O coronavírus e
a batalha da espécie humana
Nestes tempos sombrios gostava de falar de esperança mas baseada no
conhecimento. E também de esperança na espécie humana, na nossa criatividade,
na nossa capacidade de dar a volta às situações mais difíceis.
1 de Abril de 2020 António Costa Silva
Não vamos ter ilusões. A tragédia global
provocada pela pandemia do coronavírus
é séria e é um dos maiores desafios já colocados à sobrevivência da espécie
humana. Parece uma ironia do destino. Há alguns meses atrás estávamos
preocupados, e bem, porque a espécie humana, no seu afã de dominar e subjugar a
natureza, estava a destruí-la e a caminhar para o
apocalipse climático. De repente é a própria espécie humana que é
ameaçada pela natureza, na forma de um vírus microscópico, invisível e letal.
A realidade é mais complexa do que todas
as nossas frágeis teorias e fundamentalismos. A situação é muito difícil mas é
preciso termos esperança. Antes de falar de esperança é bom termos a noção do
desafio. Nesta altura, os países confrontam-se com um dilema e há duas
estratégias em curso. O modelo epidemiológico do Imperial College, da
Universidade de Londres, é crucial para fazermos esta análise. É apenas um
modelo e sabemos que os modelos, mesmo os mais avançados do ponto de vista
científico, são apenas pálidas imagens da realidade.
O modelo testa as duas estratégias: a
primeira, que é a da contenção, seguida na China, Coreia do Sul, Singapura e
UE, incluindo Portugal. Significa actuar o mais cedo possível, confinar as pessoas
à sua residência, evitar os contactos e tentar achatar
a curva que mede o ritmo de propagação do vírus. Esta estratégia
funcionou nos países asiáticos. Qual é o inconveniente? Sustém o contágio mas
não erradica o vírus. O número de mortes é mais baixo mas quando a quarentena
termina o vírus pode voltar e novas quarentenas podem ser necessárias. Isto
pode ser insustentável do ponto de vista social e económico.
A outra estratégia é a do Reino Unido,
Suécia, EUA e Israel. É uma estratégia que visa criar a imunidade de grupo,
isto é, deixar o vírus propagar-se até grande parte da população estar
infectada. Isto deve ser feito isolando e protegendo os grupos de risco como os
idosos e os doentes. Qual é o inconveniente? O número de mortos pode ser brutal
até se criar a imunidade de grupo. O modelo do Imperial College estima que, com
esta estratégia, nos EUA podem morrer dois milhões de pessoas e no Reino Unido
500 mil. O preço a pagar é demasiado alto. E isto confronta os governos com
grandes dilemas nas decisões que têm de tomar. Por isso, este não é o tempo de
atirar pedras. Este é o tempo de nos unirmos à volta das autoridades e das
instituições, seguirmos as directivas e as regras terapêuticas, ter em conta
que as estratégias de combate não são estanques e podem ser híbridas, que todos
estão a aprender com todos e que, no fim, as melhores decisões vão prevalecer
para salvar o maior número de vidas.
Nestes tempos sombrios gostava de falar
de esperança mas baseada no conhecimento. É a esperança na ciência que muitos
desvalorizaram e atacaram ao longo dos últimos anos. O que nos vai salvar não é
o obscurantismo, não é a feitiçaria, não é a sorte, não são as seitas que
pregam contra as vacinas. O que nos vai salvar é o trabalho denodado
dos profissionais de saúde e é o trabalho dos cientistas e dos investigadores para criarem uma
vacina. A ciência, a investigação e o conhecimento vão sair mais
reforçados desta crise. Vai demorar tempo mas os sinais da investigação que vêm
do Japão, da China, da Alemanha e dos EUA são encorajadores. É também a
esperança na espécie humana, na nossa criatividade, na nossa capacidade de dar
a volta às situações mais difíceis. Quando as catástrofes aparecem elas fazem
emergir o melhor de nós. Isso aconteceu muitas vezes na história. Nós temos
muitos defeitos. Somos capazes do melhor e do pior. Mas quando toca a lutar
pela sobrevivência mobilizamos tudo o que nos distingue, como a inteligência, e
é assim que passamos as maiores tribulações.
