Geopolítica do
coronavírus
A pandemia veio reforçar o poder dos Estados ao mesmo tempo que aumenta a
sua interdependência. Como pode ser-se mais forte e mais dependente em
simultâneo?
14 de Abril de 2020
Analisemos três questões sobre o mundo
que aí vem: as novas ameaças, a crise das organizações internacionais e o papel
dos Estados.
Perante novas ameaças, novas estratégias
As questões de política internacional
costumam distinguir-se entre alta e baixa política. A alta política diz respeito à sobrevivência e segurança dos Estados; a baixa política, a tudo o resto (como o comércio ou a cultura). Esporadicamente, alguns
temas de baixa política adquirem relevância estratégica e passam a
considerar-se de alta política, num processo designado por ‘securitização’. A pandemia veio transformar a saúde pública numa área de alta política. No entanto,
ao contrário de ameaças clássicas como as militares, a proteção contra as
pandemias não requer o exercício de poder sobre outros Estados, mas com outros
Estados. A saúde pública não é um bem privado, coletivo ou de clube, mas de
rede.
Os bens privados são aqueles que um Estado possui em
exclusividade e de cuja utilização pode excluir terceiros. É o caso de um
porta-aviões nuclear.
Os bens coletivos são aqueles que um conjunto de Estados
produz mas de cujo usufruto não pode excluir terceiros. As regulações marítimas
e a estabilidade financeira internacional são bons exemplos. Os bens coletivos
geram incentivos para a defeção (ou seja, para não pagar por eles porque se
lhes pode aceder de qualquer forma). Para isto há duas soluções: uma consiste
em monitorizar e punir a defeção; outra em aceitá-la. Puni-la requer
autoridade, aceitá-la requer liderança. A liderança consiste na decisão de um
país ou grupo de países aceitar pagar um custo desproporcionado (mas ainda
assim conveniente) pela produção do bem coletivo. Os Estados Unidos cumpriram
até há pouco esse papel, mas deixaram de o fazer.
Os bens de clube são aqueles que um grupo de Estados
possui em exclusividade e de cujo usufruto pode excluir terceiros. Um exemplo
pode encontrar-se na ação de organizações regionais, as quais defendem
prioritariamente os seus membros. Pertencer tem os seus privilégios.
Os bens de rede são aqueles cuja utilidade aumenta com
a sua difusão: quanto mais usuários os possuam, melhor para todos. O exemplo
mais elucidativo são as vacinas e a imunização em geral. Não é indiferente a
cada país que os outros estejam sãos ou doentes: convém-lhes que estejam sãos,
seja por razões sanitárias, seja por razões económicas.
Quando o objetivo é que todos tenham
algo, a
estratégia apropriada é a cooperação e não a
competição. As novas ameaças são ‘males de rede’, cuja capacidade de dano aumenta
com a sua difusão. Não existindo liderança internacional clara, enfrentá-las
exige cooperar
em rede mais que em clubes.
A crise das organizações internacionais
O efeito paradoxal da pandemia é que,
embora a sua superação exija cooperação internacional, o seu
combate imediato incita ao isolamento
nacional. O impacto destes incentivos cruzados
sobre as organizações tem sido assimétrico: embora quase nenhuma tenha estado à
altura, as organizações
políticas responderam pior que as técnicas. Assim, as Nações Unidas (ONU) têm tido um papel secundário, enquanto a
Organização Mundial da Saúde (OMS) se constituiu como referência para a maior
parte dos Estados. A nível regional aconteceu algo semelhante: enquanto a
resposta dos órgãos políticos da União Europeia (UE), a Comissão e o Conselho,
tem sido controversa e insuficiente, a do Banco Central Europeu (BCE) foi inicialmente deficiente mas posteriormente corrigida. E é do BCE, em última instância, que depende a sobrevivência do Euro,
cuja implosão poderia ser uma sequela mortífera do coronavírus.
Duas lições podem retirar-se desta
experiência. A primeira é que a cooperação técnica se mostrou mais útil e mais
efetiva que a cooperação política. A segunda é que a bifurcação entre as dimensões política e
técnica poderá dar lugar a uma globalização
‘desacoplada’, em que as esferas de influência dos Estados Unidos e da China
não se distinguirão por alinhamentos ideológicos, mas regulatórios, com padrões
técnicos e desenvolvimentos tecnológicos incompatíveis. Podemos estar a caminho
de um mundo dividido não entre liberalismo e autoritarismo, mas entre algo tipo
“Mac y PC”, no qual ficar de fora ou jogar ao meio não seja uma opção. A eleição de
qualquer dos dois tem um preço, porque os Estados Unidos continuarão a
controlar a divisa global enquanto a China definirá preços e decidirá
investimentos.
A pandemia incentivará o fortalecimento
do poder estatal, do qual existem dois tipos: o despótico e o infraestrutural.
Os Estados mais eficazes serão aqueles que mais cedo operem uma abertura
inteligente, e não aqueles que mais marcialmente mantenham o encerramento
O papel dos Estados
A pandemia não afeta todos igualmente,
porque o contexto local bifurca os impactos globais. Os países desenvolvidos enfrentam uma dupla
crise: sanitária e económica. Mas a crise nos
países menos desenvolvidos é
tripla: sanitária, económica e social. A
informalidade dos mercados laborais e a precaridade dos Estados de bem-estar
multiplicam as penúrias e dificultam as soluções. Embora a resposta à
emergência exija mais Estado, as capacidades estatais não se constroem à
pressa. O Estado não apenas cuida; também pode esmagar – por ação quando é
totalitário, por omissão quando é débil.
A pandemia incentivará o fortalecimento do poder estatal, do qual existem dois tipos: o despótico e o infraestrutural. O poder
despótico é a capacidade do Estado para atuar coercivamente sem restrições
legais ou constitucionais. O poder infraestrutural é a sua capacidade para
penetrar na sociedade e organizar as relações sociais. Uma vez mais, trata-se
da distinção entre o poder sobre os outros e o poder com os outros. Os Estados mais eficazes serão aqueles que mais cedo operem uma
abertura inteligente, e não aqueles que mais marcialmente mantenham o
encerramento.
O retorno do Estado não implica
necessariamente o retorno do nacionalismo. O Estado é um instrumento (de
ação coletiva), a nação
é um sentimento (de pertença coletiva). A eficácia do
Estado é independente da emotividade excludente do nacionalismo – embora a
emotividade não excludente do patriotismo seja sempre benvinda.
A pandemia veio reforçar o poder dos Estados ao mesmo tempo que aumenta a sua interdependência. Como pode ser-se mais forte e mais
dependente em simultâneo? Este é o paradoxo da interdependência: a capacidade
de um Estado não aumenta com o isolamento, mas com a gestão inteligente dos
fluxos com o exterior, sobretudo dos bens de rede (poder com
outros).
As ameaças do futuro envolvem a
rivalidade geopolítica e a competição tecnológica: sem cooperação, as
perspetivas do mundo que vem são sombrias. Porque as necessidades do futuro
incluem melhores capacidades estatais, menos nacionalismo e mais cooperação
internacional funcional: científica, sanitária e financeira. E, desejavelmente,
mais democracia – mas este é já um juízo normativo.
Helena
Carreiras é
directora do Instituto da Defesa Nacional. Andrés Malamud é investigador
principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
Os
autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico
Directora do Instituto da Defesa Nacional
Investigador principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa
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