aumentou; os direitos dos
trabalhadores e dos desempregados encolheram.
PPC insiste em afirmar que o seu governo andou a “pagar as dívidas dos
outros”, mas o certo é que, com o governo PPD/PSD-CDS/PP, a dívida do país
chegou aos 290 mil milhões de euros em Julho de 2015. Representava cerca de 90%
do PIB quando a direita chegou ao poder. Passou a representar cerca de 130% do
PIB quatro anos depois, tendo aumentado 106 mil milhões de euros.
Com a direita no poder, Portugal passou a ter uma das maiores desigualdades
sociais da União Europeia e uma das maiores taxas de pobreza da OCDE. Mais:
Portugal encolheu, tornando-se o quinto país do mundo em que a população mais
decresceu durante 2014. Segundo o Banco Mundial, só Porto Rico, Letónia,
Lituânia e Grécia tiveram um declínio populacional maior. Durante quatro anos,
a emigração de portugueses foi mais elevada do que na década de 1960 (marcada
pela ditadura de Salazar e pela guerra colonial), mas agora passando a emigrar
tanto os menos como os mais qualificados. Em quatro anos, emigraram quase 500
mil portugueses.
3. Seguindo a agenda e a
doutrina neoliberal dominantes, o governo de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas
submeteu-se completamente aos ditames da Comissão Europeia, do FMI e do governo
alemão; impôs o domínio do capital financeiro sobre a economia (em cerca de
seis anos, os bancos portugueses beneficiaram de apoios do Estado num montante
superior a 36 mil milhões de euros); instaurou a concorrência sem freios em
quase todos os domínios, por via da desregulação, das privatizações, dos
ataques ao Estado Social (SNS, escola pública, Segurança Social), dos cortes
brutais nos salários, pensões e prestações sociais de todo o tipo; e aprovou
políticas fiscais em escandaloso benefício das grandes empresas e dos
plutocratas.
O objectivo prosseguido por PPC e PP foi o de reforçar o poder das elites
económicas dominantes, recorrendo ao poder do Estado para proteger e defender
os interesses dessas elites e criar um ambiente institucional e um clima
favoráveis ao lucro. O seu projecto de redistribuição das riquezas nada
teve a ver com a protecção e bem-estar da colectividade nacional. Baseou-se,
isso sim, na acumulação por desapossamento, espoliação e esbulho de grande
parte das classes médias e das classes populares – reencaminhando essas
riquezas da base para o topo da hierarquia social.
Não tenhamos ilusões. Políticos defensores da via neoliberal e tecnocratas
ao serviço do poder do dia ocupam hoje posições estratégicas que lhes permitem
exercer uma influência considerável, quer nas universidades e grupos de
reflexão; quer nos órgãos de comunicação social; quer nos conselhos de
administração das empresas e das instituições financeiras; quer no aparelho de
Estado; quer no Banco de Portugal.
O domínio exercido durante décadas pelos partidos do “bloco central” – ou
os do chamado “arco da governação” – sobre a sociedade e o Estado é quase
total, e são eles os principais responsáveis pelo lamentável estado a que este
país chegou.
4. Infelizmente, o imobilismo
neoliberal – imposto pelos eurocratas e pelos políticos ao serviço do poder
económico e financeiro – gerou um assustador e indesejável subproduto: uma
cidadania despolitizada, caracterizada pela indiferença e a resignação. O
neoliberalismo tornou-se o principal inimigo de uma genuína democracia
participativa e acabou por instalar progressivamente na sociedade um estado de
excepção permanente e uma economia do medo dominada pelos mercados financeiros.
E é este muro que a esquerda tem de derrubar.
Não podia ser mais negativo o balanço dos quatro anos em que a direita
(des)governou Portugal, recorrendo à mentira compulsiva que caracterizou os
discursos dos seus chefes, à amnésia que estes inocularam na maioria dos seus
apoiantes e à resignação que instilaram em boa parte da população, insistindo
em que não havia alternativa às políticas de austeridade que puseram em
prática.
Por falar em amnésia, vale a pena rematar este texto com uma anedota.
Durante a última campanha eleitoral para a Assembleia da República, o vinho
tinto alentejano servido em Beja no almoço da coligação “Portugal à Frente”
chamava-se, nada mais nada menos do que, “Amnésia”… Fez-me lembrar aquela
anedota do alcoólico que confessa: “Bebo para esquecer”. Um amigo
pergunta-lhe: “Mas esquecer o quê?”. E o alcoólico responde: “Já não
me lembro”…
Cronista
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