O vírus, o
Estado social e o nosso modo de vida
Fomos obrigados a deixar a “fast-vida”, a correria, o massacre da
competição e do tempo sem tempo. Com burnout, agora, só os profissionais
de saúde. E se pudéssemos aproveitar para mudar?
27 de Março de 2020
Médicos, um engenheiro hospitalar e um
militar, integrados em respectivas associações, entendem juntar-se para em
conjunto exprimir que esta
pandemia nos coloca problemas políticos que dizem respeito ao Estado
em geral e ao Estado social em particular, ao desempenho dos vários actores
políticos nesta crise e ao nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS). Colocam-se
também questões sociais e até filosóficas mais latas, relativas ao ser humano
no ecossistema e no modo de vida.
Vários pensamentos esperam do Estado
coisas diferentes. Alguns esperam segurança e voz de comando. Outros, como nós,
esperam, para além disso, o funcionamento do Estado social. O que é que este
significou e significa. Foi a seguir à Segunda Guerra que o Estado Social se
corporizou. As decisões dos governos das democracias foram tomadas após grandes
movimentos das massas trabalhadoras em geral e dos sindicatos em particular.
Portugal, Espanha e Grécia ficaram debaixo do tapete das democracias e bem
sabemos as consequências. O espírito que atravessou as democracias, com
liderança do Reino Unido e dos países escandinavos, consistiu na nacionalização
das grandes indústrias e do caminho-de-ferro. Num levantamento de estruturas de
habitação, de saúde e de educação a partir do Orçamento Geral do Estado.
Constituído este a partir de impostos progressivos de acordo com o rendimento.
Foi um grande salto para diminuir a desigualdade entre as pessoas, com a qual
elas nascem. Foram precisos 30 anos para Portugal, após Abril de 1974, adoptar
a mesma estrutura, estabelecendo-se informalmente após a revolução, mas só se
tornando lei em 1978. O SNS estabeleceu-se e a sua concepção é idêntica à do
Reino Unido e dos países escandinavos. Chama-se beveridgiana porque o seu legislador em Inglaterra foi Beveridge. Os outros países da
Comunidade Europeia também têm cobertura universal mas na base de seguros
obrigatórios ou segurança social.
O problema é que a nossa legislação foi
na contra-onda que entretanto se estabelecia na Europa e nos EUA em 1979/80,
com R. Reagan e M. Thatcher. Para esta última, segundo as suas palavras, não
havia “sociedade”, só havia “indivíduos”. A partir daí o pensamento
progressivamente hegemónico foram as privatizações das fontes de rendimento do
Estado e a redução progressiva dos serviços públicos a favor da “concorrência”
com os privados. Porque o espírito foi e é: mercado, concorrência,
individualismo. Está expresso na Lei de Bases da Saúde de 1993, aprovada por um
parlamento com maioria de direita.
O nosso medíocre cavaquismo foi o
thatcherismo luso, inspiração para uma grande parte da direita portuguesa.
Liberais, com várias designações, que falam contra a “carga fiscal”
(ressalva-se as dificuldades das pequenas e médias empresas), sabendo que é daí
que vem dinheiro para a educação e a saúde, falam contra as “taxas e taxinhas”,
quando são aplicadas às bebidas açucaradas, são os que falam em “menos Estado,
melhor Estado” (mas qual é que escolhem?). Infelizmente, a pandemia veio
demonstrar o que é ter ainda algum Estado social ou não ter nenhum, como
acontece nos EUA.
A resposta da Direcção-Geral da Saúde
(DGS) e do Ministério da Saúde (MS) foi adequada, serena e resistente ao
desgaste do trabalho exaustivo, e dos ataques directos ou enviesados. Duas
mulheres sem experiência de uma pandemia, porque ninguém a tem, enfrentaram a
crise com inteligência e coragem, tomando medidas proporcionais. O
primeiro-ministro tem a liderança necessária com a mesma sabedoria. Realce-se o
conhecimento transmitido por cientistas portugueses, virologistas,
infecciologistas, pneumologistas, epidemiologistas ao nível do melhor
pensamento internacional. Não é por acaso. Tiveram formação e experiência no
SNS. Os profissionais de saúde têm feito um trabalho extraordinário com risco
de vida, como se constata pelo número de
infectados em percentagem superior ao da população em geral.
Continuem nesse caminho de generosidade e profissionalismo.
