Fotos do 1º de Maio de 1974 em VRSA
Em 1974 comemorou-se o 1º de Maio em VRSA, hoje nada. Muito comércio
aberto, muita gente na praia. Hoje, 1º de Maio, reuniu-se o governo com a
Troyka. Ontem, véspera do 1º de Maio o governo PPD/CDS, avançou com mais um
pacote de impostos e a punição do provisório em definitivo. SERIA
INGENUIDADE PARA NÃO PERCEBER A PROVOCAÇÃO, INTENCIONAL NESTA DATA, E CLARA, O GOVERNO ESTÁ AO SERVIÇO DOS MERCADOS E NÃO DOS TRABALHADORES E DO POVO PORTUGUÊS,
TOMEM LÁ MAIS ESTE MERECIDO CASTIGO E AMOCHEM, QUEM MANDA SOMOS NÓS, QUE FIQUE
CLARO.
Foi o POVO que ao sair à rua por todo o país, em 1974, ajudou o MFA a consolidar a vitória, e a construir uma democracia avançada para o tempo.
Hoje, ao não saírem à rua nem comemorarem o 1º de Maio ajudam a perpetuar um governo injusto e reaccionário, a consentirem que lhes mintam e os sobrecarreguem com impostos e atirem para o desemprego, a emigração e a miséria milhões de portugueses. Quem não se mexe acaba sempre por ser atropelado. E, quando forem votar no fim do mês, não se esqueçam de votar nos mesmos de sempre e depois, quando lhes caírem em cima mais impostos ou cortes nas pensões não venham com a cantiga que não votaram neles.
Junto um relato da Helena Pato de um 1º de Maio de outros tempos e um link para verem como foi em 1974.
Seguíamos num
Volkswagen – eu acompanhava-os, até ver. O Alfredo, com quem já casara, tinha
recebido do chefe de redacção do República a incumbência de fazer a reportagem.
Para a censura cortar, inevitavelmente, de alto a baixo, é
claro. Ao seu lado, um amigo, um camarada nosso, que estava ali por ser um dos
organizadores. No banco de trás seguia eu, impaciente e receosa.
Nas vésperas tinham sido lançados panfletos por toda a cidade, chamando o
povo a comemorar o 1.º de Maio, a manifestar-se. Se a ditadura proibia toda e
qualquer manifestação, o «1.º de Maio» era assunto subversivo cuja referência
pública, escrita ou em voz alta, só por si, podia valer prisão. Nos últimos
meses, reuniões e mais reuniões na nossa casa, em Campo de Ourique – tudo muito
discutido, muito preparado, à porta fechada, mas nada passara por mim. Apenas
sabia que algumas dezenas de brigadas clandestinas, furtivamente e durante
noites e noites, iriam cobrir de propaganda a cidade de Lisboa e os arredores.
Papéis, aos milhares, por todos os sítios: apelos à manifestação contra o
regime e abundante informação acerca das greves que nos últimos meses
despontavam, umas a seguir às outras, nas empresas dos arredores de Lisboa.
Chegámos à Praça do Comércio uns dez minutos antes das 6 da tarde. 1.º de
Maio de 1962. Uma data histórica – que persiste em sobrar-me, em ficar-me para
trás, sempre que quero escrever sobre a resistência ou sobre a repressão
fascista. Talvez por ter sido a única vez que, em idênticas circunstâncias,
passei mesmo ao lado da morte. Depois foram décadas a gritar: «A-ssa-ssi-nos!
A-ssa-ssi-nos!» Não se tratava de um grito demagógico, eles eram realmente
assassinos.
O nosso carro ia devagar. As ruas estavam praticamente desertas e, ao
olharmos para as lojas e para os cafés, a calma e a óbvia normalidade
assustaram-nos. Estaríamos à beira de um fracasso? Seria aquele o resultado de
tanto trabalho de organização tantos meses a fio? «Tem calma, Lena, ainda não
são 6 horas!» Tanta reunião, tanta agitação, e um ambiente que parecia explosivo,
no crescendo das greves, iria dar, assim, em nada? Seria que o povo não tinha
coragem de assumir nas ruas o descontentamento que vinha manifestando à boca
calada e que já revelara de forma tão convicta, tão expressiva, nas eleições do
Delgado? Afinal, onde estava esse povo? «Tem calma, Lena, ele vai aparecer!»
