Vírus tudo o que
é sólido se desfaz no ar
Como foram expulsas do sistema político, as alternativas irão entrar cada
vez mais frequentemente na vida dos cidadãos pela porta dos fundos das crises
pandémicas, dos desastres ambientais e dos colapsos financeiros. Ou seja, as
alternativas voltarão da pior maneira possível.
18 de Março de 2020 BSSantos
Existe um debate nas ciências sociais
sobre se a verdade e a qualidade das instituições de uma dada sociedade se
conhecem melhor em situações de normalidade, de funcionamento corrente, ou em
situações excepcionais, de crise. Talvez os dois tipos de situação sejam
igualmente indutores de conhecimento, mas certamente permitem-nos conhecer ou
relevar coisas diferentes. Que potenciais conhecimentos decorrem da pandemia do coronavírus?
A
normalidade da excepção. A actual pandemia não é uma
situação de crise claramente contraposta a uma situação de normalidade. Desde a
década de 1980 – à medida que o neoliberalismo se foi impondo como a versão
dominante do capitalismo e este se foi sujeitando mais e mais à lógica do
sector financeiro – o mundo tem vivido em permanente estado de crise. Uma
situação duplamente anómala. Por um lado, a ideia de crise permanente é um
oximoro, já que, no sentido etimológico, a crise é por natureza excepcional e
passageira e constitui a oportunidade para ser superada e dar origem a um
melhor estado de coisas. Por outro lado, quando a crise é passageira, ela deve
ser explicada pelos factores que a provocam. Mas quando se torna permanente, a
crise transforma-se na causa que explica tudo o resto. Por exemplo, a crise
financeira permanente é utilizada para explicar os cortes nas políticas sociais
(saúde, educação, previdência social) ou a degradação dos salários. E assim
impede que se pergunte pelas verdadeiras causas da crise. O objectivo da crise
permanente é não ser resolvida. Mas qual é o objectivo deste objectivo?
Basicamente, são dois os objectivos: legitimar a escandalosa concentração de
riqueza e impedir que se tomem medidas eficazes
para impedir a iminente catástrofe ecológica. Assim temos vivido nos últimos 40 anos. Por isso, a pandemia vem apenas
agravar uma situação de crise a que a população mundial tem vindo a ser
sujeita. Daí a sua específica periculosidade. Em muitos países, os serviços
públicos de saúde estavam há dez ou 20 anos mais bem preparados para enfrentar
a pandemia do que estão hoje.
A
elasticidade do social. Em cada época histórica, os
modos dominantes de viver (trabalho, consumo, lazer, convivência) e de
antecipar ou adiar a morte são relativamente rígidos e parecem decorrer de
regras escritas na pedra da natureza humana. É verdade que eles se vão
alterando paulatinamente, mas as mudanças passam quase sempre despercebidas. A
irrupção de uma pandemia não se compagina com tal tipo de mudanças. Exige
mudanças drásticas. E, de repente, elas tornam-se possíveis como se sempre o
tivessem sido. Torna-se possível ficar em casa e voltar a ter tempo para ler um
livro e passar mais tempo com os filhos, consumir menos, dispensar o vício de
passar o tempo nos centros comerciais, olhando para o que está à venda e
esquecendo tudo o que se quer mas só se pode obter por outros meios que não a
compra. A ideia conservadora de que não há alternativa ao modo de vida imposto
pelo hipercapitalismo em que vivemos cai por terra. Mostra-se que só não há
alternativas porque o sistema político democrático foi levado a deixar de
discutir as alternativas. Como foram expulsas do sistema político, as
alternativas irão entrar cada vez mais frequentemente na vida dos cidadãos pela
porta dos fundos das crises pandémicas, dos desastres ambientais e dos colapsos
financeiros. Ou seja, as alternativas voltarão da pior maneira possível.
A
fragilidade do humano. A rigidez aparente das
soluções sociais cria nas classes que tiram mais proveito delas um estranho
sentimento de segurança. É certo que sobra sempre alguma insegurança, mas há
meios e recursos para os minimizar, sejam eles os cuidados médicos, as apólices
de seguro, os serviços de empresas de segurança, a terapia psicológica, as
academias de ginástica. Este sentimento de segurança combina-se com o de
arrogância e até de condenação para com todos aqueles que se sentem vitimizados
pelas mesmas soluções sociais. O surto viral interrompe este senso comum e
evapora a segurança de um dia para o outro. Sabemos que a pandemia não é cega e
tem alvos privilegiados, mas mesmo assim cria-se com ela uma consciência de
comunhão planetária, de algum modo democrática. A etimologia do termo pandemia
diz isso mesmo: todo o povo. A tragédia é que neste caso a melhor maneira de
sermos solidários uns com os outros é isolarmo-nos uns dos outros e nem sequer
nos tocarmos. É uma estranha comunhão de destinos. Não serão possíveis outras?
