A pandemia está a gerar muitos debates, interrogações e propostas sobre
a sociedade tal como existe hoje, como foi construída e se o mal que causa
também poderá ser o ponto de partida para algo novo e melhor.
O vírus escancarou portas e janelas revelando que a fachada escondia um
interior apodrecido, serviços de saúde voltados para o mercado e não para o
cidadão, falta de meios e material para socorrer capazmente catástrofes, como
os incêndios já tinham denunciado.
Não foi uma surpresa, há muito que cientistas, filósofos, economistas,
ambientalistas e outros vinham avisando que o que está a acontecer iria
acontecer.
Será que vamos aprender alguma coisa ou a maioria está desejosa de
voltar ao mesmo, a um consumo capitalista irresponsável que mede a “felicidade”
de cada um pelo número de objectos que possui?
Este texto do filósofo José Gil, na sequência de outros que tem
publicado (assim como pelos seus livros), coloca observações pertinentes que
merecem leitura. Não é por acaso que está considerado entre os melhores vinte pensadores
da actualidade.
MC
A pandemia e o
capitalismo numérico
A verdade é que este período de luta pela sobrevivência física não gerou
até agora nenhum sobressalto político ou espiritual, nenhuma tomada de
consciência da necessidade de mudar de vida. Não gerou esperança no futuro.
José Gil
12 de Abril de 2020
A pandemia da Covid-19 pode vir a
modificar radicalmente o modo de vida das sociedades actuais, pré e
pós-industriais. Um factor decisivo dessa transformação serão as novas
tecnologias, que virão a ganhar uma importância maior na economia e nas
relações sociais. Formar-se-á um novo tipo de subjectividade, a “subjectividade
digital”, já em gestação nas sociedades actuais, mas que, no futuro, se
colocará no centro do novo “capitalismo numérico”, como condição essencial do
seu funcionamento. Entretanto, vivemos uma crise de transição, que compromete
as próprias subjectividades.
Pandemia e desterritorialização
Mesmo antes de ser declarada a quarentena em Wuhan, sete milhões de chineses saíram da cidade e espalharam-se pelo mundo. A
região da Lombardia, na Itália, que mantinha voos directos para a região mais
contaminada da China, foi rapidamente atingida. A França, a Alemanha, a
Espanha, o Reino Unido e, muito rapidamente a Europa, foram infectados.
Alastrando a todos os continentes, a pandemia cobriu o planeta em poucos meses.
Uma disseminação tão célere e imprevisível deveu-se às características do novo
vírus, mas só foi possível graças à deslocação intensa de indivíduos e grupos,
através da rede extraordinária de comunicações e transportes que liga hoje os
países uns aos outros.
Trata-se de uma torrente imparável de
gente sempre a ir e a vir, em que participam homens de negócios, políticos,
universitários e estudantes, turistas (em turismo de massa ou individual) e multidões que se deslocam para assistir a acontecimentos culturais,
desportivos ou religiosos, sem esquecer os milhões de migrantes fugindo da
guerra e da fome. Estas vagas imensas de pessoas que vão de um território a
outro, alimentam a desterritorialização geral, contínua, que não cessa de
crescer. Ao disseminar-se, o vírus da pandemia não fez mais do que percorrer o
mapa mundial da desterritorialização.
As máscaras, um novo elemento visual da paisagem Reuters/Ahmed Yosri
A pandemia resultou da
desterritorialização, é a manifestação extrema da doença tecno-capitalista que
há mais de dois séculos se infiltrou nas sociedades humanas. E que, tal como um
vírus, vai contagiando território após território, país após país, continente após
continente: é o capitalismo global que transforma a Terra inteira, submetendo-a, como um contágio epidémico,
ao seu funcionamento. Se o novo coronavírus prolonga o movimento
desterritorializante da economia capitalista, é porque esta é, no seu
desenvolvimento e propagação, propriamente pandémica.