Amedrontara-se? Não se atrevia a enfrentar as forças policiais que os
estudantes haviam defrontado por mais do que uma vez durante esse mesmo ano?
1500 jovens presos num só dia, em Março, na Cidade Universitária, e agora
ninguém se mexia?
«Esta manifestação é política, amiga, não é associativa… hoje é mais
complicado arriscar!», lembrava o camarada ciente de uma experiência que eu
admirava.
De uma coisa eu tinha a certeza: a tarde estava mais quieta do que o
habitual à mesma hora. A Baixa parecia adormecida. Dava-me a impressão de que a
acção prevista teria sido prematura ou as expectativas demasiado grandes, que o
medo trancara os lisboetas em casa e que os empregados e os lojistas – comércio,
moda, capelistas, pastelarias, cafés – estariam a abandonar os
estabelecimentos, aos poucos, para fugirem da confusão. Por onde parariam os
bancários, que tinham prometido uma boa adesão? Continuávamos ansiosos, a
rodar, rua abaixo, rua acima, repetitivamente, devagarinho, varrendo
metodicamente um espaço cruzado por artérias quase vazias.
Emudecêramos. Somente meia dúzia de estudantes nossos conhecidos passou por
nós. Que era feito do pessoal da outra banda? Então os operários da Siderurgia?
E os da Lisnave? «Espera e verás, camarada… Hão-de vir, virão em peso… Sabemos
que vão estar em força.» Qual quê! Algum comércio ia-se fechando ao nosso lado,
e eu desanimada. Havia quem, à porta, se metesse para dentro e quem saísse para
os passeios – caminhavam imperturbáveis, eles de chapéu na cabeça, elas de
malinha no braço. «São donos das lojas e caixeiros, já se sabia, Lena… Pouco se
contava com eles…»
Começámos por ver a guarda nacional republicana a cavalo, em grupos – três
agora, quatro depois –, a avançar pela Rua Augusta, vinda do Terreiro do Paço.
Postura sobranceira, a exibir a força. Quando se cruzou connosco, o Alfredo
apressou-se a colocar no vidro do automóvel, em posição de boa visibilidade,
uma pequena cartolina branca com os dizeres IMPRENSA – JORNAL DIÁRIO,
desenhados na véspera, omitindo tratar-se do República para não chamar a
atenção. Não queria dar-lhes qualquer pretexto para detenção, pois referir o
jornal República era falar de oposição ao regime.
Percorríamos as ruas lentamente, circulando, da Praça do Comércio até ao
Rossio; aí dávamos a volta e regressávamos à Rua do Ouro, num movimento cada
vez mais desesperançado. O silêncio vindo de fora tinha-nos contagiado.
Às 6 em ponto, o espanto:
– Olhem, olhem! Extraordinário! – exclamei.
O milagre nesse Maio de luta contra o fascismo. Em poucos segundos, a Baixa
ficara repleta de gente. Pareciam nascidos do chão. Surgiam de todos os cantos
e do interior das lojas. Bem-postos, sim, bem-postos, de chapéu, eles, com
malinha no braço ou na mão, elas. Vinham, em passo acelerado, das ruas
transversais – a Rua da Conceição, a da Vitória, a do Crucifixo, abarrotavam.
Santa Justa em clamor. Muitos corriam em bandos, vindos dos lados do Tejo,
outros desciam o Chiado aos magotes ou afluíam dos Restauradores. A Rua da
Madalena, a dos Fanqueiros e todas as ruas que desembocavam na Praça da
Figueira encheram-se, num ápice, de gente que se dirigia para o Rossio. 6 da
tarde. Nessa altura, a multidão bradava uma palavra de ordem qualquer, não sei
o quê, não me lembro.
– Pára, Alfredo, vou sair! – gritei, na Rua da Prata, a saltar do carro
ainda em andamento, sem levar carteira, nada, a não ser uma algibeira atulhada
de pimenta.
