Vírus e
elefantes
Esta Primavera, em que combatemos um novo vírus, é apenas mais um episódio
nesta luta pela sobrevivência, que dura há milhares de milhões de anos.
6 de Abril de 2020 Arlindo Oliveira
Em poucas semanas, praticamente todos os
portugueses ficaram a conhecer o conceito de evolução exponencial. O facto de
cada pessoa infectada poder passar o vírus a várias pessoas, aumentando
exponencialmente, com o tempo, o número de infectados, passou a estar
omnipresente nas nossas mentes, tornando muito familiar uma função matemática
que, até agora, era usada principalmente por engenheiros, economistas,
biólogos, epidemiologistas e outros cientistas. A verdade é que esta
característica exponencial da evolução dos seres vivos é bem conhecida há séculos,
e está na base de toda a diversidade que observamos no planeta e na civilização
humana. Se não fosse este potencial dos seres vivos para crescerem de forma
exponencial, o planeta seria profundamente diferente e nós nem sequer
existiríamos. A vida conquistou toda a Terra exactamente porque tem tendência a
crescer de forma exponencial.
Charles Darwin publicou, em 1859, o
livro que o tornou famoso, A Origem das Espécies, no qual tinha trabalhado durante
décadas e que descrevia a teoria da evolução. Cerca de um ano antes, Darwin
tinha publicado, juntamente com Alfred Wallace, um artigo que
descrevia estas ideias cuja autoria, pelas regras normais de atribuição de
crédito científico, deveria ser de ambos os autores. Por diversas razões, as
contribuições de Alfred Wallace acabaram por cair numa relativa
obscuridade, enquanto o nome de Darwin se tornou conhecido em todo o planeta. A
teoria da evolução que, desde então, foi o foco de tantas controvérsias,
interpretações e estudos, é talvez aquela que mais revolucionou a forma como
vemos o mundo e o papel que, como espécie humana, nele desempenhamos.
A teoria da evolução veio esclarecer
definitivamente o que é, talvez, a questão mais central que podemos colocar,
como seres humanos: como é que aparecemos, como é que fomos criados? A resposta
dada pela teoria da evolução, peremptória e incontornável, é que fomos criados
pela evolução natural, por um algoritmo que, ao longo de milhares de milhões de
anos, optimizou os seres vivos na sua luta pela sobrevivência. Como Darwin
percebeu, a evolução das espécies depende, criticamente, desta capacidade dos
seres vivos se reproduzirem de forma exponencial (ou geométrica, para usar uma
outra expressão). Darwin escreveu “Não existe excepção para a regra de que cada ser vivo se reproduz a uma
taxa tal que, se não for destruído, a Terra ficaria rapidamente coberta pela
descendência de um só par. (…) O elefante é supostamente o animal que se
reproduz mais lentamente, e fiz algum esforço para estimar a velocidade a que
se pode reproduzir: não estarei a errar por excesso se assumir que se reproduz
quando tem trinta anos, até atingir os noventa anos, criando três pares de
crias nesse intervalo; se for assim, ao fim de cinco séculos existirão quinze
milhões de elefantes, descendentes do par original.”
Curiosamente, Darwin enganou-se nas
contas, como fez notar William Thomson, que se veio a tornar famoso
como Lord Kelvin, tendo determinado o valor da menor temperatura
possível e dado o nome à escala absoluta de temperaturas. Se analisarmos a
progressão proposta por Darwin, verificamos que ela dá origem a uma sequência
que se aproxima rapidamente de uma evolução exponencial com parâmetro 1,618,
por geração. Significa que, a cada 30 anos, o número de elefantes vivos se
multiplica por 1,618. Fazendo as contas, existem apenas 14 elefantes após 100
anos e 8360 depois de 500 anos, não os 15 milhões que Darwin contabilizou. Mas,
embora tendo errado nas contas, Darwin tinha razão na essência do argumento. Ao
fim de 1000 anos existiriam 30 milhões de elefantes e, após apenas três mil
anos, existiriam 3000 triliões (um 1 seguido de 21 zeros) de elefantes se,
claro, não existissem limites físicos. Na (impossível) ausência de limites
físicos, ao fim de apenas 7000 anos, a “esfera” de elefantes, agora com um
número de animais igual a 10 elevado a 50 (um 1 seguido de 50 zeros), teria um
diâmetro de 200 anos-luz e cresceria à velocidade de luz!
Tal como os infectados por covid-19 e os elefantes, o vírus reproduz-se exponencialmente, usando as
células dos hospedeiros para fabricar cópias de si mesmo. Como acontece com
todas as espécies, esta reprodução exponencial será sempre travada por outros
factores: incapacidade de recrutar novos hospedeiros, uso de vacinas,
utilização de tratamentos ou, no caso mais drástico e dramático, inexistência
de novos hospedeiros porque já todos foram infectados e morreram ou
desenvolveram resistência. O controlo dos três primeiros mecanismos está ao
nosso alcance e todos podemos contribuir, ao manter o isolamento social, para
impedir o vírus de recrutar novos hospedeiros.
Este processo, de evolução exponencial
de um vírus, de uma bactéria ou de outro animal ou vegetal, está na origem da
vida e na criação de todas as espécies que existem. Há milhares de milhões de
anos, as primeiras estruturas, usando mecanismos que desconhecemos, conseguiram
reproduzir-se de forma exponencial e iniciaram a colonização do planeta. Ao
longo desses milhares de milhões de anos, as espécies tornaram-se mais eficazes
neste processo, desenvolvendo novos mecanismos para identificar comida e evitar
os inimigos. As células individuais agregaram-se em grandes colónias, que
partilham o mesmo DNA, conduzindo aos organismos multicelulares, animais e
plantas. A capacidade de processar informação veio a revelar-se chave na
competição pela sobrevivência, e a pressão evolutiva fez com que se
desenvolvessem cérebros, cada vez mais complexos. Cérebros suficientemente
avançados levaram à criação de cultura, ciência e tecnologia, que temos agora
ao nosso dispor para combater os nossos inimigos. Todos os dias as diferentes
espécies lutam para sobreviver e se reproduzir, desde os organismos mais
complexos, como os seres humanos e os elefantes, aos mais simples, como os
vírus, que precisam de infiltrar seres vivos para se reproduzirem.
Esta Primavera, em que combatemos um novo
vírus, é apenas mais um episódio nesta luta pela sobrevivência, que dura há
milhares de milhões de anos. A espécie humana tem, do seu lado, uma capacidade
única para perceber os mecanismos usados pelas outras espécies. É essa capacidade, a inteligência, que nos distingue dos animais e dos outros organismos. É essa capacidade
que nos permitirá ultrapassar, sem danos significativos para a civilização,
mais esta batalha pela sobrevivência. Que não será a última, nem a mais severa.
Outros vírus, outras bactérias e outras doenças, potencialmente mais letais,
continuarão a ameaçar a nossa sobrevivência como indivíduos e, no caso mais
dramático, como espécie. Mas a inteligência humana coloca do nosso lado um
arsenal de capacidade inigualável, que nos permitirá combater qualquer ameaça
desta natureza. O maior inimigo da espécie humana não são os vírus, as
bactérias ou qualquer animal. O nosso maior inimigo somos nós mesmos
porque, pela primeira vez, uma espécie tem a capacidade de se autodestruir.
Esse é o maior risco para a espécie humana, aquele contra o qual devemos estar
precavidos e atentos.
Professor do IST e director do INESC
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