Opinião
Da Economia como
ciência pragmática
Fernando Belo
12/05/2014 - 01:22
As crises são as sociedades a tornarem-se laboratórios exibindo o que falta
às ciências.
1. Um velho texto de António J. Esteves, sociólogo da Universidade do
Porto, que evoca as engenharias como “ciências de projecto” de Herbert Simon
para incluir nelas a Economia, trouxe-me algo que procurava há vários anos.
Segundo ele, “a determinação de ‘como as coisas podem ser’ e de ‘como devem
ser’ para a realização de determinados objectivos delimita um conjunto de
saberes que não se resumem às disciplinas científicas nem à sua ‘aplicação’”,
diz Esteves, o projecto da Economia devendo ser “uma nova politica de bem estar
social para um Estado” (H. Simon) (1). Ciência de acção e portanto de
mudança, pragmática assim, a sua verdade consistirá na transformação que ela
consiga operar nas estruturas sociais sobre que incide, implicando a definição
de objectivos.
2. Era esta descrição que me
escapava, modesto fenomenólogo praticante de filosofia com ciências.
Sendo uma ciência dos mercados, a economia é apenas uma ciência social entre
outras que a ausência duma ciência global das sociedades capitalistas levou a
ocupar esse lugar, indevidamente por certo mas a apelo do vazio. O seu carácter
sectorial implica que os ‘objectivos’ a reconhecer-lhe não dependem
exclusivamente dela mas de algo que a ultrapassa: a dupla grande crise que atravessamos, económica - financeira
e climática, orienta o nosso olhar para o mais largo objectivo da Economia, a perpetuação
da espécie humana, posta em questão por duas questões dramáticas, o enorme
desemprego jovem (que futuro daqui a 30 anos?) e as consequências da
progressiva alteração dos climas (que futuro daqui a 100 anos?). Estas
duas questões impõem à Economia a consideração da nossa condição biológica como
axioma imperativo, se dizer se pode: qualquer animal tem como problemas
principais comer e proteger-se de ser comido e a sociedade começa por ser uma
forma cooperativa mais económica de enfrentar esses problemas. No que dependa da Economia, há que
garantir a alimentação (o “bem estar social” de que falava Simon, a que
chamamos na Europa o Estado social) e a protecção de todos os cidadãos, a nossa
liberdade (o Estado de direito). O imperativo estende-se à salvaguarda do
planeta que nos dá a vida: a este nível, de que não me ocuparei, o papel da
Economia será nomeadamente o de remover obstáculos derivados da arbitrariedade
da especulação financeira.
3. Ora, a Biologia oferece também uma espécie de modelo para delinear os
objectivos da Economia, à maneira da Medicina. Sabemos hoje que há uma
inter-relação entre a determinação genética que diz respeito à reprodução das
moléculas de cada célula do organismo e a circulação do sangue (que as alimenta
a todas elas), a qual, instável, deve ter uma estabilidade homeostática cujos
limiares, máximo e mínimo, são o objectivo médico, a nossa saúde:
tensão arterial, seus teores variados (análises de sangue), mormente os de
nutrientes e oxigénio. Para o que nos interessa aqui, este imperativo da saúde
cifra-se em não se comer nem de mais nem de menos. O que nos tem chocado a todos nesta crise é ver-se a
maior parte da população ser despojada mais ou menos brutalmente do que tem
para viver, muitos do emprego, outros de parte do salário ou da pensão,
enquanto que os muito ricos enriquecem e põem os capitais a darem dividendos lá
fora.
4. O escândalo é que, aos olhos da
Economia, isto parece ser apenas algo de lamentável, nem sequer ‘imoral’: o
argumento com que nos enchem os ouvidos é o da ‘credibilidade’ junto dos
grandes capitais especulativos, ditos ‘mercados’ (como se fossem honestas
mercearias). Ou seja, este baixar até à miséria de milhões de pessoas e a
grande riqueza de poucos milhares não é nada que pareça dizer respeito à
Economia enquanto ciência, algo que é deixado como preocupação aos políticos. Nela não haver
respeito pelos limiares mínimos e máximos da Economia, faltar no seu arsenal
axiomático o que define os seus objectivos enquanto ciência da ‘habitação’ (oikos,
casa). No entanto, a crise ilustra como proceder na homeostasia social, na
estabilidade instável (Prigogine) das conjunturas: garantir os mínimos (o
Estado social) – que deverão ir até ao pleno emprego, diminuindo as horas de
trabalho de todos para que todos o tenham – e corresponder a essas despesas com
impostos (é a social-democracia) sobre a propriedade ‘privada’ (do social), a
qual só vale por essa ‘privação’ que lhe dá contexto (ou seja, os impostos são devolução ao social duma parte do
recebido dele). O nosso
governo troikista, pelo contrário, forçou aquém dos mínimos sociais sem
qualquer pudor, para garantir os máximos aos credores que vivem de especulação
– jogam com títulos para lá, títulos para cá –, sem que a Economia enquanto
ciência pareça ter algo a dizer a esse respeito, como se fosse apenas uma
questão moral, ou o fatalismo de “as coisas serem como são”.
5. Não sou de economia nem
de qualquer outra área social e percebo a dificuldade imensa de uma ciência
económica global e que pretenda domesticar os capitais internacionais. Mas as
crises são as sociedades a tornarem-se laboratórios exibindo o que falta às
ciências, pedindo para as reformular, se ainda for a tempo. Ou para o que
sobrar de espécie humana.
Filósofo
Um artigo para nos fazer pensar.
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