Pós-democracia
Os constrangimentos democráticos
precisam de ser “descartados” para que o capitalismo prossiga o seu avanço e
dominação global.
26 de Dezembro de 2017, 7:47
José Pereira da Costa
o
PUB
O
conceito de pós-democracia, tal como o vamos desenvolver adiante, parece ter
partido do sociólogo Colin Crouch, (n. 1944), professor em Inglaterra na
Universidade de Warwick, no seu livro Coping with Post-Democracy, publicado em 2000.
PUB
Trata-se
da constatação de que, com a globalização, muitas das decisões tomadas, na
política como na economia, são-no a nível global, nos foros internacionais, de
que a maior parte das pessoas estão arredadas. Daí uma clara falta de interesse
pela política e consequente abandono da participação nos actos eleitorais,
principalmente nos países desenvolvidos, onde raramente as abstenções são
abaixo dos 50%.
Aqui,
apontar-se-ia de imediato a União Europeia como uma das causas para o
alheamento referido. Mas o mesmo acontece noutras regiões como nos Estados
Unidos e Japão, onde as instituições políticas são de outro tipo. Porém, o que
Colin Crouch esclareceu foi que nessas sociedades as instituições democráticas
existem, mas são meramente formais, uma vez que as decisões são tomadas por uma
elite que detém o poder político e económico. E isto é evidente desde que o
neoliberalismo se tornou teoria e prática depois da implosão da União Soviética
e dos outros países socialistas.
A
financeirização da vida política e económica, onde tudo é considerado
mercadoria, desde os humanos à arte, é aceite por todos os “especialistas”
destas questões, que aparecem com os seus comentários e alertas sempre a
invocar o imperativo do lucro das grandes empresas. Dois casos recentes em
Portugal são elucidativos. Quando o governo de Passos Coelho ficou na posse de
85 quadros de Miró, que pertenciam ao BPN, logo se disponibilizou para os
leiloar a um preço avaliado em 36 milhões de euros, seguramente para agradar à troika
e às instituições que tinham o governo sob tutela. Muito se devem ter
impressionado alguns elementos dessas instituições pelo menosprezo demonstrado
por uma colecção de arte ímpar, a troco da redução de uma parcela ínfima da
dívida portuguesa.
Outro
caso da actualidade é o da Autoeuropa, cujo contexto conheço relativamente bem,
não só porque trabalhei na indústria automóvel durante 18 anos, repartidos pela
General Motors e a Renault Portuguesa, antes de ir para Bruxelas, como tenho
uma filha que pertenceu aos quadros da empresa durante dez anos, dois dos quais
na sede da VW, em Wolfsburg, que tive ocasião de visitar. A facilidade com que
se acusam os dois partidos de esquerda, que apoiam o Governo, de destabilização
é só uma prova de ignorância sobre o que é a vida social e laboral numa grande
empresa. Como dizia alguém recentemente, todos os que têm menos de 50 anos são
uns ignorantes. Não queria ir tão longe porque é preciso notar que mesmo muitos
que não sofreram da desmemorização em curso, no que toca à história política e
económica dos últimos 200 anos, aproveitam-se para propalar e aumentar, de
má-fé, essa ignorância.
Mas
voltando a Colin Crouch e às suas conclusões de que vivemos numa era de
pós-democracia, em que as elites políticas, económicas e financeiras estão
combinadas para, sob a palavra de ordem de competitividade das empresas e dos
países, tomarem as decisões que só a elas beneficiam, deixando aqueles que são
os verdadeiros produtores incapazes de reagir, verifica-se que, quando há uma
reacção, como aquela que aconteceu dos trabalhadores da Autoeuropa, aparecem
logo as ameaças e os tais “especialistas” a propor o acatamento das decisões da
direcção da empresa. Neste caso, injustas e atentatórias dos direitos mais
básicos de quem trabalha. Esquecendo-se dos milhares de conflitos como este que
aconteceram ao longo de muitas décadas na indústria automóvel, para já não
falar da raridade de situações como esta na maior parte das fábricas da
Volkswagen, onde as remunerações, as regalias e as condições de trabalho são
muito superiores às que existem em Palmela.