Nós surgimos há cerca de 200.000 anos
atrás neste planeta extraordinário que é a nossa casa. O planeta já tinha 4500
milhões de anos de história quando nós aparecemos. O nosso percurso é uma
fracção ínfima da vida do planeta. Nós somos os acidentes gloriosos de um
processo imprevisível, como disse um dia o biólogo Stephen Jay Gould. Quando os
nossos antepassados emergiram nas savanas africanas, e pronunciaram pela
primeira vez a primeira palavra, começaram a comunicar uns com os outros e a
cooperarem entre si. Essa cooperação foi decisiva para se defenderem com
sucesso dos perigos imensos que os rodeavam. E eles sobreviveram porque, sem o
saberem, transportavam consigo aquela que é a mais poderosa máquina da criação:
o cérebro humano. Ele ajudou-os a ler o mundo, a decifrar os sinais, a detectar
o perigo, a construir a cooperação que é a base da vida das comunidades. A
descoberta da palavra mudou tudo e com ela veio também a capacidade de
efabulação da nossa espécie, que é extraordinária.
Esta crise vai obrigar-nos a lutar pela
sobrevivência, a reinventar a vontade e a atenção, a redescobrir a cooperação
por objectivos comuns. Vai obrigar-nos a ler, a estudar e a pensar. Como dizia
Swift: “Ser é ser tudo.” Esta crise vai reensinar-nos a ser tudo outra vez
Os nossos antepassados resistiram a
tudo: aos ataques das feras, aos sustos da natureza, aos ciclos climáticos, à
devastação das colheitas, às epidemias mortíferas, às erupções vulcânicas, aos
terramotos, às quedas de meteoritos e asteróides. Nessa admirável luta milenar,
em cada dia que chegava ao fim, eles reuniam-se à volta da fogueira e contavam
as histórias que ainda hoje são o património matricial da nossa espécie. Eles
inventaram o fogo, as ferramentas, a vida nas primeiras cavernas e nas
primeiras comunidades. Eles inventaram as redes sociais de cooperação. Eles
inventaram os primeiros poemas, as primeiras pinturas e transformaram a arte em
mais uma ferramenta para a sobrevivência. E há 75.000 anos atrás a espécie
humana passou por uma das maiores ameaças à sua existência: a erupção brutal
do vulcão Toba, na Indonésia. Esta foi a maior explosão vulcânica
até hoje registada na Terra. Biliões de metros cúbicos de cinzas vulcânicas
foram expelidas para a atmosfera. O Sol deixou de se ver durante dias a fio. O
planeta entrou numa espécie de Inverno vulcânico. As cadeias alimentares foram destruídas.
Muitas espécies foram extintas. Os nossos antepassados sobreviveram a esta
catástrofe indizível. No fim, os sobreviventes, estima-se hoje, foram cerca de
2000. Cabiam num hotel moderno. E nós somos todos filhos dos 2000.
É por isso que o ADN de dois seres
humanos, sejam eles quais forem, é praticamente idêntico. Nenhuma outra espécie
tem este grau de similaridade no seu ADN e isto torna ainda mais ridículas as
teorias racistas, a xenofobia, a exclusão do outro. Só há uma raça: a raça
humana. Estes sobreviventes resistiram a tudo, incluindo às glaciações que
fizeram baixar a temperatura do planeta de forma terrível. Esta é uma grande
lição. E quando, há cerca de 10.000 anos atrás, a temperatura subiu e as
condições ficaram mais favoráveis, eles foram capazes de erguer grandes
civilizações, da Mesopotâmia à Pérsia, da Índia à China, da Europa à África e às
Américas. Neste caminho a espécie humana foi movida pela curiosidade, pelo
espanto, que, como disse Platão, é o motor do conhecimento. Ontem como hoje ele
vai contribuir para a nossa sobrevivência.
Na terceira parte do Gulliver, o escritor Jonathan Swift descreve uma estirpe de homens decrépitos e
envelhecidos, acomodados e entregues a débeis apetites, falhos de vontade,
incapazes de comunicar e incapazes de ler. Este parece um retrato premonitório
das nossas sociedades antes do coronavírus: frívolas, superficiais, egoístas,
monossilábicas, mutiladas, zombies em perpétuo zapping. Mas esta crise vai obrigar-nos a lutar pela sobrevivência, a reinventar a
vontade e a atenção, a redescobrir a cooperação por objectivos comuns. Vai
obrigar-nos a ler, a estudar e a pensar. Vai, porventura, criar novos
paradigmas políticos, económicos e sociais. Como dizia Swift: “Ser é ser tudo.”
Esta crise vai reensinar-nos a ser tudo outra vez.
Professor do Instituto Superior Técnico
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