Não é de estranhar, mas é de denunciar o
aproveitamento político daqueles que acham o momento bom para atacar
a DGS e o MS, evidenciando carências que existem e outras que poderão vir a
existir. Mais não fazem do que alarmar, lançando o pânico. Não é boa altura
para guerrilhas. É igualmente de denunciar todos os aproveitamentos comerciais
de grandes empresas fornecedoras.
Nós sabemos que há muitas questões a
colocar no futuro relativamente ao SNS: orçamentação, estrutura
hospitalocêntrica, necessidade de auto-suficiência em grande parte dos meios
auxiliares de diagnóstico nos Cuidados Primários e articulação destes com os
centros hospitalares, retenção dos jovens especialistas no serviço público
através de estímulo material (muitos estão agora nas urgências dos privados e
bastante falta nos fazem no SNS), substituição e atualização tecnológica de
equipamento. Destacamos a perda de 4000 camas de agudos no SNS desde 1995 (de
25.000 para 21.000), agora com 2,1 camas por mil habitantes, macas nos
corredores e taxas de ocupação superiores a 90% em vez dos normais 85%. Camas
públicas e privadas, temos 3,3 camas por mil habitantes, a França tem 6,2 e a
Alemanha 8,2 (Fonte: Eurostat, 2017). Consequência de muitos anos de politica
neoliberal com enorme investimento e crescimento dos serviços privados. Para
que servem agora? Seria interessante perguntar porque só a 23 de Março os hospitais
privados, Luz e Lusíadas, admitem doentes com covid-19 . O que é que
têm feito aos doentes com covid que lhes aparecem? E os ventiladores da CUF
vieram sozinhos ou com doentes? É certo que a CUF no Porto e na Infante Santo
ofereceram-se para entrar na rede. Mas a que preço? E qual é o preço
dos testes que fazem? Os serviços privados ofereceram-se também para
receber doentes não contaminados para libertar camas do público. A que preço? E
qual é o jogo do mercado no fornecimento de materiais de defesa da desinfecção?
Tudo isto devia ser transparente.
Verifica-se também que a União Europeia
só serve para regular mercados financeiros. Não tem nenhum mecanismo para actuar
em casos de pandemia ou catástrofe humanitária. Acentuam-se já as assimetrias
dos países do sul da Europa em relação aos do norte. A falta de solidariedade
europeia contrasta com a solidariedade da China e Cuba. O tempo é de
solidariedade e não de egoísmos nacionais ou de grupo.
No meio do infortúnio torna-se dia-a-dia
evidente, através dos contactos à distância, que as pessoas estão a gostar de
se sentir no colectivo, que encontraram tempo e paciência para a família, que
os sentimentos bons ressurgiram, o desfrute da arte erudita e popular
aconteceu. Fomos obrigados a deixar a “fast-vida”, a correria, o massacre da
competição e do tempo sem tempo. Com burnout, agora, só os profissionais de saúde.
E se pudéssemos aproveitar para mudar?
É também altura para lembrar que não
vivemos sozinhos na terra. Não somos os reis do Universo, nem este é
humanocêntrico. Os vírus e muitos outros seres vivos coexistem connosco num
ecossistema. Não é Satanás, nem uma conspiração. É o acaso ou é aquilo que cabe
no nosso enorme desconhecimento. Mas será a ciência, a divulgação, a paixão de saber
que, tal como o vírus, não podem ter preço nem fronteiras, a permitir que se
vença este inimigo, tal como já foram vencidas muitas bactérias e como foi
prolongada a esperança de vida nos países desenvolvidos.
Isabel
do Carmo, médica, professora da Faculdade de
Medicina de Lisboa, associada da Associação de Médicos Portugueses em Defesa da
Saúde (AMPDS); Jaime
Teixeira Mendes, médico, presidente da AMPDS; João Durão Carvalho, Engenheiro, membro da direcção da Associação de Técnicos de Engenharia
Hospitalar Portuguesa; Martins
Guerreiro, almirante, militar de Abril
Médica; professora da Faculdade de Medicina de Lisboa; activista política
Cirurgião pediatra; presidente da AMPDS – Associação de Médicos Pelo
Direito à Saúde
Engenheiro; ex-director do Serviço de Instalações e Equipamentos do Centro
Hospitalar Universitário de Lisboa Norte; membro da direcção da Associação de
Técnicos e Engenheiros Hospitalares Portugueses e do conselho de redacção da
revista "Tecnohospital"; associado agregado da Associação de Médicos
pelo Direito à Saúde
Almirante, militar de Abril
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