Para além da
tempestade viral
A grande incógnita é saber até que pondo a sociedade será capaz, no
rescaldo deste temor global, de construir novos mecanismos de regulação e se
eles poderão assegurar a harmonia e coesão ou se as mudanças em curso abrirão caminho
para mais instabilidade, convulsão e violência. Ambos os cenários são
admissíveis.
25 de Março de 2020 Elísio Estanque
Desconhecemos ainda a dimensão da
catástrofe causada pela pandemia da covid-19, mas é quase certo que as consequências sociais e económicas do atual
surto irão ser profundas. Para além do terrível impacto imediato é previsível
que as sequelas se prologuem no tempo e ganhem um alcance estrutural nas nossas
sociedades. Consideremos, desde logo, o campo laboral, mas também o papel do
Estado social nos setores nevrálgicos das nossas democracias. A grande
incógnita é saber até que pondo a sociedade será capaz, no rescaldo deste temor
global, de construir novos mecanismos de regulação e se eles poderão assegurar
a harmonia e coesão ou se as mudanças em curso abrirão caminho para mais
instabilidade, convulsão e violência. Ambos os cenários são admissíveis, embora se espere que esta dolorosa aprendizagem nos ajude a abrir novos
horizontes que nos devolvam a esperança.
Já sabemos que as democracias ocidentais
têm vindo a resvalar para um estado agónico, de crescente corrosão e perversidade,
onde a legitimidade constitucional e as instituições se vergam perante poderes
e forças ilegítimas. Não se espera que os processos em curso na economia e no
mercado de emprego sejam travados de repente. Como assinalei num texto recente publicado neste
jornal, a fragmentação e a flexibilização no
campo laboral tendem a acentuar-se, “dando continuidade a processos em curso
como o outsourcing, a subcontratação, o trabalho temporário, o trabalho a tempo parcial, o
trabalho independente, etc., que continuam a expandir-se, multiplicando as
formas e vínculos contratuais e ampliando as tarefas à distância, a
individualização, a digitalização” (jornal PÚBLICO, 27.01.2020). Num mundo
desigual é flagrante o contraste entre os que beneficiam da revolução digital e
os restantes, isto é, entre os incluídos e os excluídos. Acrescentava-se ainda
no mesmo texto que “a grande maioria dos novos ocupados através da ‘uberização’,
das ‘work
platforms’, do ‘trabalho à distância’, etc., vem
somar-se aos milhões já existentes, uma massa de gente que subsiste nas
periferias do sistema (sem quaisquer direitos ou proteção) e que lhe serve de
alimento. O trabalho manual continua a ser central, embora menos discutido
porque se metamorfoseou e se tornou mais opaco”.
Ora, perante os apelos e imposições
atuais para generalizar o trabalho à distância, não restam dúvidas de que irá
agravar-se a tendência num cenário de pós-coronavirus, até porque isso vai ao
encontro dos interesses de muitas empresas. Talvez as mesmas que se apressam
agora a promover despedimentos em massa. Apesar disso, torna-se premente a
necessidade de manter a produção a funcionar, mesmo em tempos de exceção,
nomeadamente em atividades produtivas e serviços diretamente relacionados com
as novas necessidades. E, no curto prazo, a manter-se o panorama atual, irá
provavelmente notar-se ainda mais a importância do trabalhador manual. O
teletrabalho e as plataformas digitais estão a ganhar uma nova centralidade nos
dias de chumbo que estamos a viver, mas devemos lembrar-nos que o pão, os
legumes, o leite e as pizzas que nos chegam agora à entrada da porta não caíram do céu nem são
fabricados nos ambientes informáticos. São fruto do esforço de trabalhadores
reais, gente de carne e osso, porventura a trabalhar em condições ainda mais
precárias e desumanas do que as dos “motoboys” que os transportam até nossa casa.
