MC
Portugal um alvo
estratégico da extrema-direita
Da perspectiva da extrema-direita internacional, Portugal representa o elo
fraco por onde ela pode atacar a União Europeia.
11 de Agosto
de 2019
Boaventura
Sousa Santos
Vários acontecimentos recentes têm vindo a revelar
sinais cada vez mais perturbadores de que o internacionalismo de
extrema-direita está a transformar Portugal num alvo estratégico. Entre eles,
saliento a tentativa recente de alguns intelectuais de jogar a cartada do ódio
racial para testar as divisões da direita e da esquerda e assim
influenciar a agenda política, a reunião internacional de partidos de
extrema-direita em Lisboa e a simultânea greve do recém-criado Sindicato Nacional de
Motoristas de Matérias Perigosas.
Várias razões militam a esse respeito. Portugal é o
único país da Europa com um governo de esquerda numa legislatura completa e em
que se aproxima um processo eleitoral, e é o único onde não tem presença
parlamentar nenhum partido de extrema-direita. Será Portugal assim tão
importante para merecer esta atenção estratégica? É importante, sim, porque, da
perspectiva da extrema-direita internacional, Portugal representa o elo fraco
por onde ela pode atacar a União Europeia. O objectivo central é, pois,
destruir a União Europeia e fazer com que a Europa regresse a um continente de
Estados rivais onde os nacionalismos podem florescer e as exclusões
sócio-raciais podem ser mais facilmente manipuláveis no plano político.
Para a extrema-direita internacional, a direita tradicional
desempenha um papel muito limitado neste objectivo, até porque ela foi durante
muito tempo a força motora da União Europeia. Daí que seja tratada com relativo
desprezo, pelo menos até se aproximar, pelo seu próprio esvaziamento
ideológico, da extrema-direita, tal como está a acontecer na Espanha. As forças
de esquerda, ao contrário, são forças a neutralizar. Para a extrema-direita, as
esquerdas ter-se-ão dado conta de que a UE, com todas as suas limitações, que
durante muito tempo foram razão suficiente para algumas dessas esquerdas serem
anti-europeístas, é hoje uma força de resistência contra a onda reaccionária
que avassala o mundo.
Não se pode esperar da UE muito mais do que a defesa
da democracia liberal, mas esta corre mais riscos de morrer democraticamente
sem a UE do que com a UE. E as esquerdas sabem por experiência que serão as
primeiras vítimas de qualquer regime autoritário. Talvez se lembrem de que as
diferenças entre elas sempre pareceram mais importantes quando vistas do
interior das forças de esquerda do que quando vistas pelos seus adversários.
Por mais que socialistas e comunistas se digladiassem no período pós-Primeira
Guerra, Hitler, quando chegou ao poder, não viu entre eles diferenças que
merecessem diferente tratamento. Liquidou-os a todos.
Não é relevante saber se é isto o que as esquerdas
pensam. É isto o que a extrema-direita pensa sobre as esquerdas, e é nessa base
que se move. Quem a move? Movem-na forças nacionais e internacionais. São
várias e com objectivos que só parcialmente se sobrepõem. Para surpresa de
alguns, a política internacional dos EUA é uma delas. Os EUA são hoje um
defensor muito condicional da democracia, pois só a defendem na medida em que
ela é funcional aos interesses das empresas multinacionais norte-americanas. A
razão principal é a rivalidade entre os EUA e China que está a condicionar
profundamente a política internacional. O confronto entre dois impérios, um
decadente e outro ascendente, exige o alinhamento incondicional dos países
aliados de cada um deles ou na sua zona de influência. A Europa fragmentada
será um conjunto de países ou facilmente pressionáveis ou irrelevantes (a
Alemanha é o único que exige atenção especial).
Mais do que nunca, são os interesses económicos que
dominam a diplomacia. Assim, segundo a BBC
de 9 de Agosto, os tweets em chinês do Presidente
Trump têm mais de 100.000 seguidores entre os dissidentes
chineses que consideram o Presidente norte-americano um defensor dos direitos
humanos. E certamente o será no contexto da China e porque isso serve os
interesses da guerra com a China. Não é por acaso que a China está a culpar os
EUA pela onda de protestos em Hong Kong. Mas Trump já não é credivelmente um
defensor dos direitos humanos ante os venezuelanos sujeitos a um embargo cruel
e devastador que a própria ONU considera uma violação grosseira dos direitos
humanos.
