"Brexit" e a culpa europeia
André Barrinha
30/06/2016 -
É também por culpa de
Bruxelas e de Berlim que o Reino Unido caminha para a saída da União Europeia.
Entre o caos nos
mercados financeiros, a possível independência da Escócia e as rebeliões que se
avizinham nos dois principais partidos políticos britânicos, pouco se tem
falado das razões externas que levaram ao desenlace de quinta-feira. Em
particular, pouco se tem falado da culpa de Berlim e de Bruxelas em todo este
processo.
A verdade é que muitas
das razões que levaram os britânicos a votar out têm a sua origem nas
desastrosas medidas adotadas pela União Europeia, em larga medida por pressão
da Alemanha, para lidar com a crise financeira que tem vindo a afetar a Europa
(sobretudo do Sul) desde 2010. Apesar de os britânicos nunca terem feito parte
da zona euro, direta e indiretamente esta questão afetou profundamente o debate
sobre o referendo, tendo dado munições ao movimento Leave e retirado argumentos
aos que estavam a favor da manutenção do Reino Unido na União Europeia em cinco
áreas fundamentais.
Imigração. Nos últimos anos, centenas de milhares de italianos, espanhóis, gregos,
portugueses, irlandeses e cipriotas imigraram para o Reino Unido à procura de
emprego e de uma vida melhor. Este movimento migratório deu uma visibilidade
significativa aos fracassos do projeto europeu e reforçou o argumento do
descontrolo dos fluxos migratórios para o Reino Unido. Para muitos britânicos,
a União Europeia não só era incapaz de resolver os problemas da zona euro como
se recusava a inserir qualquer mecanismo que prevenisse a chegada ilimitada de
imigrantes europeus ao Reino Unido.
Democracia. Os britânicos sempre foram críticos da falta de legitimidade democrática
da União Europeia. Nesse contexto, casos como a demissão forçada de Silvio
Berlusconi em Itália ou a crise política grega e as consequentes chantagens
feitas ao Governo grego do Syriza, juntamente com as reuniões à porta fechada
do Eurogrupo, só "confirmaram" aquilo que os britânicos suspeitavam
relativamente à União Europeia: que se tratava de uma entidade não democrática
em larga escala ao serviço dos interesses da Alemanha.
Austeridade. Muitos dos problemas identificados por aqueles que pretendiam a saída do
Reino Unido da União Europeia estavam ligados às políticas de austeridade dos
governos de David Cameron, que contribuíram para prolongar a recessão económica
no país para lá do necessário, cortaram subsídios fundamentais a milhões de
pessoas (já de si no limiar da pobreza) e reduziram os custos com os serviços
públicos da educação aos serviços locais. A austeridade brutal a que o Reino
Unido tem sido sujeito contribuiu para a efetiva descida do nível de vida
daqueles que já estavam numa situação frágil. A recuperação económica a que o
país tem assistido nos últimos anos atenuou alguns desses impactos,
nomeadamente em termos de desemprego, mas não a um nível necessário para
colmatar a destruição provocada pelos cortes. Indiretamente, a União Europeia
ajudou à consolidação desta agenda de austeridade, não só porque defendeu a
mesma receita para os países da zona euro como providenciou ao partido
conservador britânico um dos seus principais trunfos de campanha, tanto em 2010
como em 2015: a infindável crise grega. Esta posição dificultou, de forma
significativa, a tarefa daqueles que queriam oferecer uma visão progressista do
projeto europeu.
Conhecimento. Este foi, em boa medida, um debate marcado por um certo
anti-intelectualismo. O atual ministro da Justiça e um dos líderes do movimento
Leave, Michael Gove, chegou mesmo a dizer que o público estava farto de
peritos. Isto num contexto em que a esmagadora maioria das instituições
internacionais, economistas e líderes políticos fora e dentro do país chamavam
a atenção para os enormes riscos económicos e financeiros de um
"Brexit". Um dos argumentos mais frequentes em resposta aos avisos
constantes de uma potencial recessão económica era o de que estes tinham sido
os mesmos peritos que nos anos 1990 tinham defendido a entrada do Reino Unido
para a zona euro (e, como tal, não havia razão nenhuma para ouvir os seus
argumentos). Os sucessivos fracassos da zona euro ajudaram desta forma a
reforçar o argumento de que os peritos não são de confiança.
Seria certamente
injusto e analiticamente pouco sério reduzir a saída do Reino Unido à crise da
zona euro. Outras causas, internas, contribuíram igualmente para isso (disputas
internas do partido conservador, falta de rigor e seriedade por parte dos media,
ignorância generalizada sobre o que é a União Europeia, nacionalismo). Mas,
fundamentalmente, a União Europeia, na forma como lidou e tem lidado com a
crise do euro, passou uma imagem negativa e sem visão de futuro, mais
preocupada em punir os estados "não cumpridores" do que em oferecer
um projeto de futuro.
É hoje consensual que
David Cameron acabou por se revelar um primeiro-ministro desastroso para o seu
próprio país, sempre mais preocupado com a sua própria sobrevivência política
do que com o interesse nacional e muito menos europeu. O seu posicionamento
relativamente à União Europeia foi sempre problemático (tal como o do líder da
oposição, Jeremy Corbyn) e a sua campanha pela manutenção do Reino Unido pouco
convincente. Mas não menos convincente tem sido a gestão da crise do euro por
parte da União Europeia, alicerçada numa liderança alemã economicamente
dogmática e politicamente sem rumo. É também por culpa de Bruxelas e de Berlim
que o Reino Unido caminha para a saída da União Europeia.
Professor de Relações Internacionais na Universidade de Canterbury Christ
Church (Reino Unido) e investigador do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra
Sem comentários:
Enviar um comentário