Que me lembre, não havia carros de água nem bombas lacrimogéneas. A polícia
era treinada para obedecer às ordens superiores e, desta vez, as ordens
superiores resumiam-se, por certo, a duas frases:
«Dêem cabo deles! Acabem-lhes com a raça!» Os polícias invadiram o Rossio:
pareciam drogados, saindo como animais das camionetas, bruscamente estacionadas,
empunhando cassetetes, com olhares de ódio, espumando de fúria. Não me esqueço
de que vi um deles junto de mim, fardado, com pistola. Largaram em corrida,
mais aguerridos do que nunca, piores do que em concentrações anteriores.
Juntei-me à multidão. De repente, a repressão abateu-se com tal violência que
nos levou a reagir imediatamente com um só grito: «A-ssa--ssi-nos!
A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos!» (E eram.) Caíram sobre todos os que agarraram,
malhando a torto e a direito. Missão cumprida: homens novos e velhos caídos no
chão, alguns cheios de sangue. Prisões aqui e ali. A pancada brutal assustava.
Na expressão vincada na face de muitos populares via-se raiva, mas também
medo: gente lívida a escapar-se para dentro do Café Nicola e do Café Gelo. Constou
que a Pastelaria Suíça tinha fechado as portas de imediato para que a polícia
não lhe destruísse o interior, mas também para não acolher ninguém. Houve quem,
a custo, conseguisse fugir para as margens da refrega e ficasse a descansar.
Gente que por momentos se juntou àqueles lisboetas que desde o princípio se
mantinham encostados às montras, nas esquinas do Rossio e perto do Arco
Bandeira – uma Lisboa do reviralho, do fado e da ginjinha, solidária, mas, até
Abril, temerosa.
Eu, ali parada, ao lado do Teatro D. Maria, quase em pânico, com as pernas
a tremer, mas revoltada com tudo o que via – numa ira crescente –, procurava
ganhar terreno e coragem para atirar com a pimenta aos cavalos que a GNR
lançava sobre as pessoas. Assustei-me com eles a relinchar, patas ao alto,
avançando sobre nós, enquanto clamávamos: «A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos!» A 2
metros de mim, em poucos segundos, uns quantos animais tombaram. Estavam agora
de joelhos, os guardas a procurarem levantá-los, e nós: «A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos!».
Começou o tiroteio. A multidão resistia, sem conseguir perceber donde
vinham os tiros.
Dois amigos puxaram-me e quase me arrastaram em direcção à estação de
comboios. Depois subimos as Escadinhas do Duque e corremos rua acima, numa
subida cansada, violenta e dramática. Os tiros sucediam-se nas nossas costas:
aquele som ainda nos perseguia e nós, ofegantes, já íamos junto ao Quartel do
Carmo. Lembro-me de, lá em cima, ter um ataque de choro. Raiva ou medo? Nem
sei.
«A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos!» é uma forte memória que
guardo do eco da resistência no coração da cidade.
– Há montes de feridos, prenderam muita gente… – gritava-me uma amiga ali a
dois passos.
– Parece que mataram um gajo, um operário, um rapaz dos nossos… – disse eu,
em pranto.
Ao princípio da noite sentei-me na Cervejaria Trindade com o Alfredo, uns
amigos e a certeza de que, a partir dali, a efeméride que, de futuro,
comemoraríamos com verdadeira emoção não voltaria a ser o 5 de Outubro. Aquele
tinha sido o primeiro «1.º de Maio» de luta para muitos milhares de pessoas em
todo o país, um passo importante no combate político contra a ditadura.
Meses depois, o Alfredo foi para o exílio, fugindo à prisão que o ameaçava.
Chegava brutal a vaga de repressão da PIDE sobre os principais organizadores da
sequência de greves e lutas desse histórico ano – e ele havia sido um deles.
Em 1974, centenas de milhares de portugueses desfilaram no dia 1 de Maio,
Dia do Trabalhador. Comemorava-se a liberdade: era dia de festa, mas poucos
saberiam a história dos anteriores.
https://www.youtube.com/watch?v=cIN37JB6JMw