Os fins
não justificam os meios. O abrandamento da actividade
económica, sobretudo no maior e mais dinâmico
país do mundo, tem óbvias consequências negativas. Mas tem, por outro lado,
algumas consequências positivas. Por exemplo, a diminuição da poluição
atmosférica. Um especialista da qualidade do ar da agência especial dos EUA
(NASA) afirmou que nunca se tinha visto uma quebra tão dramática da poluição
numa área tão vasta. Quererá isto dizer que no início do século XXI a única
maneira de evitar a cada vez mais iminente catástrofe ecológica é por via da
destruição massiva de vida humana? Teremos perdido a imaginação preventiva e a
capacidade política para a pôr em prática?
É também conhecido que, para controlar eficazmente
a pandemia, a China accionou métodos de repressão e de vigilância
particularmente rigorosos. É cada vez mais evidente que as medidas foram eficazes. Acontece que a China, por muitos méritos que tenha, não tem o de ser um
país democrático. É muito questionável que tais medidas pudessem ser accionadas
ou accionadas com igual eficácia num país democrático. Quer isto dizer que a
democracia carece de capacidade política para responder a emergências? Pelo
contrário, The
Economist mostrava no início deste ano que as
epidemias tendem a ser menos letais em países democráticos devido à livre
circulação de informação. Mas como as democracias estão cada vez mais
vulneráveis às fake
news, teremos de imaginar soluções
democráticas assentes na democracia participativa ao nível dos bairros e das
comunidades e na educação cívica orientada para a solidariedade e cooperação, e
não para o empreendedorismo e competitividade a todo custo.
A guerra
de que é feita a paz. O modo como foi inicialmente
construída a narrativa da pandemia nos media ocidentais tornou evidente a vontade de
demonizar a China. As más condições higiénicas nos mercados chineses e os
estranhos hábitos alimentares dos chineses (primitivismo insinuado) estariam na
origem do mal. Subliminarmente, o público mundial era alertado para o perigo de
a China, hoje a segunda economia do mundo, vir a dominar o mundo. Se a China
era incapaz de prevenir tamanho dano para a saúde mundial e, além disso,
incapaz de o superar eficazmente, como confiar na tecnologia do futuro proposta
pela China? Mas terá o vírus nascido na China? A verdade é que, segundo a
Organização Mundial da Saúde, a origem do vírus ainda não está determinada. É,
por isso, irresponsável que os meios oficiais dos EUA falem do “vírus
estrangeiro” ou mesmo do “coronavírus chinês”, tanto mais que só em países com
bons sistemas públicos de saúde (os EUA não são um deles) é possível fazer
testes gratuitos e determinar com exactidão os tipos de influenza ocorridos nos últimos meses. Do que sabemos com certeza é que, muito para
além do coronavírus, há uma guerra comercial entre a China e os EUA, uma guerra
sem quartel que, como tudo leva a crer, terá de terminar com um vencedor e um
vencido. Do ponto de vista dos EUA, é urgente neutralizar a liderança da China
em quatro áreas: o fabrico de telemóveis, as telecomunicações da quinta geração
(a inteligência artificial), os automóveis eléctricos e as energias renováveis.
A
sociologia das ausências. Uma pandemia desta dimensão
causa justificadamente comoção mundial. Apesar de se justificar a dramatização
é bom ter sempre presente as sombras que a visibilidade vai criando. Por exemplo,
os Médicos Sem Fronteiras estão a alertar para a extrema vulnerabilidade ao
vírus por parte dos muitos milhares de refugiados e imigrantes detidos nos
campos de internamento na Grécia. Num desses campos (campo de Moria) há uma torneira de água para 1300 pessoas e falta sabão. Os internados não
podem viver senão colados uns aos outros. Famílias de cinco ou seis pessoas
dormem num espaço com menos de três metros quadrados. Isto também é Europa – a
Europa invisível.
Director Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
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