Um
outro “esquecimento” dos direitos humanos, que estão sempre a ser exigidos aos
países que não pertencem ao bloco ocidental, diz respeito ao tratamento da
crise dos refugiados, resultante das guerras que este mesmo bloco ocidental
desencadeou em regiões onde outrora foi rei e senhor e pretende continuar a
mandar. Uma verdadeira “trapalhada”, mas onde estão a morrer milhares de seres
humanos. Que se assemelha ao tratamento da crise financeira e social iniciada
há dez anos em que os gregos (e muitos portugueses) foram deixados a pão e
água, em contraste com os biliões utilizados para salvar os interesses
financeiros dos accionistas dos bancos.
Outro
exemplo recente é o da “caça ao negro” nos Estados Unidos, principalmente
durante o segundo mandato de Obama, poupado a um expectável atentado dos
racistas e defensores da supremacia branca, mas compensado com o tiro ao alvo
indiscriminado da polícia, não só nos Estados do sul, sobre qualquer cidadão
negro considerado “suspeito”, sendo que o direito a transporte de uma arma,
concedido pela Constituição a todos os americanos, não inclui estes cidadãos.
Por
fim, enquanto pesquisava sobre o tema da pós-democracia, encontrei onde menos
esperava, no Brasil, um artigo muito bem elaborado e uma entrevista do juiz de
direito do Rio de Janeiro Rubens Casara, incidindo numa perspectiva diferente
de Crouch, a de um jurista. Nomeadamente na revista Justificando, Casara complementa a definição daquele, de que o
funcionamento das instituições democráticas é uma mera formalidade, afirmando
que o Estado, do “ponto de vista político apresenta-se como um mero instrumento
de manutenção da ordem, controle das populações indesejadas e manutenção ou
ampliação das condições de acumulação de capital e geração de lucros”. Num
contexto muito diferente da Europa, Estados Unidos ou Japão, a situação social
no Brasil, de milhões e milhões de sub-cidadãos a viverem nas favelas das
grandes cidades, implica a manutenção de uma força da ordem militarizada para
impedir qualquer acto de rebelião contra essa injustiça flagrante que resulta
directamente da escravidão. (Que, como Casara refere, conviveu com o Estado
“liberal”). É o que se passou também nos sistemas coloniais como o português,
bem demonstrado nos programas que Fernando Rosas fez para a RTP2, no apartheid da África do Sul ou na ocupação de Israel na
Palestina, no pouco que resta de território deixado aos palestinianos, só para
dar três exemplos.
Rubens
Casara acrescenta que no Brasil hoje existe um Estado pós-democrático “sem
qualquer compromisso com a concretização dos direitos fundamentais, com o
resultado das eleições, com os limites ao exercício do poder ou com a
participação popular na tomada de decisões”. Referindo-se, embora não o
mencionando directamente, ao afastamento de Dilma Rousseff da Presidência, à
perseguição e prisão para interrogatório de Lula da Silva, às escutas
telefónicas e ao condicionamento da liberdade de expressão e de manifestação de
todos aqueles que se opõem ao poder económico, identificado sem pudor com o
poder político, termina dizendo que se trata de uma “justiça moldada ao gosto
da opinião pública”, que como se sabe é controlada pelo poder económico.
Depois, numa entrevista à revista CULT,
Casara afirma que a democracia se tornou um obstáculo ao projecto neoliberal.
Os constrangimentos democráticos precisam de ser “descartados” para que o
capitalismo, concretizado nos interesses das grandes corporações, prossiga o
seu avanço e dominação global. A isto se chama pós-democracia.
Como
dizia um colega mais velho, quando entrei para a General Motors, em Dezembro de
1970, acabado de chegar de uma comissão militar em Moçambique, “pergunta a
minha curiosidade”: e a que distância estamos do fascismo?
Investigador em Relações Internacionais; antigo
funcionário da Comissão Europeia