Algumas observações sobre o tema.
MC
Partidos têm
dado pouca relevância à ética
Acusações ao ex-primeiro-ministro podem ser uma oportunidade para afirmar
novos critérios de vigilância e apertar as malhas das incompatibilidades.
3 de Dezembro de 2017
O despacho de acusação da Operação
Marquês levanta interrogações sobre a prevenção da sociedade à forma como
os representantes eleitos pelo povo exercem as suas funções. Não é só o
escrutínio das suas acções que está em causa. Em jogo está a forma e
existência, ou não, de filtros no recrutamento partidário. Três especialistas
analisam a questão e apontam caminhos.
“Os partidos têm dado pouco relevância à
ética”, considera Luís de Sousa, investigador do Instituto de Ciências Sociais
(ICS), doutorado por Florença com uma tese sobre políticas públicas de combate
à corrupção e antigo presidente da TIAC – Transparência e Integridade,
Associação Cívica. “Os partidos falam de ética mas não a praticam nem têm
trabalhado nos mecanismos de controlo, apesar de terem um melhor processo de
selecção e comissões jurisdicionais”, comenta.
“Na política, devemos falar de uma ética
pública que é um ponto de encontro entre as normas mais gerais e as obrigações
do cidadão”, pontualiza Viriato Soromenho-Marques, catedrático de Filosofia
Social e Política e de História das Ideias na Europa Contemporânea da Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa. Deste modo, Soromenho-Marques baliza a
questão: “A ética pública insere-se na capacidade de verificar se os titulares
de cargos públicos cumprem os seus deveres e exercem os seus poderes, pois a
omissão do poder pode ser tão trágica como o abuso do poder.”
Carlos Jalali, doutorado por Oxford e
professor de Ciência Política na Universidade de Aveiro, insiste na
responsabilidade dos partidos. “Os próprios partidos políticos têm de ter
mecanismos de filtragem no acesso que permita que cheguem ao topo pessoas com
ética”, refere.
“A partir do século XIX há uma mudança
de atitude no mundo ocidental, a política com Auguste Comte passou a ser encarada
como uma espécie de física que tinha pouco a ver com a ética, com um
comportamento prudencial dos actores políticos”, recorda Soromenho-Marques. A
combinação do positivismo com o determinismo histórico marxista, afirma o
catedrático, colocou a política na superestrutura, numa foto fixa que viria a
ser baralhada pelo desenvolvimento económico. “A visão da política passa a não
ser crítica, abrandou a vigilância sobre os decisores e uma análise política
que põe fora o factor humano não é séria”, enumera. “Passámos de uma
legitimação constitucional, do bom comportamento constitucional e ético dos
dirigentes, a uma legitimação dos resultados das políticas económicas”,
sintetiza.
Período de nojo insuficiente
Uma dessas políticas, em crescendo de
afirmação num tempo de crise, é a diplomacia económica. “É uma área muito
porosa, na qual interagem interesses públicos e privados, pode haver
promiscuidade e há a possibilidade de se obterem rendas mediando os interesses
das empresas com as autoridades dos países de acolhimento, o decisor político
pode então passar à qualidade de broker, obtendo comissões ilícitas ”,
observa Luís de Sousa. “Estes riscos devem ser mitigados pela forma como são
estruturadas as missões da diplomacia económica com a chancela do primeiro-ministro
ou do Presidente da República”, recomenda o investigador do ICS.
“A diplomacia económica tem ganho
relevância nas acções do Governo, na afirmação externa das empresas
portuguesas, que é algo que a cidadania reclama, mas há fronteiras muito ténues
entre políticas a favor do país e a favor de interesses particulares ou de
grupos”, admite Carlos Jalali. “Se o governante X faz acções a favor do grupo
Y, dizendo que é a favor do interesse nacional, pode haver a sua captura que
leva a favorecer o grupo Y e não o grupo Z”, alerta.
“Por que é que as empresas recrutam
ex-governantes?”, interroga o professor da Universidade de Aveiro. “Um factor é
porque esses ex-governantes são presumivelmente competentes e chegaram ao poder
através de vários filtros, mas há também o seu conhecimento dos interlocutores
e mecanismos das decisões políticas internas e externas que lhes permite
facilidade de contactos”, argumenta. É o encadeado de competência, conhecimento
e rede. “Os cidadãos não avaliam muito a competência, observam essa contratação
pelo conhecimento e pela rede, o que reforça a narrativa da suspeita quando a
predisposição da cidadania já é a suspeita”, assinala Jalali.
