O Ocidente face
ao Coronavírus 2: arrogância e decadência
O contexto é apenas um: o de Estados que confinaram os cidadãos a larga
escala – com excepção dos das “actividades essenciais para a economia”, que
enviaram para o labor de mãos nuas, expondo-os a uma contaminação certa e a uma
morte provável – por que se despojaram dos meios necessários para os proteger.
19 de Maio de 2020 Cristina Semblano
Enquanto os mortos da pandemia se contam aos milhares por dia nos países ocidentais e, nomeadamente, na
Europa e nos Estados Unidos, comentadores e medias mainstream entretêm-nos dias afora com as mentiras
da China que demorou tempo a revelar o novo
vírus (o que é certamente verdade),
favorecendo a sua propagação. Os mesmos entretêm-nos com o problema dos números
falsos comunicados pela China e, cereja no topo do bolo, falam-nos, com ou sem
reportagens a corroborá-lo, no autoritarismo do regime para combater a
epidemia.
Não sendo, de forma alguma, defensora do
regime chinês – como, aliás, de qualquer regime
autoritário –, não deixo, todavia, de interpretar esta avalanche de comentários
e análises dos responsáveis das nossas democracias liberais como uma tentativa para esconder a sua própria incúria, não só
face à antecipação de uma situação deste tipo, perfeitamente previsível – não
fora o SARS-CoV-1 na China em 2002-2004 [1], o MERS-CoV [2] na
Península Arábica em 2012, e os alertas regulares dos epidemiologistas –, mas
também à sua gestão, caótica, irresponsável e opaca.
Em vez de nos preocuparmos com o atraso
do governo chinês em comunicar sobre a pandemia (há tempo para, em seu tempo, o
fazer), deveríamos interrogar-nos sobre as razões pelas quais, tendo esta sido
declarada em finais de Dezembro, na China, não nos antecipámos para lhe fazer
frente, chegando ao cúmulo de sustentar – como a então ministra francesa da
Saúde, Agnès Buzyn, em 23 de Janeiro – que o risco de propagação do vírus
em França era quase nulo, já que as autoridades chinesas o estavam a conter em
Wuhan...
Para além da falta de antecipação dos
riscos de pandemia – em geral – e desta – uma vez declarada – em
particular, haveria que olhar com modéstia para o que estava a ser feito na
China – berço da pandemia – e nos países limítrofes – Coreia do Sul,
Taiwan, Singapura... – para a conter, e a jugular. É que os chineses são, com
os sauditas, os grandes especialistas mundiais de coronavírus, por um lado; por
outro, tinham um relativo avanço em relação a nós, pelo que a China nos poderia
ter servido, de alguma forma, de laboratório...
Mas uma tal postura era impossível de
assumir. O Ocidente desenvolvido revelou-se – com a rara excepção, na Europa,
da mercantilista e predadora Alemanha [3] – “sub-desenvolvido” para fazer
face à crise sanitária, com um défice abissal do mínimo sindical em matéria de
máscaras, luvas, batas, toucas, testes, respiradores e profissionais de saúde,
resultado de décadas de destruição dos serviços públicos da saúde, da gestão de
hospitais como empresas privadas e da globalização que, em nome da
competitividade, delegou para países terceiros investigação e produção
científica e fabrico de bens essenciais à
soberania sanitária.
Perante um vírus intrusivo, a quem se
abriu de par em par as portas principais de entrada – como se de um
hóspede de honra se tratasse –, com as mãos cheias de nada para proteger as
populações, e fazendo assentar este vazio criminal numa vulgata científica
adaptada às circunstâncias – o uso de máscara é desaconselhável na ausência de
contaminação, a prática de testes a larga escala pode ser
contraprodutiva... –, os governantes dos nossos países viram-se, em
última instância, acossados ao confinamento dos cidadãos – em detrimento da actividade
económica que sempre privilegiaram, contrariamente, afinal, à
produtivista China [4] –, expondo-se ao risco de uma potencial explosão de
ocorrências no fim do período de isolamento.
Indispensável para conter o risco de
revolta iminente das populações, o confinamento destas últimas – sem
equivalente na história da Humanidade e sem nenhuma outra justificação que não
seja a falta de meios para adoptar as boas práticas – vai constituir um
poderoso instrumento nas mãos dos poderes políticos neoliberais,
permitindo-lhes mudar a responsabilidade de campo, ou seja, transpô-la do plano
colectivo (político), onde efectivamente se encontra, para o plano individual,
segundo o princípio basilar do neoliberalismo. Cada cidadão é doravante
responsável pelo que lhe vier a acontecer, com a agravante de que poderá também
vir a ser responsável, com a sua atitude, pelo que vier a acontecer aos outros.
De culpado e criminoso, o Estado tornou-se zeloso e
protector da população, não hesitando em fazer uso
do seu arsenal preventivo-repressivo para chamar à ordem ou sancionar os
cidadãos prevaricadores, desde os drones a sobrevoar os céus de Itália, Espanha
ou França, para lembrar à população as instruções governamentais decorrentes
dos estados de emergência entretanto adoptados, até à aplicação de coimas e
penas de prisão a cidadãos “culpados de irem apanhar ar”. O Inimigo mudou de
campo. Deixou de ser o Estado austeritário que cortou na saúde para dar às
multinacionais e à finança, a sua impreparação e gestão criminosas, mas o
Outro, o que sai à rua, vizinho, familiar ou desconhecido.
