Pensar a
economia, pensar Portugal, propor pluralismo
O Portugal de hoje começou em 1993, o momento simbólico em que terminaram
dois grandes ciclos de crescimento muito semelhantes.
19 de Março
de 2018
José Reis
Nos
últimos anos, sob o ambiente de chumbo da austeridade, o debate económico
popularizou-se. Mas não é certo que se tenha democratizado. As visões
apressadas, a busca de uma sentença singela ou a ansiedade de encontrar um
culpado roubaram espaço às atitudes serenas, à apreciação das continuidades,
das roturas e do lastro estrutural da nossa vida material, isto é, da sua
complexidade. Usou-se pouca informação e estudou-se pouco. Ao mesmo tempo,
predominou a noção de que a economia é plana e descarnada, funcionando através
de mecanismos abstratos e de poderes teleológicos (“os mercados”), quando na
verdade o que mais conta são deliberações concretas tomadas por instituições
onde intervêm atores poderosos e se definem normas e regras, tanto jurídicas
como políticas. Quer dizer, onde se estabelecem formas de economia política. É
isso, aliás, que define os contextos em que umas economias evoluem e consolidam
ou alteram a sua condição face a outras. O surgimento e afirmação de novas
gerações de economistas e outros cientistas sociais que revigoram o debate
contrariou significativamente esta tendência e é a melhor razão para que se
insista na ideia de que se pode almejar o pluralismo e propor discussões onde o
tempo, o espaço, as instituições e a compreensão dos contornos da deliberação
política são essenciais. A criação da Associação Portuguesa de Economia
Política, que em janeiro realizou um importante encontro, é prova
disso.
A
atitude detida que sugiro, e que me parece uma condição elementar para que o
debate seja democrático, não prescinde de tentar perceber coisas que vêm de
longe. Por exemplo, que somos um país onde a industrialização moderna só
ocorreu nos anos 1960 e foi extraordinariamente limitada nos seus efeitos
modernizadores porque, na década anterior ao 25 de Abril, quando houve taxas de
crescimento exuberantes, o volume total de emprego não aumentou e o que se
exportou massivamente, sob a forma de emigração, foi força de trabalho. E que,
por isso, só a revolução democrática criou e estabilizou o mais poderoso
mecanismo de inclusão social de que uma economia pode dispor, o que consiste na
inserção das pessoas no emprego e no mercado do trabalho. Assim como não deve
dispensar a compreensão das mudanças radicais a que provavelmente não demos a
devida atenção, como a que se encasulou ao longo da segunda metade da década de
1990, quando se estabeleceram as poderosas regras e normas que dariam forma à
União Económica e Monetária e ao euro, gerando condicionalismos e restrições
apertadas que aprisionaram o crescimento e outras formas de deliberação e desviando
a criação de riqueza da esfera produtiva para outros planos. Coisas bem
diferentes dos “mercados” tão presentes na linguagem comum.
Por
isso, no livro A Economia Portuguesa: Formas de economia política numa
periferia persistente (1960-2017), Almedina, 2018, que acabo de publicar,
digo que “o Portugal de hoje começou em 1993”. Foi esse o momento simbólico em
que terminaram dois grandes ciclos de crescimento económico muito semelhantes,
cada um com cerca de dez anos, o que se seguiu ao 25 de Abril e o que
correspondeu à primeira fase da integração europeia (engana-se quem julgue que
Portugal só cresceu neste último período, basta observar a informação
estatística disponível). Mas aquele ano foi também o momento em que se
desencadeou a formação de um conjunto de circunstâncias económicas e políticas
originais, todas elas a contribuírem para o dado absolutamente novo de um
crescimento anémico, que depois a austeridade transformaria em instabilidade e
retrocesso. Desse caldo fizeram parte coisas vindas de trás, como uma
desindustrialização e uma terciarização excessivas e uma acentuada dependência
expressa na balança comercial, e coisas originais, das quais a mais saliente
foi um intenso processo de endividamento externo, capitaneado pela banca e
possibilitado pela financeirização emergente, isto é, pela facilidade de
circulação de capitais que passou a ter a função de reciclar nas periferias os
excedentes económicos concentrados no centro de uma Europa já profundamente
assimétrica e fraturada. Resistiu ainda a criação de emprego, que só quebraria
dramaticamente no final da primeira década deste
século.
É a soma
destes dois argumentos que nos pode ajudar a perceber como nos dias de hoje se
torna central um punhado de circunstâncias muito difíceis que são a matéria de
uma economia política da recuperação ensaiada desde que se iniciou um novo
ciclo político. Os desequilíbrios presentes na economia portuguesa são enormes.
É essa, aliás, a causa da sua persistente condição periférica, isto é, da sua
dependência, com diferentes formas ao longo dos tempos. Excessos de
desindustrialização e de terciarização, com dinamização das exportações através
de serviços turísticos low cost, concentração em baixos salários e
na precariedade laboral. Custos do trabalho a pesaram pouco e cada vez menos no
valor da produção. Um domínio poderoso da circulação de capitais financeiros
que captam uma significativa parcela da riqueza criada. Uma dívida pública que
atingiu montantes exorbitantes para cobrir os desmandos de uma banca que
endividou externamente o país e viu a sua dívida reestruturada, ao invés da que
passou a ser pública. Um Estado coartado na sua ação positiva de configurador
da economia e da sociedade porque as restrições financeiras que sob ele
impendem são grandes. E, finalmente, um território deslaçado, fruto de um
modelo de crescimento unipolar, centrado em Lisboa e assente na redução
comparativa do valor do trabalho. É por isso que os termos verdadeiramente
estruturais de uma recuperação são exigentes. Têm de atender ao sistema
produtivo e à qualificação das nossas atividades, dando relevo às industriais.
Não podem ignorar a enorme punção de valor que a dívida origina. Obrigam a
compreender a natureza dos movimentos da financeirização. Implicam um Estado
capaz e ativo, e não meramente criador de mercados privados, como muitos
desejam. Compelem a que olhemos para o país inteiro sabendo que precisamos de
um sistema urbano nacional robusto, que ajude a reconstituir os territórios
fragilizados. Cada um destes termos são possíveis de detalhar e de debater com
a serenidade de quem se preocupe mesmo com a vida material do país e das
pessoas e com a sua natureza estrutural. Pode ser que volte a alguns
deles. Autor do livro A Economia Portuguesa: Formas de economia
política numa periferia persistente (1960-2017), Almedina, 2018
O autor
escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
Professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra;
investigador do Centro de Estudos Sociais
Sem comentários:
Enviar um comentário