“A esfera pública tende mais para os
rituais, perdemos a capacidade de escrutinar os nossos representantes, os que
vão para a esfera pública vão, certamente, com as melhores intenções, mas
vão-se sentir mais livres, menos vigiados, e a possibilidade de abusos de poder
começa a ser maior”, enuncia Viriato Soromenho-Marques. “Na esfera privada há grandes
grupos de poder económico que capturam os nossos representantes, que os passam
a servir”, descreve.
“Temos uma prática de recrutamento de
ministros que vêm do sector privado e que são convidados pela competência
profissional e conhecimento do sector”, recorda Luís de Sousa: “Se a
conflitualidade de interesses não existe no momento do recrutamento, porque tem
de existir depois?”, questiona. Para o antigo presidente da TIAC, os mecanismos
de dissuasão existentes não são suficientes. “O período de nojo de três anos
para os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos para empresas
de um sector por ele tuteladas não é suficiente na duração nem na forma”,
assinala. “Há decisões tomadas e que afectaram um determinado sector económico
que se prolongam no tempo, como as PPP [Parcerias Público-Privadas], algumas
das quais até 20 anos”, explica. “O impedimento ou período de nojo só se
verifica, apenas, nas privatizações, nos casos em que tenham sido beneficiárias
de incentivo financeiro ou fiscal contratualizado, o que é insuficiente”,
refere.
Do exterior vêm exemplos de outro modus
operandi. “No Reino Unido há alguma fiscalização post-employment,
uma verificação a posteriori do trajecto profissional dos cargos
políticos”, invoca o investigador do ICS. “Na Europa, as comissões de ética
criadas no âmbito parlamentar deviam controlar estas questões e terem um papel
com recriminações públicas”, assegura. Contudo, há dificuldades: “Os grandes
partidos não enveredam por este caminho, quem levanta estas questões são os
partidos-tribuna, minoritários, as associações da sociedade civil e os líderes
de opinião.”
“O PS falhou”
Mais comuns são as vias seguidas na
fiscalização. “Basicamente é criar obstáculos, em todos os países tem-se
seguido por duas linhas”, explica Luís de Sousa. “Períodos de nojo à saída do
Governo, a que há também de ponderar períodos de nojo à entrada, tal como para
os reguladores”, destaca. “A segunda linha é que não basta o impedimento, tem
de haver um organismo com legitimidade política que faça a monitorização destas
situações e as divulgue, como acontece com a nomeação dos comissários europeus
que são escrutinados pelo Parlamento Europeu”, recomenda. “O mesmo devia
existir em relação aos ministros e secretários de Estado de cada país”, insiste.
“Hoje em dia, a venalidade dos
representantes é uma doença inserida na prática do sistema democrático, é o seu
calcanhar de Aquiles”, observa Viriato Soromenho-Marques. “A necessidade de
vigilância está na génese do sistema democrático no domínio constitucional,
através da separação clara de poderes e a criação de mecanismos de interacção,
transformando o corpo legislativo num tribunal como acontece nos Estados
Unidos, que leva à remoção de uma pessoa do seu cargo político através de um
processo político”, analisa. De que o expoente máximo é o impeachment.
Da Operação Marquês, o
catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa anota vários falhanços no crivo
democrático. “O Parlamento tem de criar uma comissão de análise do curriculum
dos deputados, é uma questão de segurança dos cidadãos que, quando votam em
alguém, votam, por definição, numa pessoa de bem”, anota.
“A Constituição dá aos partidos o
monopólio de representação para o Parlamento. O PS falhou redondamente, não foi
capaz de analisar o perfil e a informação objectiva de quem foi seu
secretário-geral e candidato à direcção do Governo”, prossegue Soromenho-Marques.
“Falhou quem com ele colaborou, há um colapso moral perante uma personalidade
dominante”, sustenta. “Houve, também, um desarme da sociedade pela forma como a
elite económica colaborou no bloco central dos interesses”, sublinha. “Quando
as instituições funcionam no espirito constitucional, com o Parlamento a
funcionar rigorosamente, não consideram que quem foi eleito está à margem do
escrutínio”, repara.
Contudo, Viriato Soromenho-Marques
refere que há um antes e depois das acusações ao ex-primeiro-ministro. “O grau
de visibilidade deste assunto deixa-nos numa situação de alarme e prevenção,
não é uma garantia mas uma oportunidade”, assegura. “Isto não pode ser
esquecido, é o espelho da nossa sociedade”, sentencia.
“Hoje, o cidadão é mais exigente”, corrobora
Carlos Jalali. “Temos uma opinião pública mais qualificada na forma como
interpreta estas situações, há sinais de mais exigência da sociedade civil, de
menos âncora nos partidos políticos, para colocar estas questões na agenda
política”, conclui.
Sem comentários:
Enviar um comentário