A primeira reacção contra a pandemia
visou, logicamente, conter a sua proliferação: contrariando ao máximo a
desterritorialização, impôs-se a quarentena a centenas
de cidades, e confinaram-se os cidadãos nos seus
locais de residência. Fecharam-se aeroportos, estações de comboios, portos e
estradas, sítios onde as aglomerações de pessoas aumentam os riscos de
contaminação. Porque a desterritorialização implica não apenas a deslocação,
mas também o seu contrário complementar, os mais variados ajuntamentos de
“pessoas sós”, que se encontram nas gares ferroviárias ou nos festivais de
música. Cancelaram-se eventos de toda a espécie, proibiram-se saídas e
passeios. Numa palavra, reterritorializaram-se os
indivíduos nas suas casas, incentivando-os a cultivar
um tipo de vida esquecido, por assim dizer “arcaico”, familiar e mais “humano”,
que o regime habitual de trabalho havia sempre impedido.
O confinamento universal e a reactivação
de modos de vida supostamente harmoniosos, mas já erodidos e ineficazes, levam
à formação de novas subjectividades, mais adaptadas à “economia numérica”. A
generalização do teletrabalho, a digitalização máxima dos serviços e a
virtualização das deslocações e das relações sociais terão, muito
provavelmente, consequências drásticas nas transformações da sociedade.
Se, até aqui, se alargava a desfasagem
crescente entre o desenvolvimento da economia financeira global e os processos
de subjectivação – que misturavam subjectivações digitais e subjectivações
arcaicas, estas ligadas ainda às sociedades industriais e pré-industriais -,
agora o vazio parece poder ser preenchido. A época de transição chega ao seu
fim.
A nossa ideia é simples: a pandemia será
o agente mediador da passagem de uma fase histórica do capitalismo (o
capitalismo industrial-financeiro) – cada vez mais perturbada e caótica, cada
vez menos viável no contexto geral da sociedade e do Estado – para uma outra
fase em que se procuram os ajustamentos necessários entre as exigências
económicas e as subjectividades que, em todos os domínios, do teletrabalho às
práticas de lazer, lhes correspondam adequadamente.
Conseguir-se-ia, assim, um equilíbrio,
sem dúvida precário, mas que asseguraria o desenvolvimento sem entraves do
capitalismo digital: eis o que está inscrito, eis o que visa o impulso
imparável da dinâmica capitalista. Evidentemente, serão precisas
subjectividades apropriadas, com o máximo de consenso colectivo e individual, e
o mínimo de conflito.
Terá sido necessário o surgimento de uma pandemia
mortífera para adaptar as subjectividades às novas exigências
do capitalismo global. A Covid-19 seria o trampolim a catapultar a
colectividade para um nível superior, o da sociedade digital. Em vez de
progredir gradualmente, passando por fases mediadoras, a pandemia vai obrigar a
um salto brutal, impondo indiscriminadamente a digitalização de todas as
actividades. Inverter-se-ia a ordem de
subordinação: o digital, que estava submetido à hegemonia de hábitos ligados ao
corpo físico (a desterritorialização obrigava os corpos a deslocarem-se ou a
desapropriarem-se de si próprios), tornar-se-ia dominante, condicionando os
outros actos sociais, quando não os suprimia.
O que se procurava, afinal, era que as
gerações pré-pandémicas, com a sua cultura humanista, os seus hábitos
jurídicos, a sua consciência judeo-cristã, não entravassem mais o livre
funcionamento da economia. Só pelo número de mortos idosos, a pandemia já
ajudou a limpar o horizonte. Mas foi sobretudo pela construção de novas
práticas, novos constrangimentos, novos hábitos de prazer a que obrigou o
isolamento social, que as subjectividades digitais poderão florescer e dominar.
Serão subjectividades desterritorializadas, de certo modo, nómadas e
transparentes, mas reterritorializadas
no digital.
A inteligência artificial terá sem dúvida um papel decisivo neste processo de sedentarização. As
novas subjectividades caracterizar-se-ão pela submissão e adequação dos corpos
às (ou mesmo a sua exclusão das) tarefas da economia digital, e a
permeabilização das mentes às ordens e necessidades da vida virtual. A nova
subjectividade comportará capacidades passivas de obediência voluntária e
capacidades activas de funcionamento programado. Estas características estavam
já presentes na subjectividade digital pré-pandémica, que descrevemos acima.