O processo de inversão da
responsabilidade, do campo político para o individual, foi acompanhado pela estratégia do medo, que a própria adopção do estado de confinamento, se bem que parcial e
tardia, contribuiu para forjar – como é que governos que sempre privilegiaram o
Deus-mercado passaram a privilegiar os humanos? –, mas que foi
cientemente ampliada e instrumentalizada, através, nomeadamente, das conhecidas
encenações das conferências de imprensa a contar o número de mortos e de
sobreviventes, de infectados e de suspeitos, de camas e de ventiladores, e a
responsabilizar os comportamentos individuais de forma, não só infantilizante,
como, sobretudo, descontextualizada.
Com efeito, o contexto é apenas
um: o de Estados que confinaram os cidadãos a larga escala – com excepção
dos das “actividades essenciais para a economia”, que enviaram para o labor de mãos nuas, expondo-os a uma contaminação certa e a uma morte provável – por que se
despojaram dos meios necessários para os proteger. É esta causalidade que a
inversão do campo da responsabilidade quis romper, e é ela que não deve falhar
na análise, quando os mesmos Estados vierem apresentar aos trabalhadores que confinaram
compulsivamente, e aos outros, reformados, desempregados e demais precários, a
factura do confinamento.
Resta saber se a estratégia do medo que
acompanhou este último resultará. Mas o que se sabe, para já, é que milhões de
pessoas, anestesiadas, se barricaram, sem revolta aparente, oferecendo ao
espectro dos poderes políticos uma experiência em tamanho natural da
predisposição à submissão voluntária. Ao romper as cadeias da causalidade, e
reduzidos à vida nua (Agamben) [5] num cenário em que o medo do vírus
parece ter mutado em vírus do medo, os livres cidadãos das nossas democracias
liberais parecem mais predispostos do que nunca a aceitar a perpetuação dos
estados de emergência e o confisco duradouro da Vida.
É que, como no-lo lembra Agamben, o que é
preocupante não é tanto, ou, sobretudo, o presente, é o que virá a seguir. “Tal
como as guerras que deixaram em herança à paz uma série de tecnologias
nefastas, do arame farpado às centrais nucleares, também é provável que, após a
urgência sanitária, os governos sejam tentados a levar a cabo experiências que
ainda não tinham conseguido concretizar antes: fechar universidades e escolas,
dispensar aulas através de plataformas, pôr um termo definitivo aos encontros e
às discussões políticas ou culturais, limitar os intercâmbios a mensagens electrónicas
e, sempre que puderem, substituírem por máquinas o contacto – o contágio –
entre os seres humanos.” [6] Será necessário acrescentar: e proceder ao seu
rastreio digital, que a Europa e os Estados Unidos estão a organizar, à imagem
da autoritária China?
[1] Acrónimo inglês de Several Acute Respiratory Syndrome
Coronavirus 1 (Síndrome Respiratório Agudo Severo); o
que designamos por coronavírus 2, no título, ou a OMS por covid-19, tem como
nome científico SARS-CoV-2.
[2] Acrónimo em inglês de Middle East respiratory syndrome-related
coronavirus, ou Síndrome Respiratório do Médio
Oriente.
[3] Com efeito, se a Alemanha, que
confinou mais tarde e desconfinou mais cedo, fica, de muito longe, melhor
na fotografia da gestão da crise sanitária, com menos de 8000 mortos (7861) em
13 de de Maio, contra cerca de 31.000 na Itália (31.106), 27.000 em
França (27.074) e em Espanha (27.321), é, em grande parte, porque goza da
vantagem sanitária e industrial que lhe advém de mecanismos europeus
concebidos para ela: os do mercado único e da moeda única, que vieram
ancorar-se numa indústria previamente (e por razões históricas) mais
desenvolvida e, por conseguinte, mais atractiva para os capitais produtivos, o
que, juntamente com a mão-de-obra barata do seu Hinterland da Europa de Leste, se traduzem numa indústria poderosa e competitiva.
Quanto à margem de manobra orçamental que permite à Alemanha gastar sem olhar
para a despesa para fazer face à crise sanitária, se ela se deve igualmente ao
sub-investimento crónico da Alemanha, tal sub-investimento não afectou o sector
da saúde, devido – como no-lo explica o historiador Johann
Chapoutot (entrevista a Médiapart, 24.04.2020) – à pressão de um
eleitorado de direita composto de reformados detentores de pensões privadas (fundos
de pensões) adepto do défice zero, mas não em detrimento da (sua)
saúde.
[4] Com efeito, se é verdade que a
China tentou, no início, censurar a divulgação do vírus, também não é menos
verdade que a partir de meados de Janeiro adoptou medidas drásticas de
contenção da epidemia, que levaram à paralisia quase total da actividade
económica.
[5] Por “vida nua” entendemos, como o filósofo
italiano Giorgio Agamben (Homo sacer, volume I, O poder soberano e a vida nua, 1997), a politização da vida natural, que é o fundamento do poder soberano e da
sua manutenção, ou seja, a constituição de uma vida que não é apenas natural,
mas considerada na sua relação com o poder e mantida através deste. Para
Agamben, a vida nua é o ponto de ancoragem do poder, ou seja, o que torna
possível o seu exercício. A soberania não se exerce sobre sujeitos de direito,
mas sobre a vida nua, ou seja, sobre uma vida que se encontra exposta à
violência do poder soberano, e que é o fundamento deste poder. A vida nua
resulta de uma decisão soberana que a qualifica e lhe determina o valor.
[6] Chiarimenti (Esclarecimentos),
Quodlibet, 17 de Março, traduzido para português a partir da tradução para
francês de Martin Rueff, “Giorgio Agamben: 'Qu’est-ce donc une société qui ne reconnaît pas
d’autre valeur que la survie?'”; in l’Obs, 27 de Abril de 2020.
Economista; assistente de Economia na Universidade de Paris III-Sorbonne
Nouvelle; autarca na região de Paris
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