Opinião
Miséria social,
miséria moral: mais pobres, mais frágeis
06/05/2014 - 02:57
A grande herança do Governo PSD-CDS no final
do “programa de ajustamento” é a reinstituição do medo.
Voltaire dizia que “quase toda a
História é uma sequência de atrocidades inúteis”. A frase adapta-se como uma
luva ao “programa de ajustamento” a que Portugal foi submetido nos últimos anos
pelo Governo de Passos Coelho, pelos seus “parceiros” europeus e pelo FMI. As atrocidades a que fomos
submetidos não são os horrores da guerra que estavam na mente do filósofo
francês, mas continuam a ser as velhas misérias sociais e um novo tipo de
miséria moral de que Passos Coelho ou Paulo Portas são simultaneamente
propagandistas e exemplos.
As
misérias sociais estão à vista: desemprego,
precariedade, subemprego, emigração forçada, salários mais baixos, pensões mais
baixas, aumento da pobreza e da miséria extrema, mais pessoas sem qualquer
rendimento e sem apoios sociais, mais crianças pobres, mais velhos pobres, mais
crianças com fome, menos acesso à saúde, menos acesso à educação, mais abandono
escolar, menos serviços públicos, mais depressão.
A
miséria moral é aquela que foi sendo insidiosamente
instilada na sociedade pela atitude do poder e pelo seu discurso, pelo seu
recurso despudorado à mentira sistemática tornada banal, pelo seu uso da
desconfiança como instrumentos de manipulação do público.
Não é surpreendente que, depois de
Passos Coelho, de Paulo Portas, de Miguel Relvas, de Maria Luís Albuquerque, de
Poiares Maduro tenhamos passado a considerar comum a falta de honorabilidade
dos governantes, fazendo
crescer o descrédito na democracia. Hoje vê-se como inevitável a promiscuidade
entre políticos e negócios e aceitamos que a verdade, como antes acontecia na
guerra, seja a primeira baixa da política.
O
Governo conseguiu difundir uma cultura de desprezo pelos velhos e pelos doentes, apresentando-os como gastadores de recursos sem
préstimo e como abusadores dos direitos sociais. Conseguiu impor um clima de confronto entre desempregados e
trabalhadores, apresentando a estabilidade de emprego como pecaminosa e
um obstáculo à competitividade. Conseguiu lançar uma guerra de gerações entre velhos “privilegiados”
por terem pensões e jovens a quem foi dito que estavam em risco de nunca
receber reformas devido aos “privilégios” dos seus pais e avós. O Governo
conseguiu minar consensos
sociais laboriosamente construídos ao longo de 40 anos de democracia, como o
acordo sobre a necessidade de investir na escola inclusiva, na formação de alto
nível e na investigação – que passou a ser referida na narrativa oficial como
uma actividade “pouco produtiva” e longe da “economia real”. O Governo
conseguiu apresentar sistematicamente a máquina do Estado como uma “gordura” improdutiva, um aparelho inútil e
despesista, formado por burocratas preguiçosos e incompetentes, pondo trabalhadores do sector
privado contra funcionários públicos
e destruindo uma filosofia de serviço público e uma ética de trabalho com
séculos de consolidação, para
melhor desmantelar o Estado
social. E impôs por
todos os meios possíveis a agenda neoliberal segundo a qual o trabalho é uma
mera mercadoria sem dignidade particular, cujo valor deve ser tão reduzido
quanto possível.
A
miséria moral que este panorama evidencia pode ser
menos visível do que os dramas da pobreza, mas é infinitamente mais grave,
porque abre fracturas de hostilidade e desconfiança na sociedade que levam
muitos anos a reparar.
O sucesso ímpar do Estado social após a
Segunda Guerra Mundial não se deveu apenas aos serviços que o Estado fornecia,
mas ao clima de estabilidade e de cooperação, de confiança nos outros e no
futuro que esses serviços possibilitaram. O grande sucesso do Estado social foi
a derrota da insegurança e do medo – do medo da doença, do desemprego, do
futuro.
A
grande herança do governo PSD-CDS no final do “programa de ajustamento” é a reinstituição
do medo e da insegurança como elemento central da vida social e como
instrumento estatal de “regulação social”.
E, com ele, a desconfiança e a desesperança. Dividir para reinar é uma receita eficaz, como
todos sabemos.
E a grande herança do Governo PSD-CDS na
prática política é a crescente
banalização da mentira e a glorificação do despudor. O sofrimento não
nos deixou melhor do que antes. As atrocidades só serviram os saqueadores.
A “saída limpa” que o Governo anunciou
este fim-de-semana não é nem uma saída nem limpa, como qualquer pessoa com um
mínimo de honestidade admite – porque a fragilidade da nossa situação
financeira é igual ou pior do que era, porque permanecemos submetidos a uma tutela externa com direito de veto de
facto das políticas nacionais. Mudámos apenas de suserano: antes eram os
nossos “parceiros” europeus, amanhã serão os “mercados”. A diferença entre um
“programa cautelar” e uma “saída limpa” é a que existe entre o lume e a
frigideira. A chantagem é a mesma, apenas muda o agente. E a instabilidade é
maior.
Quando
a UE refere os “progressos impressionantes” que Portugal realizou, faz um
exercício de hipocrisia. Estamos economicamente mais pobres e socialmente mais
frágeis. Mais temerosos e mais divididos. Só pode achar que isto é um sucesso
quem tivesse este objectivo.
jvmalheiros@gmail.com
Sem comentários:
Enviar um comentário