Opinião
Governo quer dar
ao bandido o ouro da Misericórdia de Lisboa
19/08/2014
O decreto agora aprovado é um gesto anti-patriótico, um gesto contra a
segurança social e um gesto contra os pobres.
Uma lei ou um decreto não entram em vigor quando são aprovados pelo Governo
ou pelo Parlamento, nem sequer quando são promulgados pelo Presidente da
República, mas apenas quando são publicados. Numa democracia, é o facto de dar
a conhecer as leis aos cidadãos e de as expor ao julgamento público (porque,
mesmo depois de entrar em vigor, uma lei pode sempre ser revogada ou alterada
se for julgada injusta ou ineficaz) que as torna de facto leis da República.
A publicação é uma condição necessária (ainda que não suficiente) para
conferir a uma lei a sua dignidade e a sua validade porque a publicação, o
conhecimento pelo povo, é a condição primeira da participação e da escolha
democrática.
Mas este está longe de ser o único caso em que a publicação, a
transparência, a exposição ao julgamento público é considerada essencial à
validade de um processo político ou jurídico. Todos conhecemos o caso dos
casamentos, contratos públicos, onde é obrigatória a publicação prévia de
banhos e a sua celebração de porta aberta, ou o caso dos julgamentos,
cerimónias públicas por excelência, onde apenas circunstâncias excepcionais,
relacionadas com a protecção de valores superiores e devidamente justificadas
(protecção de menores, por exemplo) podem permitir a sua realização de porta
fechada.
Mesmo no caso das leis, a publicação não é um procedimento apenas devido
após a conclusão do processo. Numa democracia, todo o processo de produção das
leis tem de ser absolutamente transparente e estar sempre exposto ao escrutínio
público. O povo tem o direito a saber quem propôs uma lei, quem escreveu a
proposta, quem foi ouvido para a sua preparação, que discussão teve lugar, quem
defendeu que posição e com que argumentos, que alterações lhe foram
introduzidas durante a discussão, quem a aprovou, quem votou contra e quem se
absteve e com que argumentos, etc.
E esta transparência não se pode restringir à discussão nos plenários do
Parlamento, que é a parte mais espectacular mas a mais superficial da produção
legislativa. Ela tem de incluir todos os trâmites processuais, incluindo as
posições das inúmeras entidades cuja consulta os deputados considerem
necessária e que deveriam ser sempre disponibilizadas para consulta dos
cidadãos, no dossier de documentos preparatórios que deveria estar disponível
nos sites do Parlamento e do Governo para consulta pública, ao lado de cada
diploma em discussão ou aprovado.
Qualquer sonegação de informação, qualquer encobrimento habilidoso fere de
morte o processo legislativo e descredibiliza os políticos e, por arrasto, a
própria democracia. É por isso que é sempre particularmente grave ver o mês de
Agosto ou o período do Natal serem aproveitados para "enfiar" à
sucapa algumas leis controversas ou uns concursos destinados apenas a alguns
amigos avisados, enquanto o povo está distraído, em férias e festas. É esse o
caso da FCT, que abre e fecha em Agosto um concurso para bolsas de gestão de
ciência e tecnologia ou, o que é muito mais grave, o caso do decreto da
Assembleia da República de 25 de Julho que "autoriza o Governo a legislar
sobre o regime jurídico da exploração e prática do jogo online".
Na prática, como já foi denunciado nomeadamente por José Ribeiro e Castro
(único deputado da maioria a votar contra, honra lhe seja feita) este decreto,
contestado por toda a oposição, abre a porta à privatização dos chamados jogos
de fortuna e azar, como a lotaria, o totobola e o Euromilhões, com a desculpa
aldrabona de que é preciso regulamentar o jogo online e que isso passa
pela sua liberalização. É falso, mas o lobby do jogo, que possui muitos
milhões para influenciar vontades, não tem olhado a meios nem a despesas para
enfiar esta cunha através da qual espera conseguir finalmente destruir o monopólio
da Misericórdia de Lisboa e apoderar-se dos seus enormes lucros, que
actualmente alimentam a Segurança Social.
A iniciativa legislativa que pretende dar ao bandido o ouro da Misericórdia
de Lisboa é do secretário de Estado do Turismo, Adolfo Mesquita Nunes, e a
ideia é simples. O que se pretende é abrir uma excepção no domínio dos jogos de
azar, permitindo a entrada de entidades privadas, de forma a destruir aquela
que tem sido a argumentação do Estado português na União Europeia em defesa do
monopólio do jogo por parte da Misericórdia - o seu objectivo social, a
necessidade de não promover o vício do jogo, etc...
A actual situação portuguesa é perfeitamente compatível com as regras da UE
(ao contrário do que dizem as vozes seduzidas pelo lobby) mas deixará de
o ser se o próprio Estado abrir uma excepção. O decreto agora aprovado é por
isso um gesto anti-patriótico, que mina uma posição de defesa nacional; um
gesto contra a Segurança Social, que mina uma fonte essencial do seu
financiamento; um gesto contra os pobres, que beneficiam dos serviços da
Misericórdia; e um gesto em favor das grandes empresas de jogo, que assim
conquistam mais uma ferramenta de alienação e de exploração dos trabalhadores.
Uma das portas que o novo decreto abre é, sintomática e tristemente, a
publicidade ao jogo, numa era onde se tenta restringir cada vez mais a
publicidade ao tabaco e ao álcool por razões de saúde pública.
O jovem Adolfo Mesquita Nunes está orgulhoso porque sabe que, com esta
fulgurante medida, a sua carreira política e o seu futuro estão garantidos. O
Governo, por seu lado, exulta, com mais uma medida que nos vai roubar a todos
mais umas centenas de milhões de euros por ano e enfiá-los no bolso de grandes
senhores da finança.
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