Esbanjar ou
saber investir
Do mundo dos media surgem pedidos para ajudas financeiras do Estado.
Mas há que avaliar a pertinência de tais pedidos…
5 de Maio de 2020 J.-M. Nobre-Correia
Nestes tempos de calamidade
sanitária, com as sequelas económicas que se
imaginam, muitas empresas e instituições pedem dinheiro ao Governo. Quer dizer:
ao Estado. Ou melhor: a todos nós. Esperando cada uma que sejam, evidentemente,
os outros a pagar o crédito que lhes será favorecido.
Entre
as suplicantes, a imprensa diária desportiva e a imprensa regional. Ora, no primeiro caso, tal pedido é chocante. Não é esta mesma imprensa que assiste impávida e serena ao escandaloso mercato de jogadores de futebol e de outras modalidades que lembra, mutatis mutandis, os antigos mercados de escravos? Não é ela que recusa denunciar os
valores enormes das transações e os salários gigantescos de olimpianos de que
ajuda a modelar a imagem pública? Não é ela que se “esquece” de se opor à
destruição de estádios para que se construam outros mais faraónicos, nalguns
casos largamente vazios agora? Não é ela que só aborda, quando já não é
possível deixar de o fazer, a questão das corrupções e malversações que reinam
nos grandes (e nalguns pequenos) clubes desportivos?
Em
que é que tal imprensa contribui para o bom funcionamento e o reforço da
sociedade democrática que justifique uma ajuda financeira pública? Não deveria antes, em vez se voltar para o Governo, dirigir-se àqueles a
quem dá inestimável colaboração e fortíssimo apoio? Isto é: que peça ajuda aos
clubes desportivos e demais vedetas do desporto. Àqueles entre os quais circulam fluxos financeiros
gigantescos que passam muitas das vezes por paraísos fiscais. Eles
precisam em permanência dela, agora é ela que precisa transitoriamente deles!
Que a imprensa desportiva não venha
pedir ajuda ao Governo! Até
porque ela é um instrumento nefasto de perversão da vida social e até da vida
política do país. Lentamente, ao longo de anos, foi inculcando (com a
ajuda das rádios e das televisões que temos) a “cultura” de boa parte do
desporto e sobretudo do futebol na mecânica intelectual de demasiados cidadãos.
Com a sua conceção de batalha campal, de confrontação, de agressão e de
violência. Com a sua terminologia em parte inspirada na prática militar da
guerra. Com a sua incapacidade para o diálogo, o compromisso e o consenso.
Na Europa anglo-saxónica não há diários
desportivos. Em França há um, na Itália três e na Espanha quatro com caráter
“nacional”: será normal que em Portugal, demograficamente quatro a seis vezes
mais pequeno, haja três? Esta mesma abundância de títulos se encontra na
imprensa regional. Só que aqui a questão põe-se de maneira bastante diferente…
É claro que existe uma profusão de
jornais regionais no país. Mas, globalmente, estes jornais têm três
caraterísticas. Primeiro, no continente, nenhum deles (diário ou periódico) é
de natureza a dispensar um média nacional na informação política, social,
económica, cultural e até desportiva. Depois, a maioria dos títulos não dispõe
de um mínimo de redatores profissionais para assegurar uma cobertura da
atualidade substancial de qualidade. E por fim, boa parte deles publicam sobretudo “comunicados” mais ou
menos adaptados de instituições e empresas, e são geralmente porta-vozes
oficiosos de poderes locais.
Uma ajuda financeira indiscriminada
traduzir-se-á neste caso em fundos perdidos a curto ou a médio prazo. Porque o
que é necessário fazer não é manter em vida periódicos não viáveis e pouco
satisfatórios em termos jornalísticos. A urgência é favorecer uma mutação
tecnológica e editorial de fundo, de modo a que surjam nas regiões do interior
um ou dois semanários sólidos em cada uma delas, com paginações abundantes e práticas
jornalísticas independentes fortes. E porque não favorecer o aparecimento de
três ou quatro diários, de modo a propor aos cidadãos das regiões, assim como
do resto do país, leituras diferentes da atualidade, escapando enfim àquelas
que, ao longo de século e meio, os media de Lisboa e do Porto têm proposto…
Vivemos um momento histórico demasiado
incerto para que desperdicemos meios financeiros que já não eram muitos e que
serão ainda mais escassos no próximo futuro. Há, pois, que fazer opções que
possam realmente contribuir para o pluralismo da imprensa e da informação
generalista…
O autor
escreve segundo o novo acordo ortográfico
Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de
Bruxelles; autor do livro "Média, Informação e Democracia" (Almedina)
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