O capitalismo, a esperança e as forças
de vida
Vivemos, neste momento, dois tempos
diferentes, em simultâneo: o nosso presente da vida confinada e o tempo da
espera que a pandemia acabe. Nem um nem outro, nem os dois sobrepostos, ajudam
a agir. Alguns pensam que este período de isolamento deverá ser aproveitado
para tomar consciência da necessidade de mudar de vida, recusando voltar à
“normalidade”. A normalidade representa o tecno-capitalismo e a vida caótica
que ele engendra.
Através das fragilidades e
insuficiências das políticas de saúde, esta crise revelou in vivo a desigualdade que condena
tendencialmente os pobres à contaminação e à morte, a indiferença dos sistemas económicos perante o sofrimento e a doença, ou
a falta de solidariedade e de coesão dos Estados membros da União Europeia. Mas
mais profundamente, ela mostrou, segundo muitos, a futilidade e o vazio da vida
sem sentido em que os povos viviam antes da pandemia. Apareceram então – e
continuam a aparecer – certos pensadores, laicos e religiosos, que afirmam ser
esta pandemia a ocasião única para operar “revoluções” ou “reformas interiores”
ou “conversões” radicais que trouxessem uma mudança radical no modo de vida da
humanidade.
A verdade é que este período de luta
pela sobrevivência física não gerou até agora nenhum sobressalto político ou espiritual,
nenhuma tomada de consciência da necessidade de mudar de vida. Não gerou
esperança no futuro. No nosso país, a unidade nacional foi reforçada apenas no
sentimento colectivo de compaixão pelos mortos e doentes, e pela gratidão para com os médicos e
enfermeiros. Talvez um pouco, também, pela adesão
geral à política do governo.
Não se conceberam nem novos valores
éticos, nem novos programas económicos ou práticas políticas. E nem a violência
brutal do sofrimento e da morte nos hospitais, escancarada no espaço público
mediático, conseguiu varrer as imagens enganadoras com que nos habituámos a
lidar com a realidade. O confinamento não favoreceu a reflexão e a acção, pelo
contrário, suspendeu o tempo, a vida activa e o pensamento. O contágio temido, imaginado, alucinado,
foi o único acontecimento que condicionou as emoções e os gestos quotidianos.
Se, com o confinamento, fugimos à
desterritorialização desabrida que vivíamos antes da pandemia, não nos
reterritorializaremos, afinal, senão no digital. Quando se diz “estamos todos
juntos nesta luta” ou “só com o esforço de todos poderemos vencer o vírus”,
este “todos” que compreende sobretudo os confinados constitui, no fim de
contas, uma realidade virtual. Estamos, virtualmente com todos e com a comunidade,
em que participamos à distância, separando-nos dela. É toda a vida que se
virtualiza.
De resto, o confinamento não foi e não é
um tempo de expansão e alegria. Com as ruas desertas, as cidades silenciosas e
o sofrimento gritante dos doentes, a casa em que nos fechámos não constitui,
propriamente, um lugar de entusiasmo e criação. Nem propício à meditação
metafísica, nem à elaboração de grandes projectos de vida. Afinal, a grande
maioria das pessoas quer “voltar à normalidade” (ou, a uma “nova normalidade”, como diz Cuomo, o governador do estado de Nova Iorque).
Ao ver o desejo premente e angustiado
dos políticos de certos países da Europa, de acabar, neste mês de Abril, com o
isolamento obrigatório para pôr a economia a
funcionar, constata-se que se está a preparar tudo para voltar e retomar – por
mais difícil que venha a ser – o estado de coisas anterior. A economia versus a
saúde, como se tem dito, ou a vitória da economia contra a saúde (nos vários
sentidos da palavra). O tecno-capitalismo voltará a funcionar, talvez não como
dantes, talvez como “capitalismo numérico”, construindo rapidamente novas
subjectividades digitais. Não escaparemos ao seu poder de preservação,
auto-regeneração e metamorfose.
Resta-nos ver mais longe, e prepararmo-nos,
com o máximo das nossas forças de vida: esta crise não é independente da crise
ecológica que estamos já a viver e que em breve atingirá um patamar
irreversível. Aí, e porque para ela não haverá vacina, teremos todos de pôr
radicalmente em questão o tecno-capitalismo e os seus modos de vida, se
quisermos ter um (outro) destino na Terra.