Jorge Miguel Bravo
Portugal é um
país intergeracionalmente justo?
O problema da justiça intergeracional é
complexo e, em tese, politicamente controverso mas tal não deve servir para que
os conflitos entre as preocupações e os interesses de diferentes gerações sejam
explorados para fins estritamente políticos.
10 de Julho de 2017
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O que constitui uma sociedade
intergeracionalmente justa? Quais são as responsabilidades, os deveres, as
exigências específicas para uma justiça entre gerações? Em que princípios
normativos se baseia este conceito? Portugal é um país intergeracionalmente justo?
O que pensam os portugueses sobre esta matéria? Estarão eles de acordo quanto à
ambição de ter uma sociedade justa entre gerações e quanto ao que isso
significa em termos de contribuições e benefícios?
Estamos hoje melhor ou pior do que a geração dos nossos pais e avós? Que legado
estamos a deixar aos nossos filhos e netos? O que lhes devemos? Como são
distribuídos os recursos entre gerações? Como podemos tornar Portugal um país
intergeracionalmente mais justo?
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O debate sobre se é legítimo e desejável
exigir sacrifícios à geração actual para salvaguardar as gerações futuras, e
sobre quais são as responsabilidades, os deveres e as exigências específicas de
uma justiça entre gerações tem ocupado, desde há décadas, o pensamento ético e
político. Trata-se de um debate marcado por diferentes correntes de pensamento.
Entre elas encontra-se, desde logo, o argumento de que cada pessoa tem a
obrigação de devolver aos outros aquilo de que ela própria beneficiou, se tiver
naturalmente condições de o fazer, ou o princípio segundo o qual a satisfação
das necessidades da geração actual não pode por em causa a possibilidade das
futuras gerações fazerem o mesmo. Outras correntes sustentam a noção de que
todas as gerações beneficiam do contrato intergeracional, de que existem
vantagens mútuas em cooperar. O utilitarismo justifica a existência de
sacrifícios em nome de um bem maior comum. O
princípio da "poupança justa" de John Rawls estipula que cada geração
que receba um legado das predecessoras deve racionalmente contribuir com a sua
parcela para as que se lhe sucederão, através da realização de investimentos,
por exemplo, na educação, na ciência ou na cultura.
Um leque amplo e diversificado de
preocupações são correntemente subsumidas sob a rubrica da justiça intergeracional.
Entre elas incluem-se as
prestações sociais (sobretudo as pensões), a dívida pública, o investimento
público, a habitação, o mercado de trabalho, a degradação ambiental e o consumo de recursos naturais
ou o acesso à educação e saúde. Para os cidadãos e para os decisores
políticos a grande questão que se coloca é a de saber em que medida se encaixam
estas diferentes concepções ético-políticas sobre justiça entre gerações na
ambição de alcançar, de forma sustentada, uma sociedade próspera, equitativa e
solidária.
Nos últimos anos cresceu, na sociedade
portuguesa, a percepção de que em muitos domínios determinantes do bem-estar,
da qualidade de vida, da coesão social e da igualdade de oportunidades (e.g.,
educação, saúde, mercado de trabalho, salários e pensões, segurança,
preservação do ambiente, igualdade de género) pode ter ocorrido um retrocesso social.
Em simultâneo, engrossou o interesse
pela identificação dos factores que podem, no presente, contribuir para moldar
os níveis de bem-estar futuros, e sobre a forma como as escolhas (públicas e
privadas, individuais e colectivas) que fazemos hoje afectam as opções
disponíveis para as gerações futuras. Nalgumas matérias como sejam, por
exemplo, as que se referem aos encargos presentes e futuros com os sistemas
públicos de protecção social e de saúde, acentuou-se o debate público sobre a
existência de condições objectivas que assegurem a sua sustentabilidade
económica, demográfica e financeira, e aumentaram as vozes que reclamam a
inevitabilidade de um reajuste no contrato intergeracional implícito, no
sentido de o tornar mais equitativo entre gerações.