Se a indústria parar totalmente, a
economia vai-se ressentir de forma devastadora. Mas, no momento presente, em
Portugal, só com a mobilização geral dos empregados, por exemplo, nas empresas
que fabricam intensivamente máscaras e vestuário hospitalar (como foi noticiado
em unidades produtivas em Barcelos e Penafiel, onde se trabalha 24 horas por
dia) para fazer face às necessidades das instituições de saúde neste momento de
aflição, se pode evitar que muitas mais vidas estejam em risco. Ou seja, é a
força de trabalho a mola real da economia, esteja ela localizada na periferia
das nossas cidades ou na periferia do sistema mundial. É certo que os
trabalhadores do setor dos serviços, os elos que fazem fluir o teletrabalho ou
os que, em casa, alimentam as startups e o funcionamento de milhares de
organizações, são igualmente decisivos e precisam de ser (mas não são)
devidamente enquadrados e reconhecidos nos seus direitos. Empreendedores da sua
própria precariedade, trabalhadores em nome individual, segmentos vulneráveis,
prestadores de serviços tantas vezes usados por empresas de trabalho temporário
sem escrúpulos, engrossam desde há décadas o exército do “ciberproletariado” do
século XXI, como lhes chamou a socióloga britânica Ursula Huws. É possível,
diria mesmo, é desejável, que as circunstâncias excecionais que hoje atravessamos
ajudem a despertar consciências quanto à importância crucial do trabalho, dos
trabalhadores e seus direitos.
Essa dimensão vai ao encontro do segundo
aspeto que gostaria de destacar. O momento é particularmente propício para
testar o papel do Estado e das instituições democráticas perante a hegemonia do
mercado e da narrativa neoliberal. O valor do trabalho, das políticas públicas
e dos direitos sociais ganham agora uma nova luz. Até o Presidente Macron,
tantas vezes apontado como o paradigma do neoliberalismo na UE, declarou há
dias que “precisamos amanhã de tirar lições do momento que atravessamos,
questionar o modelo de desenvolvimento que o nosso mundo escolheu há décadas e
que mostra as suas falhas à luz do dia, precisamos questionar as fraquezas das
nossas democracias. O que revela esta pandemia é que a saúde gratuita, sem
condições de rendimento, de história pessoal ou profissional e o nosso Estado
providência, não são custos ou encargos, mas bens preciosos, vantagens
indispensáveis quando o destino bate à porta. O que esta pandemia revela é que
existem bens e serviços que devem ficar fora das leis do mercado. (…) As
próximas semanas e os próximos meses necessitarão de decisões de rutura neste
sentido”. (comunicação ao país na France TV, 12.03.2020).
É claro que estas palavras valem o que
valem. Mas olhando o mapa mundial estamos perante um quadro que coloca de novo
à prova o papel da Europa nos rearranjos urgentes que esta calamidade
evidencia. Em Portugal, temos assistido nos últimos dias a uma mobilização sem
precedentes desde o 25 de Abril, com a sociedade e a generalidade dos atores
políticos a mostrar um sentimento espontâneo de solidariedade para com os
profissionais do SNS. Mesmo as medidas do Governo, apesar do seu carácter drástico, e seguramente por causa dele, têm merecido o apoio dos portugueses.
Ninguém pode garantir até onde este cenário nos irá conduzir, mas é em momentos
cruciais para a vida pública, como o atual, que novas orientações e estratégias
políticas poderão ser traçadas. Como a história já provou, é dos destroços das
calamidades, pandemias ou guerras devastadoras que podem nascer novas
lideranças, capazes de definir novos rumos. Importa inverter o recente curso
mercantilista e privatista que temos vivido. A apropriação egoísta dos
benefícios conjugada com a coletivização dos custos é o desígnio de alguns
interesses instalados, nomeadamente no setor da saúde ou no setor financeiro,
mas não tem que ser sempre assim.
Não sabemos quando irá passar esta
tempestade nem se a ela se seguirá a bonança ou tempos ainda mais tempestuosos.
A paisagem social a que nos acostumámos ao longo do último século pode
alterar-se de forma irreversível. E, aqui, o papel ativo da sociedade civil e
das instituições assume um caráter decisivo, desde que se saiba distinguir
entre os padrões comportamentais pautados pela consciência cívica das pulsões
desencadeadas por instintos de medo e de pânico. Se estas últimas constituem o
húmus do fanatismo identitário que ameaça a Europa e o mundo, as primeiras são
o repositório da esperança na reinvenção civilizacional de que necessitamos, a
começar pelo projeto europeu.
Centro
de Estudos Sociais/Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra;
professor visitante na Universidade Friedrich-Schiller, Jena –
Alemanha
O autor
escreve segundo o novo acordo ortográfico
Professor da Faculdade de Economia e investigador do Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra
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