“Entre 1918-1919 (terá começado em 1917 nos acampamentos de guerra), a pneumónica vitimou aproximadamente 100 milhões de pessoas, sobretudo jovens adultos, entre eles Amadeo de Souza-Cardoso. Depois o mundo ficou muito diferente do que era? O nazismo forjou-se no decénio seguinte, tendo o horror dos seus efeitos actuado pelo menos até 1945. Nos anos seguintes, o mundo ficou muito diferente?”
esta crise é “um aviso do que nos espera com as alterações climáticas” —, dizem que “não haverá um mundo novo, mas um mundo em conflito com forças novas, motivações novas, a manifestarem-se”.
“Acentuar-se-á a necessidade da formação ética da maioria das consciências. Temos vivido sob o paradigma estrito da eficácia e rentabilidade.
“isto implica uma tomada de consciência da nossa finitude e da condição falível do humano, apesar dos grandes progressos da ciência”.
“Não se trata do aumento da longevidade, mas do absurdo de prometer a duração ilimitada da vida individual, ao mesmo tempo que se destrói sem dó nem piedade o Sistema-Terra que é o suporte fundamental da vida humana”.
“A normalidade, como a conhecemos antes, não voltará a reconstituir-se. As forças que nos conduziram a este caos, que apenas está a começar, não estão preparadas para outra coisa que não o aumento da desordem. O ‘novo mundo’ que nascerá depois da crise, de duração e dimensão difíceis de aquilatar, vacilará entre a entropia e a reforma. Se olharmos para as actuais lideranças das democracias, de Donald Trump e Boris Johnson, a Jair Bolsonaro, passando pelos paroquiais e assustados regedores dos países da União Europeia, é difícil encontrar sequer a sombra da inteligência e capacidade de coordenação necessárias para mitigar os danos e sofrimentos inevitáveis. A possibilidade de colapso por implosão ou fragmentação (da União Europeia, por exemplo) é imensa. O nosso absoluto dever é lutar pela reforma. Precisamos de uma grande estratégia mundial para garantir a paz, reinventando o nosso habitar económico e social da Terra.”
“O quotidiano tenderá a reinstalar-se, mas novos modos de inter-relação permanecerão. As repercussões serão profundas na organização das instituições, nas actividades comerciais e económicas, com grande impacto no trabalho e na mobilidade”.
“É um acontecimento único nas nossas vidas e na História mais longínqua. A globalização faz desta epidemia um evento global. Noutros momentos de acentuada entropia social — epidemias, catástrofes naturais e guerras —, as zonas de crise eram circunscritas e permitiam sempre a fuga a partir de dentro ou o auxílio a partir de fora. Neste caso, a crise está em todo o lado e por isso não há fuga possível nem auxílio externo suficiente.”
“Nas relações interpessoais nota-se um aumento dos níveis de stress e conflitualidade, provocados pela crise e isolamento social. As consequências para a saúde mental da população serão importantes.” Além disso, há a clivagem entre gerações: “Os mais novos tendem a considerar-se a salvo e os mais velhos vivem aterrorizados ou resignados. A clivagem geracional está a dar azo a uma clivagem societária geral e perigosa. Ouvem-se de novo ideias malthusianas, mais ou menos disfarçadas, quando se pensa que esta epidemia irá dizimar grupos-alvo, como os maiores de 70 anos, os portadores de doença crónica ou os presos. Ou seja, pessoas consideradas mais descartáveis
“todas as sociedades irão empobrecer de forma acentuada” e que “a recuperação poderá ser lenta, precisamente porque não há zonas ‘fora’ da crise”
Em termos políticos, se nesta primeira fase “assistimos ao reforço do Estado e à popularidade dos líderes capazes de tomar decisões, quando a crise sanitária for minimizada e o aspecto mais relevante for a crise económica, o mais provável é que, como sempre acontece após uma guerra externa, muitos líderes terão de sair de cena”.
Se a abordagem democrática tiver claramente menos sucesso do que a abordagem autocrática, isso será um problema no futuro próximo. Muitos regimes democráticos, incluindo na Europa, estão já sob pressões populistas de direita que desejam aplicar políticas nativistas e autoritárias. Se as democracias não tiverem sucesso no combate, poderão entrar em deriva autoritária.”
Outra marca política será o acentuar da “tendência paradoxal” para o unilateralismo, em vez do multilateralismo e da cooperação internacional, o que seria lógico numa pandemia global. “Mas não era essa a tendência. Pelo contrário: as crises climática e migratória, que são globais e necessitariam de respostas globais, mostraram uma tendência para o nacionalismo e para as estratégias nacionais independentes.”
“seria irresponsável fazer tábua rasa do sofrimento, dor e prejuízo para retomarmos os velhos hábitos, a anemia social, o individualismo exacerbado, a tentação do domínio total das forças da natureza, o cientismo acrítico”.
“Não sei se haverá um novo mundo pós-covid-19” “Mas ouso esperar que se operem mudanças.