Num estudo pioneiro que coordenei
recentemente na Universidade Nova de Lisboa (NOVA IMS), realizado para a
Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) e que será apresentado publicamente
nos próximos meses, efectuámos pela primeira vez em Portugal uma tentativa de
identificar quais as responsabilidades, quais os deveres e quais os requisitos
específicos que uma sociedade intergeracionalmente justa deve cumprir. O estudo
analisa o tema da justiça intergeracional a partir de dois planos distintos. No plano subjectivo, o estudo procura
conhecer, com recurso a um inquérito de opinião e uma amostra representativa,
quais são as percepções, as atitudes e as orientações normativas da sociedade
portuguesa em relação à noção de uma sociedade justiça entre gerações, em
relação aos problemas e conflitos suscitados pela transferência de recursos
(públicos e privados) entre gerações e relativamente às desigualdades e injustiças
na distribuição dos recursos em domínios como a educação, o mercado de
trabalho, o rendimento e a riqueza, a habitação ou as prestações sociais.
No
plano objectivo, o estudo define, conceptual e
metodologicamente, um novo Índice Compósito de Justiça Intergeracional e
calcula o seu valor para o período entre 1995 e 2015. O índice assenta numa
definição de justiça intergeracional segundo a qual "uma sociedade justa entre gerações é uma sociedade que é capaz, de
forma coesa, equitativa e com igualdade de oportunidades, satisfazer as
necessidades e expectativas da presente geração sem comprometer a capacidade
das futuras gerações poderem vir a fazer o mesmo e a alcançarem, pelo menos, um
nível de bem-estar tão elevado quanto o usufruído pelas actuais gerações".
O estudo avalia a performance do país em
quatro grandes dimensões da justiça intergeracional:
a. Satisfação das necessidades, bem-estar e qualidade de vida;
b. Coesão social e igualdade de oportunidades;
c. Preservação e investimento nos recursos (humanos, naturais, económicos,
sociais);
d. Sustentabilidade económica e financeira do país, em particular no domínio
das finanças públicas, do equilíbrio externo, dos sistemas de pensões, do
endividamento do sector privado.
Entre as múltiplas conclusões que foi
possível retirar a partir dos resultados do inquérito de opinião, destaco os
seguintes:
·
Os portugueses concordam com a noção de
que uma sociedade justa em sentido lato deve recompensar, de forma
diferenciada, aqueles que, através do seu trabalho, da sua capacidade e do seu
mérito apresentam melhores desempenhos, mas atender igualmente à satisfação das
necessidades dos mais carenciados;
·
A ideia genérica de reciprocidade entre
gerações materializada, por exemplo, na noção de que devemos deixar às gerações
seguintes pelo menos o equivalente ao que recebemos das gerações precedentes,
encontra-se bastante enraizada na população portuguesa;
·
a rejeição inequívoca das políticas
públicas e privadas que comprometem inexoravelmente a capacidade das gerações
futuras poderem satisfazer as suas necessidades de bem-estar, em particular o aumento
irresponsável dos níveis de dívida pública;
·
a existência de uma forte percepção de
desigualdade na distribuição do rendimento e da riqueza em Portugal, em
particular entre os grupos sociais mais desfavorecidos;
·
a percepção de que o actual sistema de
pensões é iníquo e injusto entre gerações e vai proporcionar à próxima geração
de pensionistas piores condições materiais de vida;
·
uma forte percepção de iniquidade na
relação entre aquilo que os portugueses pagam e o que recebem nas trocas sociais;
·
a percepção de que existe hoje maior
igualdade de oportunidades no acesso à educação e à saúde, mas maior
dificuldade no acesso à habitação e ao mercado de trabalho;
·
jovens
e menos jovens consideram-se insuficientemente representados pelos partidos políticos,
pelos órgãos democráticos e pelas organizações sindicais no processo e na
decisão sobre as principais matérias que lhes dizem respeito;
·
Uma forte percepção de que a classe
social e as relações familiares são determinantes na mobilidade social ao longo
do ciclo de vida.
O problema da justiça intergeracional é
complexo e, em tese, politicamente controverso mas tal não deve servir para que
os conflitos entre as preocupações e os interesses de diferentes gerações sejam
explorados para fins estritamente políticos. Em vez disso, urge encontrar
medidas precisas e objectivas dos desequilíbrios existentes na afectação e
distribuição dos recursos no presente, e na preservação e investimento nos
recursos que sustentarão o bem-estar das futuras gerações. Só assim estaremos
em condições de acabar com injustiças efectivas e percebidas e de contribuir
para um Portugal intergeracionalmente mais justo.
Economista,
Professor na NOVA IMS - Universidade Nova de Lisboa e membro da direcção da
Cidadania Social
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