segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

A AUSTRÁLIA ESTÁ MAIS PERTO DO QUE SE PENSA



João Camargo
Incêndios florestais: a Austrália aqui tão perto
Sobre Portugal pairam ameaças similares às que se materializam na Austrália e as reformas florestais coladas a cuspo não aguentarão o mais ligeiro abanão.
13 de Janeiro de 2020
Os incêndios na Austrália são uma nova etapa na realidade climática: a natureza global da crise climática já não poupa classes ricas, Estados privilegiados, países com infra-estruturas sólidas e corpos de protecção civil. Só uma modificação fundamental no sistema económico pode travar uma degradação ainda maior. Sobre Portugal pairam ameaças similares às que se materializam na Austrália e as reformas florestais coladas a cuspo não aguentarão o mais ligeiro abanão. As ilusões da “segurança” de se ser rico e viver num país desenvolvido caem como um baralho de cartas. As cheias em Portugal mostraram novamente a nossa fragilidade, mas temos de aprender com o que se passa na Austrália. Uma das bandeiras do governo e celuloses para o combate aos incêndios, o “fogo controlado”, frequente na Austrália, mostrou-se ineficaz perante a seca prolongada e as temperaturas elevadas que se combinaram para queimar áreas (florestais e não só) de dez milhões de hectares, algo como toda a Islândia. 
Ross Bradstock, do Hub de Pesquisa de Gestão de Risco de Incêndios de Nova Gales do Sul, revela que nas áreas onde houve fogos controlados nos últimos cinco anos não houve qualquer redução da intensidade dos incêndios. David Bowman, da Universidade da Tasmânia, destaca que com as actuais condições catastróficas e estações quentes e secas prolongadas no tempo, o fogo controlado já não serve nenhum objectivo. Além disso, com picos de temperatura erráticos e secas prolongadas, o risco associado aos próprios fogos controlados aumenta.
Tal como descrevi com o Paulo Pimenta de Castro no livro Portugal em Chamas – Como Resgatar as Florestas, há uma nova realidade climática que se combina com as fragilidades ambientais e sociais dos territórios para simplificar ecossistemas. A predominância de espécies florestais altamente combustíveis na Austrália e em Portugal (embora na Austrália os eucaliptos sejam originais e em Portugal plantados e invasores) começa a ser um factor cada vez menos relevante para os incêndios catastróficos. Bowman, que descreve o eucalipto como tendo evoluído para arder e “queimar” a concorrência, diz que os actuais incêndios têm tanto calor e tanto vento que toda a matéria orgânica arde, atravessando as paisagens quer tenha ou não havido acções como fogos controlados, quer haja espécies mais combustíveis quer não. Steve Pyne, da Universidade do Arizona, fala mesmo do início do “Piroceno”, uma nova era com fogos imparáveis, mortes e refugiados, cujos fumos globais aceleram a mudança do clima.
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Há neste momento incêndios em todos os estados da Austrália. Grandes cidades como Sidney, Melbourne e a capital Camberra têm sido cercadas pelas chamas. As evacuações por mar de aldeias e cidades costeiras, sob céus negros e vermelhos, dão-nos a imagem infernal da nossa fragilidade perante um novo clima. A perda de centenas de milhões de animais põe em causa a possibilidade de recuperação de vários ecossistemas. O aumento da frequência de incêndios catastróficos põe também em causa a capacidade de recuperação de espécies de plantas, inclusivamente aquelas mais adaptadas aos incêndios. A Austrália já tem em média mais 1ºC do que em 1910. 2019 foi 1,52ºC mais quente que a temperatura pré-industrial.
Em Portugal, a influência que as celuloses continuam a exercer manieta a possibilidade de se travar a desertificação do nosso país. Mesmo a tímida tentativa de reforma após os incêndios de 2017 foi arredondada até quase nada. Este Orçamento do Estado chega a eliminar a taxa que incidia sobre os lucros de madeireiros e celuloses para financiar, entre outras coisas, o desenvolvimento de espécies florestais de crescimento lento. Apesar das várias opções técnicas e políticas questionáveis, como escolher uma vez mais alguém das celuloses para controlar a política florestal, a verdadeira política pública é observável a olho nu. Percorrendo as estradas e auto-estradas do país, caminhando pelas serras e montes, vemos um barril de pólvora, uma densidade arbórea multiplicada várias vezes e uma expansão invasiva de eucalipto até nos terrenos mais secos. O facto de em 2018 e 2019 termos tido verões temperados é a principal explicação para a ausência de grandes incêndios florestais no território. No novo governo, a pasta da floresta passou para as mãos do Ministério do Ambiente e Acção Climática, com as árvores a serem vistas crescentemente como material combustível para produzir energia ou para martelar as contas de emissões. Nas escolas primárias, as celuloses distribuem gratuitamente livros a dizer que “Juntos vamos parar o aquecimento global”, plantando eucaliptos, “uma árvore cheirosa e que ajuda a combater o aquecimento global”. Não há limites para a desfaçatez da Navigator Company.
Num clima estável, poderia ser invocado algo como a neutralidade de carbono de plantações industriais, contrabalançando-se o absorvido pelas árvores com o libertado no processamento. Quando há estabilidade do clima, as florestas regeneram e reabsorvem carbono, mas quando há incêndios catastróficos há libertação massiva de gases com efeito de estufa. Quando as árvores que favorecem e são favorecidas pelo fogo, como os eucaliptos, favorecem a morte das outras árvores que não entram em qualquer ciclo industrial, não há neutralidade, contribuem para aumentar as emissões. Ponto.
Já vivemos num novo clima em que os incêndios catastróficos não podem ser evitados. O que pode ser feito é nos intervalos entre estes fenómenos criar condições para manutenção de florestas estabilizadas, que sustentem solos e águas, o que implica mudar a composição florestal em Portugal. Só estas poderão ter capacidade de regeneração, com apoio da acção humana, depois de grandes incêndios.
Há cada vez menos tempo para viabilizar um futuro mundo rural. É necessário planificar o território rural para um novo clima aprofundando os trabalhos da Estrutura Ecológica Nacional, da arquitecta paisagista Manuela Raposo Magalhães, com uma perspectiva dos futuros climas. É preciso uma intervenção em grande escala no território, investimento massivo com a criação de milhares de postos de trabalho para uma reconversão das áreas hoje arborizadas para reduzir o risco de incêndios catastróficos e travar a desertificação. Não há resposta à crise climática de mão dada com o capitalismo extractivista que só procura oportunidades para fazer mais dinheiro. 
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Investigador em Alterações Climáticas; activista do Climáximo

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