A extrema-direita conta com três instrumentos
fundamentais: aproveitamento da contestação social contra medidas de governos
considerados hostis, exploração de idiotas úteis e, no caso de governos mais à
esquerda, maximização das dificuldades de governação decorrentes das coligações
existentes. Do primeiro caso, talvez sirva de ilustração a greve do Sindicato
de Motoristas de Matérias Perigosas. Este tipo de greve pode ter efeitos tão
graves que desmoralizem qualquer governo. Tradicionalmente os sindicatos sabem
disso, negoceiam forte e ao mesmo tempo sabem até onde podem ir para não pôr em
causa interesses vitais dos cidadãos. Não é isto o que tem ocorrido com este
sindicato. É altamente suspeita a linguagem radicalizadora do vice-presidente do sindicato (“deixou de ser um direito laboral para ser uma questão de honra”),
uma personagem aparentemente arvorada em anjo protector de sindicalistas
descontentes. A história nunca se repete mas obriga-nos a pensar. O governo
democrático socialista de Salvador Allende, hostilizado pelas elites locais e
pelos EUA, sofreu a sua crise final depois das greves de sindicatos de
motoristas de combustíveis, precisamente devido à paralisação do país e à
imagem de ingovernabilidade que reflectia. Soube-se anos depois que a CIA
norte-americana tinha estado bastante activa por detrás das greves.
Os idiotas úteis são aqueles que, com as melhores
intenções, jogam o jogo da extrema-direita, embora nada tenham a ver com ela.
Cito dois. Quando foi da primeira greve do sindicato referido, alguns
ingénuos sociólogos apressaram-se a dissertar sobre o novo tipo de sindicalismo não
ideológico, exclusivamente centrado nos interesses dos
trabalhadores. O contraste implícito era com a CGTP, essa sim considerada
ideológica e ao serviço de obscuros interesses antidemocráticos. Se lessem um
pouco mais sobre os movimentos sindicais do passado, saberiam que, em muitos
contextos, a proclamação da ausência de ideologia política foi a melhor arma
para introduzir a ideologia política contrária. Mas os idiotas úteis podem
sair donde menos se espera. Um sindicalista que até há pouco muito
admirei, Mário Nogueira, comportou-se a certa altura como idiota útil ao transformar as
reivindicações dos professores motivo legítimo para fazer demitir o governo de
esquerda apoiado pelo partido a que pertence. Este radicalismo, que confunde a
árvore com a floresta, serve objectivamente os interesses desestabilizadores da
extrema-direita.
Finalmente, a extrema-direita sabe aproveitar-se de
todas as divisões entre as forças de esquerda, sabe ampliá-las e sabe usar as
redes sociais para criar duas ilusões a partir de meias verdades. A primeira é
que a maioria dos militantes e de anteriores dirigentes do Partido Socialista
são de opinião que o PS sempre se deu melhor com alianças com a direita (o que
é falso), não gosta do radicalismo de esquerda (que nunca definem) e que, de
todo o modo, livres das esquerdas à sua esquerda, facilmente terão maioria
absoluta (o que é improvável). A segunda é que recíprocas fracturas existem nos
outros partidos de esquerda, ansiosos por regressar aos seus cantos de oposição
e cansados de fazer concessões (o que em parte é verdade).
As forças de esquerda em Portugal têm vindo a dar
testemunho de um notável bom senso que dificulta as manobras da
extrema-direita. Se seguirão neste caminho ou se se renderão às pressões
internas e externas é uma questão em aberto.
Director Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Medo da
estupidez
Li hoje “Portugal, um alvo estratégico da extrema-direita”, de Boaventura
Sousa Santos. Quem não perceber isto não percebe nada. Não é só pena que tenho
de quem não percebe: é medo.
Miguel Esteves Cardoso
12 de Agosto
de 2019
Sempre admirei Boaventura Sousa Santos. Admiro-o porque é uma pessoa inteligentíssima que se ganha muito em ler.
Admiro-o porque a maneira de pensar e de escrever dele enriquecem-me, poupam-me
tempo, levam-me onde eu jamais seria capaz de chegar sozinho.
Adérito Sedas Nunes, o também inteligentíssimo criador
do Instituto de Ciências Sociais que me apadrinhou mal acabei o meu
doutoramento, também era um admirador de Boaventura Sousa Santos.
Porquê? Porque é uma pessoa que vale a pena conhecer.
É um juízo utilitário até. É de esquerda? É. Mas ele ser de esquerda faz-me
pensar que, se calhar, é melhor (mais justo, menos egoísta, mais generoso)
ser-se de esquerda.
O que eu nunca penso – porque seria estúpido pensar
assim de Chomsky ou Oakeshott – é que ele é um pensador interessante “apesar”
de ser de esquerda ou de direita.
Eu considero-me um democrata liberal da escola de John
Stuart Mill e, se puder escolher outro autor, de David Hume. Li, durante muitos
anos, os filósofos mais recomendados, de direita e de esquerda, e foram estes
com que mais engracei. Caso me permitissem um terceiro e um quarto seriam
Platão e Rousseau. Aqui se vê que a minha costela liberal não equivale a um
esqueleto inteiro.
Li hoje “Portugal, um alvo estratégico da
extrema-direita”. A análise é preclara e perfeita. Boaventura Sousa
Santos é um dos grandes defensores da democracia que ele (justamente) critica
por ser fraca, pobre e mentirosa.
Quem não perceber isto não percebe nada. Não é só pena
que tenho de quem não percebe: é medo.
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