A bofetada
As eleições catalãs são uma lição contundente sobre os
limites da capacidade condicionadora do Estado.
23 de Dezembro de 2017
Manuel Loff
Em muitos anos não se assistia a um ato de resistência
democrática como o de anteontem na Catalunha. Quem assegurava que "metade
da Catalunha" seguira "o canto das sereias" e "aceitara sem
críticas as mais descaradas falsificações" independentistas (Jorge Almeida
Fernandes, PÚBLICO, 05.11.2017), quem duvidava da representatividade da vontade
catalã de autodeterminação e a descreveu como uma "impressionante vontade
de auto-engano", tem aqui a resposta.As eleições catalãs, mais
participadas (82%) que qualquer outra eleição espanhola em toda a história do
sufrágio universal, são uma lição contundente sobre os limites da capacidade
condicionadora do Estado (executivo, legislativo e judicial), o espanhol e os
dos seus aliados, bem como da chantagem dos mandantes dos interesses económicos
privados articulados com os anteriores. Estas, recordemo-nos, foram as eleições
pedidas pelos partidos unionistas (Cidadãos, PSOE e PP), convocadas por um
Governo central a quem a Constituição não reconhece o direito de as convocar,
depois de o Senado ter decretado a suspensão da autonomia da Catalunha e os
tribunais espanhóis terem ordenado a prisão dos membros do Governo e da Mesa do
Parlamento da Catalunha e processado mais de um milhar de deputados, autarcas,
ativistas, e até mesmo de comandantes da polícia autónoma, um mês depois da
repressão violenta de milhares de cidadãos que pretendiam votar no referendo
convocado para o dia 1 de outubro. Juncker e os governos da UE, advertidos por
Madrid, repetiram que havia que "respeitar a legalidade e a
Constituição" espanholas e calaram-se perante as mesmas ações que levaram
o Conselho da Europa ou o Comité Contra a Tortura da ONU a criticar Madrid. Num
caso, Rajoy superou-se a si mesmo: como o governo letão se mostrara favorável à
realização de um referendo na Catalunha, a Espanha mandou tropas para a
fronteira entre a Letónia e a Rússia para comprar o apoio dos letões, como
confirmou o ex-ministro García Margallo (Publico.es, 18.11.2017). Diga-se,
aliás, que a decisão foi tomada pela ministra espanhola da Defesa que há
semanas se deixou enganar por um comediante russo que, fazendo-se passar por
ministro letão, lhe alimentara o mito da ingerência russa no caso catalão.
Governantes sensatos, estes.Na Catalunha aplicou-se o que se tem tornado o novo
padrão neoliberal da velha política do medo: uma nova vitória independentista
seria a catástrofe económica (quebra de 20% do PIB catalão, desemprego, fuga de
capitais e fim do investimento), a mesma que se profetizou, por exemplo, com a
possibilidade de acordo entre PSOE e Podemos ou, entre nós, com os acordos de
Costa à esquerda. Tudo previsões económicas de grande objetividade. Repetiu-se
vezes sem fim a velha lengalenga das famílias divididas e dos amigos
desavindos, numa curiosa nostalgia dos bons tempos, como os do Franquismo, em
que se não falava de política para evitar problemas, como se de discussão
política se não fizesse toda a democracia. O mais amnésico desta tese é que ela
finge ignorar que foi a polícia espanhola e os ultras que saíram à rua nas
manifestações pela "unidade de Espanha" que trouxeram a violência à
Catalunha, e não os partidários da independência.Estas eleições foram
convocadas para ratificar a "normalidade" constitucional, toda ela
feita de excecionalidade (a primeira vez que um regime autonómico é suspenso
pelo Governo central; eleições realizadas com candidatos na prisão ou no exílio
por motivos políticos, oito dos quais acabaram por ser eleitos deputados). Contra
esta lei de exceção pronunciaram-se não só os independentistas (47,7% dos
votos), mas também os Comuns (a que o Podemos se aliou) (7,5%); a favor dela
uma minoria consistente de unionistas (43,7%), mas que, ao contrário dos que
garantiam haver uma "maioria silenciosa" a favor de manter tudo como
está, continua a não ser maioria alguma.O que vai fazer Rajoy? O que vão fazer
aquele rei, os tribunais, a polícia espanhola? Puigdemont, que, como tudo
indica, voltará a ser eleito presidente da Generalitat, retomou a única
estratégia possível: a da negociação. Quando ele voltar para tomar posse do
cargo, o que fará Rajoy: mandar prendê-lo? Tudo indica que sim: aproveitando o
final do processo eleitoral, o Supremo Tribunal acaba de processar por
"rebelião e sedição" mais seis dirigentes dos três partidos
independentistas. A "normalidade" constitucional parece que
continuará a ser esta. A democracia, essa, é que fica à espera.
Historiador
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