Um novo sistema
de valores
A ideia que não existe racismo só me faz lembrar uma célebre sondagem de
opinião no Brasil, em 1988, na qual 97% dos inquiridos respondeu não ter
preconceitos de raça, mas 99% declarou que conhecia racistas entre familiares e
amigos...
16 de Junho
de 2020 Francisco Bethencourt
As manifestações anti-racistas surgidas em todo o
mundo como reação ao assassinato gratuito de George Floyd por um polícia branco norte-americano podem indiciar uma mudança no
sistema de valores, não só quanto a referências, mas também quanto a práticas
concretas.
Poder-se-ia dizer que este movimento pelos direitos
dos negros norte-americanos, vitimizados por táticas brutais da polícia desde a
emancipação falhada do final da Guerra Civil em 1866, está na linha de vários
protestos, desde o início do século XX, contra permanente abuso e linchamento,
ate ao movimento dos anos 60, que finalmente abriu caminho aos direitos civis,
com largos custos, como o assassinato de Martin Luther King, Jr.
Contudo, há algumas diferenças radicais em relação a
protestos anteriores. Os movimentos racistas e supremacistas brancos estão em
declínio; até aos anos 60 eram eles que assaltavam bairros negros e originavam
os protestos. As pilhagens que se verificaram agora nalguns protestos,
prejudiciais ao movimento anti-racista, têm sido condenadas, mas não os
protestos em si. Nestes protestos vêem-se muitos brancos e asiáticos, ao
contrário do que acontecia até aos anos 60. Finalmente, este movimento social tem-se espalhado a outros países, onde o legado colonial é visível nos locais de memória, na topografia e
nos monumentos.
Há duas novidades que mostram a mudança rápida de
opinião. Em primeiro lugar, o ajoelhar durante o hino nacional como protesto
contra a discriminação racial, iniciado em 2016 no desporto, rapidamente
condenado e banido, é agora autorizado, ao mesmo tempo que se vêem polícias
brancos a ajoelhar em solidariedade com os protestos. Esta nova atitude
estende-se a tradicionais corridas de automóveis organizadas no sul dos Estados
Unidos sob a bandeira da Confederação, agora banida. Em segundo lugar, as autoridades locais, que durante
décadas bloquearam qualquer discussão sobre estátuas controversas, consideram
agora a sua transferência para museus.
A vandalização e destruição de estátuas podem ser
contraprodutivas, dado o enraizamento de figuras do passado na memória
coletiva. Ainda se está para ver as consequências políticas de todo este
movimento, por exemplo, ao nível das eleições para a presidência americana em
novembro. Contudo, Trump foi colocado na defensiva, é visível a
perda de iniciativa depois de uma primeira tentativa militarista falhada por
recusa das chefias militares e governadores de Estados. A verdade é que
movimentos iconoclastas fazem parte da história, envolvendo a religião
hebraica, o Islão e um breve período da Igreja Ortodoxa Grega, a reforma
Protestante com exclusão de imagens em diversas regiões da Europa, a revolução
francesa com o esvaziamento de igrejas, enquanto o pós-guerra, a descolonização
e o pós-comunismo geraram natural substituição de estátuas públicas com sentido
político.
Haverá um conflito de memória entre diferentes grupos
sociais com interesses políticos opostos, mas na minha opinião estamos num
ponto de viragem. A noção de direitos humanos, baseada na dignidade de todos os
seres humanos onde quer que eles vivam e qualquer que seja a sua origem e
religião, tende a prevalecer. Não se trata já da noção abstrata de Rousseau,
que tanto influenciou a declaração dos direitos humanos proclamada pela revolução
francesa, mas só se referia a brancos, ou a declaração de independência dos
Estados Unidos, que retirou a referência ao esclavagismo dados os interesses
dos estados do sul. Trata-se agora de uma atualização, na prática, da declaração universal dos direitos humanos aprovada pelas Nações Unidas em 1948.
Já nessa altura, o debate em torno dos direitos do
indivíduo face ao Estado, considerado por Samuel Moyn como pedra angular,
abriu-se aos direitos económicos e sociais. A meu ver, a posição de Moyn é
limitada, os direitos humanos devem ser entendidos na sua complexidade. O
respeito pelas minorias e a rejeição do racismo estão ali inscritos dado o
genocídio dos judeus na II Guerra Mundial. Mas o que as últimas décadas
trouxeram de novo foi um impulso coletivo para a concretização, na prática,
desses princípios, ao nível do acesso a residência, emprego, educação, formas
de mobilidade social que permitam quebrar a espiral de pobreza em que minorias
e classes sociais estão encerradas.
Entretanto, os direitos das comunidades indígenas e os
direitos do ambiente e dos animais têm-se afirmado, apesar dos recuos
dramáticos em certos países, sobretudo no Brasil, onde a
capacidade destrutiva do governo de extrema-direita podia ter ido ainda mais
longe sem a resistência de instituições estaduais e federais. Esses direitos
definem novas formas de solidariedade e de responsabilidade por uma relação
equilibrada com o planeta onde vivemos e do qual dependemos. Mas há mais, o
respeito pelas minorias de orientação sexual alternativa enraíza-se em muitos
países, enquanto o respeito pelos direitos dos consumidores e pelos direitos
dos trabalhadores, inclusive nos países em vias de desenvolvimento, se torna
cada vez mais sensível. As empresas envolvidas em práticas de exploração de
salários baixíssimos, ou de produção abaixo dos padrões mínimos de qualidade,
arriscam processos de boicote que podem custar a quebra na bolsa ou a simples
bancarrota.
O novo sistema de valores envolve uma nova ética de
respeito pelas pessoas e pela natureza. O sistema económico capitalista
baseia-se no lucro, mas os dias da sobreexploração de pessoas e recursos podem
estar contados dada a tomada de consciência dos direitos humanos e ambientais.
Os efeitos da globalização, como já tinha previsto Norbert Elias, poderão
incluir a difusão desses direitos renovados e readaptados, com novos códigos de
conduta a vários níveis, empresarial, organizacional, estatal. O
desenvolvimento da economia social, com favorecimento de cooperativas, é uma
opção que deve ser tida em conta neste novo período de ética social. A reforma
do sistema, prometida por Elizabeth Warren, pode ser imposta simplesmente pela extraordinária crise atual, é uma
ilusão pensar que tudo voltará ao que era.
Uma última palavra sobre Portugal: a ideia de que não existe racismo só me faz lembrar uma célebre sondagem de opinião no Brasil, em 1988,
no centenário da abolição da escravatura, na qual 97% dos inquiridos respondeu
não ter preconceitos de raça, mas 99% declarou que conhecia racistas entre
familiares e amigos... O Brasil não é comparável, mas existem numerosos estudos
da equipa de Jorge Vala desde 1995, bem como as sondagens regulares do
Eurobarómetro, que mostram a existência de um racismo consistente, com
preconceitos biológicos e culturais, no nosso país. Os dados disponíveis não
colocam Portugal no grupo dos países europeus mais inclusivos. Temos claramente
um problema educativo, que o negacionismo de parte da classe política
certamente não ajuda a resolver.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Professor no King's College de Londres