Para a esquerda ser alternativa, é indispensável vontades políticas alcançarem uma convergência e imprescindível constituírem-se veículo de um programa político
A recomposição da esquerda portuguesa está na ordem do dia. Uma esquerda
antiausteritária que se queira consequente não pode satisfazer-se com o papel
de protesto. Por bem que cumpra esta função, se ao protesto não se seguir
nenhuma mudança, se dele nada se esperar além da catarse da rua, então é justo
concluir que o protesto serve sobretudo de válvula de escape ao
descontentamento social, com benefício exclusivo, na ressaca do dia, para a
própria política de austeridade, cuja continuidade se vê assim mais bem
assegurada.
Também não basta a desmontagem argumentativa da austeridade, dos três
ângulos, social, político e económico, por que tem sido feita: a) Fazer a
demonstração, do ponto de vista social, de como a austeridade naturaliza a
desigualdade, impinge a precariedade como normalidade social e instala no
quotidiano das pessoas o medo da incerteza sobre o futuro próximo,
recusando-lhes a capacidade de projectarem as suas vidas. b) Deixar claro, do
ponto de vista político, como a dívida se substitui de facto ao soberano e como
a precariedade restitui ao poder político atributos de um absolutismo que não
conceberíamos há alguns anos atrás. c) Fazer evidência de como, do ponto de
vista económico, a austeridade não resulta, em nada diminui a dívida soberana,
antes transforma-a em dívida eterna, que nos subjugará social, política e
economicamente por décadas.
Tornar consequentes estas vocações de protesto e de desmontagem
argumentativa, exige à esquerda antiausteritária que encontre uma terceira
vocação: mostrar-se alternativa credível de poder face à austeridade que nos
governa. Sem esta vocação, a esquerda portuguesa, por empenhada e brilhante que
seja, nulifica todos os seus esforços. E para a esquerda antiausteritária ser
alternativa, é tão indispensável vontades políticas alcançarem uma convergência
real como é imprescindível constituírem-se veículo de um programa político. Em
poucas palavras: uma alternativa política para uma política alternativa.
Se a recomposição da esquerda for mais do que um espectro e servir para
fechar este triângulo - protesto, argumentação, alternativa - far-se-á um pouco
de história, pois desde que há democracia em Portugal nunca a esquerda à
esquerda do PS teve ambições de governar. Mas, outra governação valerá a pena
se, além disso, consumar a oportunidade histórica para uma recomposição da
própria ideia de esquerda. Não deve preocupar à esquerda apenas as suas
dificuldades em convergir, mas também de se renovar ideologicamente a sua
capacidade propositiva. Não é certamente esse o caso de uma esquerda refugiada
no patriotismo em extremidade peninsular ou, ainda, na nostalgia do regresso ao
passado do escudo. Propor é fundamentalmente projectar, com linhas de futuro
como horizonte. E pelo menos dois eixos merecem futuro:
1. Quando nos citam pela enésima vez a espirituosa frase de Churchill sobre
a que considerou ser a pior forma de governo à excepção de todas as outras,
fica bem explicado por que a democracia liberal é inaceitavelmente tímida, com
eleitores postos à margem sempre que não há eleições, a democracia europeia
resumida a um clube de chefes de governo, a democracia nacional a um clube de
partidos, a democracia partidária a um clube de dirigentes. É preciso a
esquerda reivindicar-se mais radicalmente democrata e bater-se pela inclusão
plena das comunidades no processo político.
2. Hoje não restam dúvidas que a social-democracia, assente no Estado
social e na função redistributiva das transferências sociais está a falhar
maciçamente. As desigualdades aumentam por toda a parte, a concentração de
riqueza também, mau grado as transferências sociais tradicionais. Pior ainda:
mau grado o empobrecimento da sociedade. É preciso a esquerda propor-se a mais
do que remediar, a jusante do ciclo económico, a desigualdade. Assumindo que as
sociedades mais iguais fazem melhor, é preciso complementar as políticas
redistributivas, radicalizando-as com políticas de pré-distribuição, que façam
da igualdade força geradora de prosperidade económica.
André Barata
Filósofo, dirigente do Livre
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