O que isso pode provocar nas pessoas, sobretudo nas mais jovens, é um sentimento do peso, da urgência e da seriedade da vida que contraste em absoluto com a leveza, a descontracção e ligeireza com que se tende a viver hoje nas sociedades que são mais responsáveis pela destruição do planeta. Só um tal sentimento — se for generalizado — pode mudar o muito que precisa de ser mudado no modo como vivemos e nos organizamos. É difícil crer nisso; é ainda mais difícil prever isso; mas é isso que é desejável.”
o número de aviões, cheios de pessoas atarefadas a saltar de lugar em lugar, sobrevoando a terra inteira, brada aos céus. Aqui os ensinamentos da cantiga Acesso Bloqueado, do Sérgio Godinho, são insuperáveis. Urgente ouvir.”
“O medo da morte é indefensável e irracional”
numa crise como esta, “dificilmente os governos poderão deixar de ter em conta a pressão da opinião pública — ela reflecte o medo da morte que, como nos ensinou [Thomas] Hobbes, é a paixão política fundamental. O medo tende à dissolução da própria ordem social, ao ‘estado de natureza’ e, por isso, compete aos governos aplacá-lo e colocá-lo antes ao serviço da adesão à organização política da sociedade. Os governos têm de dar respostas ao medo e ao pânico que dele deriva. Isso acontece de forma mais rápida nos regimes democráticos, mas acaba por acontecer também em regimes autocráticos,
Os humanos são os que sabem, desde muito cedo, que vão morrer: isso distingue-nos dos outros seres vivos. Quando a morte deixa de ser uma abstracção, uma possibilidade remota ou teórica, pode começar a preparação para a morte de que falava Platão, pode começar o exercício filosófico de viver com essa possibilidade diante de si, de a confrontar, de a ponderar, de pensar diariamente nesse impensável que pode estar ao virar da esquina — e não apenas quando um vírus nos ameaça.”
todos têm medo da morte e que o medo aumenta quando, em casos de “epidemias, desastres naturais, condições inóspitas e diagnósticos ‘reservados’”, a pessoa se sente “desarmada e sem condições para enfrentar o risco”. Mas na pandemia da covid-19, diz, “sabemos que há procedimentos e atitudes que minimizam o risco do contágio e que, se aderirmos a estas regras seguras, contribuiremos de forma decisiva para nos mantermos sãos e não infectarmos outros — o cuidado em preservar a nossa saúde não é egoísta.”
Outra das questões que emergiram nesta pandemia é a dos médicos que têm de escolher entre quem vão tentar salvar e quem vão deixar morrer, como já acontece em Espanha e Itália. Qual é a resposta mais justa para este dilema, o melhor sistema ético ou como se pesa o equilíbrio de valores?
Por outro lado, mesmo o melhor sistema público de saúde não poderia estar preparado para uma pandemia como esta. Ninguém e nenhuma sociedade podem viver sob ameaça constante. A vida não é um conjunto indefinido de gestos e técnicas de prevenção.”
“Neste caso, o que seria mais justo não é praticável porque envolve juízos sobre o valor moral dos pacientes: se só podemos salvar uma pessoa em duas, é mais justo salvar a pessoa A, que é generosa, altruísta e deu importantes contributos para outras pessoas, do que a pessoa B, que é egoísta, mesquinha, frívola e de tal modo autocentrada que nunca contribuiu para um mundo melhor. Uma vez que isto é impraticável, é comum os médicos usarem medidas objectivas e isso está correcto. Ou seja, se é mais provável que se consiga salvar a pessoa B do que a A, tenta-se salvar esta, sem mais considerações.”
“Suponhamos esta dupla situação de pandemia: em situação sanitária controlada, decide-se dar aos mais vulneráveis (idosos e outros) a prioridade dos cuidados médicos. (A decisão contrária seria imoral e indigna). Nesta situação, estava implícito que os menos vulneráveis assegurariam a sobrevivência da população. Mas em situação-limite (uma guerra), em que a população inteira está ameaçada de morte iminente, aceita-se (moralmente) inverter o critério: os mais novos, os que têm mais chances de sobreviver, serão tratados prioritariamente. Entre estes dois casos extremos, toda uma série de situações pode nascer: nela se situam aquelas em que os médicos italianos e espanhóis se encontram
“Pelo menos nestes primeiros dias de isolamento”, diz Constâncio, “muitas pessoas vão descobrir que há muitas actividades que levamos a cabo como fins em si mesmos que têm um prazer intrínseco — um prazer que está na própria actividade e não num fim exterior a ela. A filosofia, a arte, o jogo são assim. Talvez o mundo mudasse se todos descobríssemos isso”.
“Este confinamento não é um lazer. Mesmo que haja quem consiga transformar este tempo em tempo de ócio, colectivamente isso é impossível. O tumulto e a catástrofe que desabam sobre o nosso país e sobre o mundo todos os dias não podem deixar de nos angustiar. No entanto, além do que a transformação da vida quotidiana traz de novo ao indivíduo — que muitas vezes descobre uma vida nova (mas nunca sossegada e livre) —, está a formar-se um outro espaço de comunicação entre as pessoas.
“Só quem é intrinsecamente livre sobreviverá, quem quis ‘ter’ coisas pode perceber que é pobre. Só o espírito nos salva.”
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